Por Ricky Nobre
Ah, os loucos anos 20... Um período de prosperidade
econômica do pós guerra, uma explosão de criatividade cultural, charleston,
jazz, melindrosas e algumas barreiras começando a serem quebradas no início da
liberação feminina; grandes invenções da virada do século estavam mais
acessíveis e populares, como as gravações musicais, automóvel, telefone... e o
cinema. Após Whiplash e La-La-Land, Damien Chazelle traz Babilônia como uma
homenagem à Hollywood da época, que já era uma indústria milionária,
enfatizando a “vida loca” e o impacto tsunâmico da chegada do som no cinema.
Para dar conta da grandiosidade do período, Chazelle apostou em uma escala épica. Das festas dionisíacas às superproduções, é tudo imenso,
insano e caótico. Caos, inclusive, que se entranha e confunde com a própria
narrativa. Com uma câmera tão frenética quanto a montagem, há uma overdose de
virtuosismo técnico que pode ser percebido como uma distração desnecessária, ou
mesmo um entrave à apresentação daquele universo, mas que é, no fundo, a forma concebida
pela direção de materializar aquele momento no tempo, mostrando o cinema, as
estrelas e a máquina da indústria como forças impossíveis de serem detidas. Porém,
filmar o caos sem tornar o filme caótico é uma corda bamba na qual Chazelle se
equilibra como um elefante numa festa. Ao mostrar as entranhas abertas da
Hollywood de quase 100 anos atrás, o filme esconde o glamour, que era (e foi
por muitas décadas) a cara da indústria, que ele, aparentemente, considera algo
dado, conhecido e sem nada a acrescentar. A beleza glamorosa das estrelas não
lhe interessa: ele quer as tripas.
Os três protagonistas de Babilônia nos conduzem a essas
entranhas de Hollywood. A novata Nellie (baseada em Clara Bow, a primeira it girl), o astro Jack (baseado em John Gilbert) e Manny, jovem imigrante que
começa de baixo e se torna um grande nome dos bastidores, trazem o público para
dentro de toda essa loucura que está prestes a colapsar. Sem dúvida, os
melhores momentos de Babilônia são os que reproduzem os ambientes de filmagem,
que acontecem em duas cenas chave. Primeiramente, num set de filmes mudos, onde
incontáveis filmes são filmados ao mesmo tempo (já que não há captação de som),
cenários de interiores são abertos e aproveitam a luz do sol. Cada set é um
mundo diferente, com sua própria história, gritaria, emoções e incêndios.
Talvez a verdadeira Babilônia do filme esteja ali, onde em cada cenário se
falar uma língua, se conta uma história diferente. Ainda que esteja imersa
nessa estética frenética de Chazelle, esta sequência reproduz com muita
precisão como era a máquina de fazer filmes em 1926.
Na outra cena, temos um set em 1928, que é onde tudo muda. No
cinema sonoro, tudo o que todos sabiam, diretores, produtores e,
principalmente, atores, não vale mais nada. Chazelle consegue imprimir a mesma
intensidade de caos do que na cena das filmagens mudas, porém, naquelas é um
caos festivo, criativo e delirante. Na filmagem sonora é um caos de desespero, e
todos os envolvidos sabem que vão precisar se adaptar rápido aos novos tempos,
e quem não conseguir, está fora. E é na segunda metade do filme que tudo, de
repente, estanca. Chazelle força um pouco a barra histórica e junta a nova
ordem trazida pelo cinema sonoro com a necessidade de uma imagem pública mais
comedida, conservadora e pudica de suas estrelas e da indústria em si (ainda
que só aparente) com a chegada do Código Hays, que procurava moralizar o
conteúdo “pervertido” dos filmes. Ele faz com que esses dois fenômenos pareçam
um só e simultâneos, quando, de fato, foram separados por alguns anos. As
tragédias que se seguem vêm justamente da inabilidade dos personagens em se
adaptarem aos novos tempos, e até quem se adapta acaba não resistindo, puxados
pelo turbilhão dos que caíram.
