segunda-feira, 22 de março de 2021

ZACK SNYDER’S JUSTICE LEAGUE

Por Ricky Nobre

Liga da Justiça de Zack Snyder não é o primeiro nem será o último filme a ir para os cinemas completamente diferente das intenções originais de seu diretor. O público pôde ver o corte original de A Marca da Maldade (1956) apenas em 1998, 14 anos após a morte de seu diretor Orson Welles. Duna (1984) teve uma versão estendida, mas não uma versão aprovada pelo seu diretor David Lynch pois, segundo ele, não foi possível na época filmar tudo que ele queria, portanto, apenas resgatar as cenas cortadas não seriam capazes de tornar a versão estendida uma real versão do diretor. Dependendo da quantidade de material cortado, do orçamento do filme, do interesse do público, entre outros fatores, versões do diretor tornaram-se algo relativamente comum nos últimos 20 anos. Caso o estúdio tenha forçado o corte de meia hora num filme para que ele fosse aos cinemas, ele pode voltar sem muitos problemas em DVD em sua versão original. Muitas vezes é melhor, mas às vezes é até pior. Porém, o mérito de tornar essas versões disponíveis ao público é dar ao artista a chance de pôr sua visão pessoal na rua, para que o público aprecie e tire suas conclusões. E, apesar de na história de Hollywood haver diversos casos semelhantes, o de Liga de Justiça foi bem mais complexo.

 

Após apresentar um primeiro corte de 4 horas que a Warner considerou inassistível, o diretor Snyder foi afastado do projeto. A tensão já vinha de antes, com as críticas a Batman Vs Superman, um sucesso de bilheteria e fracasso de crítica. O sucesso comercial, porém, foi abaixo do esperado pelo estúdio, o que pôs os produtores em alerta. Mesmo suspeitando de uma futura demissão, Snyder continuou filmando tudo que queria à revelia do estúdio e estava disposto a brigar com a Warner por sua versão. Uma tragédia familiar, porém, esmagou sua vontade de lutar por um filme. Entra Joss Whedon que, sob a promessa do estúdio de poder realizar um filme da Batgirl (que, por fim, nunca aconteceu), é incumbido de dar mais leveza, humor, cor e rapidez ao filme, não podendo ultrapassar duas horas de projeção. Não tinha como dar certo.

 

Liga da Justiça foi recebido com frieza por público e crítica. A bilheteria mundial de 657 milhões de dólares mal cobriu todos os gastos extras que foram despendidos para que a forma do filme fosse completamente modificada em um prazo muito exíguo. Histórias sobre o conteúdo da versão original e se ela estaria ou não completa começaram a circular com velocidade viral na internet. #Releasethesnydercut tornou-se a maior harshtag do mundo nerd. Mas era impossível que a Warner gastasse milhões de dólares para realizar TODO o processo de pós-produção de um filme inassistível. Não?

 

Pois numa conjunção milagrosa de fatores, a Warner disponibilizou 35 milhões de dólares (inflado para 70 milhões posteriormente) para que a versão de Zack Snyder para Liga da Justiça se tornasse um grande chamariz para o serviço de streaming HBOmax. Com algumas refilmagens (não tantas quanto se propaga), Snyder teve liberdade total e absoluta para finalizar o filme exatamente como ele havia imaginado (com algumas poucas revisões “depois do fato”, como o aspecto de tela). Sendo esta versão do diretor uma obra 100% sem concessões, como ela se compara com a versão lançada nos cinemas?


É preciso analisar o filme pelos seus méritos próprios, mas é impossível fazê-lo desvinculado do conjunto da obra de Zack Snyder e do que ele criou para o universo de super-heróis de DC. O “snyderverso”, como vem sendo chamado, está longe de ser uma unanimidade. Mas pode-se dizer que, inserido nesse universo e sob suas regras e pontos de vista, este Liga da Justiça é o melhor trabalho de Snyder para a DC.

 

Inicialmente, estranha-se o filme ser dividido em partes. Essa montagem tem origem na ideia de lançar o filme como uma minissérie na HBOmax, sendo a versão em longa metragem contínuo reservada para um lançamento restrito em cinemas e para home vídeo. Mas a Warner mudou de ideia na última hora, e Snyder preferiu deixar as divisões. De fato, as partes e seus títulos têm certa simpatia, lembram os capítulos de numa minissérie em quadrinhos encadernada. Como se pode prever por sua duração de 242 minutos, o filme não tem pressa. Nenhuma! E isso não é ruim. Lento não é sinônimo de tedioso, e este não é de forma alguma um filme chato. Em sua concepção original, vemos muitas cenas familiares em versões mais longas, dispostas em ordenação bem diferente da versão dos cinemas. Nisso, todos os personagens ganham em desenvolvimento, sendo o mais beneficiado deles o Ciborgue, que tem aqui praticamente um filme de origem dentro do filme. Já Batman é o que menos apresenta novidades, possivelmente por ter tido amplo espaço no filme anterior.

