terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Os filmes do Oscar: IMPÉRIO DA LUZ – 1 indicação

Por Ricky Nobre

Sam Mendes estreou de forma bombástica no cinema em 1999, quando Beleza Americana levou cinco dos principais Oscars, incluindo melhor direção. Desde então, Mendes nunca esteve tão perto do prêmio novamente quanto em 2019 por seu épico de guerra 1917, quando a Academia surpreendeu a todos dando os prêmios mais importantes para o sul-coreano Parasita. Seu mais recente trabalho, Império da Luz, parece ser uma estranha confirmação para os rumores que diziam que Mendes aceitou muito mal a derrota naquele ano, pois o filme reúne várias características de um “oscar bait”. Porém, mais grave e surpreendente, é o quão mal ele administra esses elementos, resultando numa mediocridade inédita na carreira do diretor. 

 

Mendes não parece errar logo de início, e vai introduzindo os elementos um a um, a seu tempo. O ambiente de um velho cinema, com arquitetura art deco, capaz de trazer memórias a qualquer um que cresceu com as salas de exibição pré shopping centers, com suas cores quentes e douradas, parece ser o ambiente perfeito para o encontro de pessoas tão diferentes quanto Hilary, uma senhora branca com problemas de saúde mental, e Stephen, um jovem negro que quer ser arquiteto. Progressivamente, vão se estabelecendo três grandes temas centrais: a nostalgia e o amor pelo cinema, a saúde mental de Hilary e suas recaídas e surtos, e a violência do racismo sofrido por Stephen. O filme segue cativando pelos personagens e o ambiente, porém, a partir da metade, começa a ficar claro que o filme não possui um rumo concreto e que nenhum dos três temas tem um bom desenvolvimento.

 

Em seu primeiro roteiro solo, sendo sua única experiência anterior como roteirista a coautoria em 1917, a impressão é que Mendes pegou o que ele achou que a Academia mais gosta e tentou misturar tudo em um filme só. O que impressiona é que o erro mais provável era que, na ânsia em agradar, ele se atrapalhasse com a riqueza dos assuntos abordados e perdesse o foco. Mas o problema não é esse, e sim que nada é desenvolvido, tudo é incrivelmente superficial e simplista. O tema do cinema, se resume a uma conversa banal na cabine de projeção e uma cena perto do fim, com a exibição de um filme, e mais nada. A saúde mental frágil de Hilary é algo sustentado quase que exclusivamente pelo talento de Olivia Colman, e o racismo se resume a três episódios (o primeiro procura a tensão mas acha o humor involuntário e constrangedor), sendo o último o ponto mais tenso do filme. Mas é tudo tão raso que sugere ou um projeto feito muito às pressas, ou o total desconhecimento dos temas abordados e completo desinteresse em se aprofundar neles antes da fase de roteirização. Sequer a ambientação no ano de 1981 possui qualquer relevância, nem mesmo estética, e ainda que o ambiente de violência racista estivesse em ebulição naquele momento da era Thatcher, não era nada que não pudesse se adequar aos dias de hoje. 

 

Qualquer envolvimento que Império da Luz venha a oferecer, se deve à incrível fotografia de Roger Deakins e ao ótimo elenco, especialmente Colman. Parece absurdo que o desespero por um Oscar (somado a sua inexperiência como roteirista) tenha levado Mendes a perder completamente o rumo e, atirando para todos os lados, não acertasse nada, resultando no pior momento de sua carreira.

 

 COTAÇÃO:


INDICAÇÃO AO OSCAR:

Fotografia: Roger Deakins

 

IMPÉRIO DA LUZ (Empire of Light, EUA – 2022)

Com: Olivia Colman, Micheal Ward, Colin Firth, Toby Jones, Tom Brooke, Tanya Moodie, Hannah Onslow e Crystal Clarke

Direção e roteiro: Sam Mendes

Fotografia: Roger Deakins

Montagem: Lee Smith

Música: Trent Reznor e Atticus Ross

Design de produção: Mark Tildesley

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Os filmes do Oscar: BABILÔNIA – 3 indicações

Por Ricky Nobre

Ah, os loucos anos 20... Um período de prosperidade econômica do pós guerra, uma explosão de criatividade cultural, charleston, jazz, melindrosas e algumas barreiras começando a serem quebradas no início da liberação feminina; grandes invenções da virada do século estavam mais acessíveis e populares, como as gravações musicais, automóvel, telefone... e o cinema. Após Whiplash e La-La-Land, Damien Chazelle traz Babilônia como uma homenagem à Hollywood da época, que já era uma indústria milionária, enfatizando a “vida loca” e o impacto tsunâmico da chegada do som no cinema.