Chazelle, ainda que orquestrasse toda essa ópera caótica,
não meteu completamente o pé nessa jaca que ele mesmo cultivou. Se o filme é
muito virtuoso em filmar suas metáforas escatológicas, sempre óbvias no melhor
estilo do Triângulo da Tristeza, o mesmo não se pode dizer dos excessos sexuais
que ocorrem nas festas de arromba do filme, principalmente na primeira. Se
jatos de vômito e diarreias paquidérmicas são sempre muito bem enquadrados, as
cenas de nudez e de atos sexuais passam muito rapidamente nos cantos da tela,
enquanto a câmera frenética de Chazelle percorre todo o ambiente, ávida por
enquadrar tudo ao mesmo tempo. Fosse o diretor tão detalhista com os arroubos
sexuais das festas quanto foi com as escatologias, teria terminado com um filme
NC-17 nas mãos, inviabilizando sua distribuição, pois essa é a realidade da
Hollywood atual. Numa metalinguagem acidental, Chezele é tão refém das regras
da indústria quanto seus personagens.
A parte final acaba por ruir quando Chazelle opta por ir
contra o próprio ritmo e abordagem que estabeleceu para a segunda parte e, em
vez da loucura e caos das festas e do ritmo das produções, tira da cartola um
submundo bizarro que parece alienígena ao mundo do filme, e parece mais um
artifício meio sem pé nem cabeça para que determinados personagens tenham
determinado destino, tirando, naqueles momentos finais, o foco da indústria
hollywoodiana como uma máquina de moer sua própria gente, que é sempre
descartável e substituível, trocando essa indústria por mafiosos aleatórios.
Ainda que mantenha alguns momentos bastante dramáticos, o
tom básico de todo o filme é a comédia, pois esta parece ter sido a forma do
diretor achou para tornar o público mais receptivo a todo o seu espetáculo
bizarro, ou então para tornar tudo ainda mais estranho, apesar desta tendência
recente de tudo virar comédia já estar um tanto desgastada. O que sempre salva
o filme de si mesmo, até nos momentos mais fracos, é o excelente elenco,
principalmente Margot Robbie, que cada vez mais se firma como a maior estrela
de cinema deste século, com um talento dramático e cômico e uma presença de
tela extraordinários.
Por fim, a intenção de Chazelle de fazer uma grande
homenagem apaixonada ao cinema e uma denúncia das práticas da indústria parece
ter ficado soterrada numa orgia de caos. Seus momentos finais, numa montagem
que foi alvo de muitas críticas, o filme evoca diversas produções que, como O
Cantor de Jazz, marcaram momentos no cinema em que grandes mudanças
aconteceram, sugerindo que, não importa o que aconteça, o cinema sempre
resiste. Muda, se transforma, mas sobrevive. Porém, nenhuma dessas mudanças foi
uma demanda tão urgente e avassaladora quanto o surgimento do som que, num
prazo de 3 anos, tornou todo um modo de produção em completamente obsoleto. E estes
momentos finais, com o personagem com os olhos brilhando diante de uma tela,
evoca cenas finais semelhantes em A Rosa Púrpura do Cairo e Cinema Paradiso,
que fizeram mais com muito menos. E isso acaba resumindo toda a experiência de
Babilônia. Poderia ter sido muito mais com muito menos.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Música original: Justin Hurwitz
Design de produção: Florencia Martin e Anthony Carlino
Figurino: Mary Zophres
BABILÔNIA (Babylon, EUA – 2022)
Com: Diego Calva, Margot Robbie, Brad Pitt, Li Jun Li, Jovan
Adepo, Eric Roberts, Olivia Wilde, Olivia Hamilton, Katherine Waterston e Tobey
Maguire
Direção e
roteiro: Damien Chazelle
Fotografia:
Linus Sandgren
Montagem: Tom
Cross
Música: Justin Hurwitz