 

Ao longo da projeção, vemos todo o imenso talento de Snyder para a concepção visual e uma tranquilidade para desenrolar os acontecimentos para o encontro dos personagens. Tanto quanto Ciborgue, ganha também o vilão Lobo da Estepe, não apenas por seu visual muitíssimo superior, mas também por ter uma real motivação e uma personalidade mais definida e (um pouco) menos “vilão genérico”. Num lado negativo, temos uma certa tendência à cafonice que, geralmente, Snyder consegue disfarçar bem dentro de seu estilo “modernoso”. Várias cenas são acompanhadas de canções que, nem sempre, casam bem com as cenas em questão.  Seu gosto exagerado por baixa saturação, sombras e câmera lenta é largamente conhecido, e ele continua errando a mão em algumas cenas. Nem toda cena precisa de uma pomposidade majestosa e triunfante (como o flashback de Victor jogando futebol). Quando tudo é majestoso, corre o risco de nada mais ser.

 

No geral, a comparação com a versão dos cinemas é inevitável: a história (que nunca foi particularmente inspirada) é mais bem contada, os personagens têm seu devido desenvolvimento, suas motivações são mais claras e o ritmo, ainda que lento, é melhor. As cenas de ação são bem superiores e o filme, em seu todo, é bem mais majestoso e épico, do jeito Snyder de ser. A batalha final tem um desenrolar bem mais detalhado e Snyder é muito bem-sucedido na construção do suspense, deixando o espectador de olho arregalado esperando o vai acontecer.

 

A música de Junkie XL (que aqui assina como Tom Holkenborg) casa bem com o estilo do diretor e dá continuidade à identidade sonora dos filmes anteriores da franquia. Ainda que seja um representante do estilo atual de música de cinema, com os vícios dessa geração, com o clichê da pesadíssima percussão para cenas de ação e um estilo mais de “sound design” do que musical, a trilha é, em seu todo, mais bem realizada do que nos filmes anteriores, principalmente Batman Vs Superman, onde Junkie XL trabalhou em parceria com Hans Zimmer, situação onde XL tende a ter menos personalidade e funcionar mais como um assistente de Zimmer. Trabalhando solo, XL rende bem melhor e produz o som que casa com os visuais de Snyder. No geral, a música de Junkie XL serve melhor a esta versão do que a de Danny Elfman (pouco inspirada) serviu à versão do cinema.

 

O filme, porém, não sai incólume das autoindulgências de Snyder. Ao se decidir em montar Liga da Justiça como havia originalmente concebido, ele não se preocupa com continuidades de obras futuras, oferecendo alguns conflitos a Aquaman que, em seu filme solo posterior, mostram-se como já resolvidos na juventude. Mas não é preocupação de Snyder fazer seu filme se encaixar suavemente numa franquia cuja continuidade nem o próprio estúdio parece dar importância. A escolha à posteriori do enquadramento na proporção 1,33:1 (possível graças às filmagens em película no sistema Super 35mm) também é um aspecto dessa “vibe” de Snyder de não se restringir em nada. Ainda que o principal veículo de distribuição do filme seja um serviço de streaming, Snyder opta por um enquadramento que só tem real efeito impactante numa sala IMAX de projeção em película (cujo aspecto é 1,45:1). O resultado disso na telinha não deixa de ser curioso. Temos, de fato, uma sensação de espaço expandido, mas isso vem mais do excesso de espaço acima e abaixo dos personagens. Considerando que esse filme, se fosse finalizado por Snyder lá em 2017, teria sido lançado nos cinemas na proporção 2,35:1 (a exemplo dos dois anteriores), é uma conclusão óbvia que ele enquadrou as cenas com essa proporção em mente. Isso fica claro quando percebemos que praticamente não existem “closes” fechados dos personagens durante o filme, pois o enquadramento foi drasticamente “aberto” acima e abaixo dos atores. A grande exceção são as cenas adicionais com o Coringa, rodadas meses antes do lançamento, quando Snyder já havia decidido pelo novo enquadramento. A escolha de enquadramento é uma prerrogativa do diretor, uma das principais decisões (se não a mais importante) na construção da linguagem do filme. Lançar Liga da Justiça em 1,33:1 não é certo nem errado. É uma decisão artística. Porém, como não foi feita no momento das filmagens, e sim 3 anos depois, fica evidente em vários momentos que não foram exatamente assim que as cenas foram pensadas.

