Dra Eva Abelar é uma cientista estudiosa de sonhos lúcidos que perde no mesmo dia a irmã e o filho. A primeira para o suicídio. O segundo para um misterioso sequestro. Ela é convidada a ocupar a vaga da irmã numa empresa que está elaborando um videogame onírico. Ela começa a investigar e se envolve em uma perigosa trama que pode levar ao fim do livre arbítrio para a humanidade.
Lançado em 2012 pela extinta Novo Conceito, esse livro do autor nacional Chico Anes tem uma premissa interessante ao abordar sonhos lúcidos, mas tem muitos problemas que o tornam uma viagem desagradável.
Eu fiz o vídeo da crítica desse livro e ele será sorteado. Para participar, é só se inscrever com seu e-mail no www.circulodefantasia.com
Os primeiros capítulos foram difíceis de ler, porque eu não conseguia me conectar com nenhum personagem. Mesmo tentando dar o rosto dos meus atores favoritos, eu não conseguia sentir nenhuma ligação com nenhum deles. Com o tempo, percebi que nenhum personagem era bem construído. Eram todos descrições rasas, personalidades estereotipadas e sem nenhuma alma. O próprio suicídio de Ana, a irmã de Eva, que deveria ser impactante, conseguiu ser desinteressante. Eu comecei a me incomodar. Será que o problema sou eu?
Não. Não sou eu. Quanto mais eu lia, mais percebia que nem a personagem principal era interessante. Pior! Comecei a ver um padrão horripilante de sexualização da mulher em todas as personagens femininas. Das cinco personagens que aparecem, apenas uma não sofreu nenhum tipo de abuso ou ameaça sexual, e era uma senhora de mais idade com o sugestivo nome de La Gorda, que já imprime uma visão não padrão para os tarados de plantão. De resto, todas as mulheres passaram por estupros, abusos, e a própria Eva era o tempo inteiro sexualizada com fantasias de violência por todos os homens que cruzavam seu caminho. E ela permanecia completamente inerte. Não ligava e, por vezes, ficava feliz com os “elogios” ao seu corpo. Foi quando a realidade me atingiu como um raio. O livro foi escrito por um homem!
Claro!
Isso explica que a personagem aos 21 anos, descrita como super inteligente e no caminho do sucesso, perca tempo se preocupando por ser virgem. HOMENS se importam com isso. Tá, tudo bem, vamos colocar uma super dose de boa vontade de dizer que Eva era assim por causa da forma com que sua sexualidade foi tratada pela mãe doida. Aliás! Outro problema. Os pais de Ana são tratados como pessoas boas e amorosas. Mas a mãe é uma psicótica violenta e o pai é omisso. Os dois são pais HORRÍVEIS. Tem uma hora que a mãe dá um chilique ao ver a roupa com que Eva estar e por ela estar de batom. Faz uma terrível agressão à filha. Em algum momento adiante, vemos Eva concordando com o ponto de vista da mãe maluca, justificando que as roupas de uma mulher determinam o comportamento dos homens. WTF!!!!
Tentei me afastar dessa parte incômoda do livro e me concentrei nos sonhos, basicamente quando o livro se torna mais interessante. Em alguns poucos momentos, temos uma narrativa bem escrita, poética e profunda. Mas não sempre. Na maioria das vezes, o texto é burocrático e estéril, parece que o autor está só cumprindo horário na repartição mais chata do mundo. A trama em si é interessante, especialmente quando percebemos que o autor pesquisou o tema. Mas ela não decola. E quando surge uma trama paralela com seitas secretas por trás de empresas bilhardárias querendo dominar o mundo, com direito a manuscritos antigos e tudo, a coisa degringola.
Percebi também que faltava conexão entre os personagens. Eva perde a irmã de forma terrível, mas em nenhum momento nos é mostrado um laço entre elas. Não há uma lembrança bonita, uma rusga ou disputa, um remorso. Nada. Ana é a irmã que morreu e Eva passa o livro inteiro lamentando isso sem falar absolutamente nada da coitada. O filho de Eva desaparece. Sabemos que ele é autista, mas tirando o fato dele não falar, não sabemos de mais nada. Que tipo de autista? Quais são as manias? Como era o relacionamento deles? Como se divertiam? Não sabemos nada desse menino. Por que deveríamos nos importar com ele? Ou com Ana? Ou com Eva? Ou com qualquer um ali?
Mas eu segui adiante! Pensei: agora vou até o mais amargo fim. Quero ver como termina! Me deparei com uma história bem escrita, a de João Cogumelo, e fiquei feliz. Aí o livro começou a chegar ao fim e virou um samba do crioulo doido. As cenas de ação são completamente malucas, a maioria não faz sentido, e temos personagens tirados da cartola com super habilidades que resolvem um monte de problemas ao melhor estilo deus ex machina.
E isso não é o pior! O pior mesmo foi a normalização do assédio, do estupro e mensagens anti-aborto, sem nenhum contraponto. Todas as mulheres foram sexualizadas, menos as idosas ou fora do padrão de beleza, como enfermeiras mais cheinhas que eram alvos de comentários narrativos sobre como as enfermeiras de filme eram sempre gostosas. A ideia de abordar sonhos lúcidos foi boa. Mas a execução foi um pesadelo.