 

Além disso, algumas cenas realmente sobram (a cantoria para Aquaman é a primeira que vem à mente), mas o grande problema é tudo que foi filmado (na época ou à posteriori) que serve apenas para o diretor apresentar o que ele planejava para um filme posterior (que tende a não ser realizado), sendo quase todas as cenas concentradas num epílogo que realmente sobra após a conclusão da trama. O que se desenrola nele serve tanto como as únicas migalhas que ele pode apresentar para os fãs das linhas gerais de um “Liga da Justiça 2”, e também como uma provocação e pressão moral sobre a Warner, sinalizando que, dependendo do sucesso comercial desta versão, não uma, mas DUAS sequências já estão na cabeça do diretor. No epílogo é onde o fanservice vence e o cinema perde. Como filme, ele termina de verdade quando Superman corre em direção à tela. Tudo o que vem depois é um anticlímax, inclusive a música dos créditos finais, onde a cantora Allison Crowe pira no vibrato na pior gravação de Hallelujah já feita.

 

Quanto à visão de Snyder desse universo, ela já é conhecida e não se pode esperar nada de diferente. Seu Superman é aquela visão triste que conhecemos e isso não muda aqui. Apesar de Lex Luthor ter dito em Batman Vs Superman que aquela era a grande luta entre a luz e as trevas, este Superman de Snyder jamais foi luz, e isso é simplesmente confirmado aqui, e só. Snyder adora heróis violentos e gosta de valorizá-los em poses e ângulos majestosos e quase divinos (Aquaman salvando um pescador é um exemplo simples disso). Mulher Maravilha nos quadrinhos nunca foi adepta do estilo escoteirão do Superman e mata quando necessário. Mas aqui ela explode até um Zezinho sem poder, porque o mundo de Snyder é assim. E só aceitando isso é possível viver no Snyderverso. Talvez o principal esforço de Joss Whedon na versão de cinema tenha sido salvar Superman desse abismo trevoso de Snyder, mas a própria dificuldade da tarefa, somado a um CGI desastroso, tornaram os resultados alvo de críticas e chacotas. Não que não fosse um alívio ver Superman sorrindo, mas parecia um remendo tardio num universo estragado.

 

Uma das conclusões surpreendentes que se tira após 4 horas de Liga da Justiça é o quanto de Snyder já tinha na versão finalizada por Joss Whedon. Ainda que este tenha sido exposto como um profissional absolutamente tóxico e abusivo no ambiente de trabalho, a ele foi dada uma tarefa impossível. Alguns vão preferir aquela versão mais resumida de uma trama que nunca foi tão complexa assim pra começar, aliado a um resgate de um olhar mais luminoso sobre Superman. Outros (a maioria, talvez) irá preferir a versão original agora lançada, seja por ser uma obra mais completa, coesa e bem acabada, seja por pura fanboyzice dos seguidores do diretor. Zack Snyder’s Justice League deixa bem claro o erro trágico da Warner na condução do projeto. Tivesse o estúdio permitido um corte de 3 horas para Snyder lançar seu filme nos cinemas, com sua versão completa em DVD e bluray meses depois, teria gasto muito menos dinheiro na produção e, com certeza, arrecadado mais na bilheteria, tendo, possivelmente, o reconhecimento de melhor na trilogia de Snyder na DC, tonando desnecessário todo esse carnaval que se fez em torno desta versão. Snyder parece disposto a terminar a saga imaginada por ele caso a Warner veja vantagem financeira em restaurar o “snyderverso”. Mas talvez seja melhor para sua carreira começar a se dedicar a projetos de autoria própria, evitando comparações entre as versões clássicas de personagens consagrados e sua versão muitas vezes mais sombria e violenta, principalmente se levarmos em conta que Snyder possui uma visão bem juvenil do que é material adulto. Para qualquer pessoa interessada em cinema, o snydercut é uma aula de como a adição e subtração de cenas e detalhes altera a percepção de uma obra. Para fãs de super-heróis, é munição de um campo de batalha nerd sem fim. Quem for de mente e coração aberto ganhará mais.


 COTAÇÃO:


 

ZACK SNYDER'S JUSTICE LEAGUE (2021)

com: Ben Affleck, Henry Cavill, Amy Adams, Gal Gadot, Ray Fisher, Jason Momoa, Ezra Miller, Willem Dafoe, Jeremy Irons, Diane Lane, Connie Nielsen, Amber Heard e J.K. Simmons.
Direção: Zack Snyder
História: Zack Snyder, Chris Terrio e Will Beall    
Roteiro: Chris Terrio
Fotografia: Fabian Wagner
Montagem: David Brenner, Carlos M. Castillón e Dody Dorn    
Música: Thomas Holkenborg
Design de produção: Patrick Tatopoulos