 

Para dar conta da grandiosidade do período, Chazelle apostou em uma escala épica. Das festas dionisíacas às superproduções, é tudo imenso, insano e caótico. Caos, inclusive, que se entranha e confunde com a própria narrativa. Com uma câmera tão frenética quanto a montagem, há uma overdose de virtuosismo técnico que pode ser percebido como uma distração desnecessária, ou mesmo um entrave à apresentação daquele universo, mas que é, no fundo, a forma concebida pela direção de materializar aquele momento no tempo, mostrando o cinema, as estrelas e a máquina da indústria como forças impossíveis de serem detidas. Porém, filmar o caos sem tornar o filme caótico é uma corda bamba na qual Chazelle se equilibra como um elefante numa festa. Ao mostrar as entranhas abertas da Hollywood de quase 100 anos atrás, o filme esconde o glamour, que era (e foi por muitas décadas) a cara da indústria, que ele, aparentemente, considera algo dado, conhecido e sem nada a acrescentar. A beleza glamorosa das estrelas não lhe interessa: ele quer as tripas.

 

Os três protagonistas de Babilônia nos conduzem a essas entranhas de Hollywood. A novata Nellie (baseada em Clara Bow, a primeira it girl), o astro Jack (baseado em John Gilbert) e Manny, jovem imigrante que começa de baixo e se torna um grande nome dos bastidores, trazem o público para dentro de toda essa loucura que está prestes a colapsar. Sem dúvida, os melhores momentos de Babilônia são os que reproduzem os ambientes de filmagem, que acontecem em duas cenas chave. Primeiramente, num set de filmes mudos, onde incontáveis filmes são filmados ao mesmo tempo (já que não há captação de som), cenários de interiores são abertos e aproveitam a luz do sol. Cada set é um mundo diferente, com sua própria história, gritaria, emoções e incêndios. Talvez a verdadeira Babilônia do filme esteja ali, onde em cada cenário se falar uma língua, se conta uma história diferente. Ainda que esteja imersa nessa estética frenética de Chazelle, esta sequência reproduz com muita precisão como era a máquina de fazer filmes em 1926. 

 

Na outra cena, temos um set em 1928, que é onde tudo muda. No cinema sonoro, tudo o que todos sabiam, diretores, produtores e, principalmente, atores, não vale mais nada. Chazelle consegue imprimir a mesma intensidade de caos do que na cena das filmagens mudas, porém, naquelas é um caos festivo, criativo e delirante. Na filmagem sonora é um caos de desespero, e todos os envolvidos sabem que vão precisar se adaptar rápido aos novos tempos, e quem não conseguir, está fora. E é na segunda metade do filme que tudo, de repente, estanca. Chazelle força um pouco a barra histórica e junta a nova ordem trazida pelo cinema sonoro com a necessidade de uma imagem pública mais comedida, conservadora e pudica de suas estrelas e da indústria em si (ainda que só aparente) com a chegada do Código Hays, que procurava moralizar o conteúdo “pervertido” dos filmes. Ele faz com que esses dois fenômenos pareçam um só e simultâneos, quando, de fato, foram separados por alguns anos. As tragédias que se seguem vêm justamente da inabilidade dos personagens em se adaptarem aos novos tempos, e até quem se adapta acaba não resistindo, puxados pelo turbilhão dos que caíram. 

 

Chazelle, ainda que orquestrasse toda essa ópera caótica, não meteu completamente o pé nessa jaca que ele mesmo cultivou. Se o filme é muito virtuoso em filmar suas metáforas escatológicas, sempre óbvias no melhor estilo do Triângulo da Tristeza, o mesmo não se pode dizer dos excessos sexuais que ocorrem nas festas de arromba do filme, principalmente na primeira. Se jatos de vômito e diarreias paquidérmicas são sempre muito bem enquadrados, as cenas de nudez e de atos sexuais passam muito rapidamente nos cantos da tela, enquanto a câmera frenética de Chazelle percorre todo o ambiente, ávida por enquadrar tudo ao mesmo tempo. Fosse o diretor tão detalhista com os arroubos sexuais das festas quanto foi com as escatologias, teria terminado com um filme NC-17 nas mãos, inviabilizando sua distribuição, pois essa é a realidade da Hollywood atual. Numa metalinguagem acidental, Chezele é tão refém das regras da indústria quanto seus personagens. 

 

A parte final acaba por ruir quando Chazelle opta por ir contra o próprio ritmo e abordagem que estabeleceu para a segunda parte e, em vez da loucura e caos das festas e do ritmo das produções, tira da cartola um submundo bizarro que parece alienígena ao mundo do filme, e parece mais um artifício meio sem pé nem cabeça para que determinados personagens tenham determinado destino, tirando, naqueles momentos finais, o foco da indústria hollywoodiana como uma máquina de moer sua própria gente, que é sempre descartável e substituível, trocando essa indústria por mafiosos aleatórios.

 

Ainda que mantenha alguns momentos bastante dramáticos, o tom básico de todo o filme é a comédia, pois esta parece ter sido a forma do diretor achou para tornar o público mais receptivo a todo o seu espetáculo bizarro, ou então para tornar tudo ainda mais estranho, apesar desta tendência recente de tudo virar comédia já estar um tanto desgastada. O que sempre salva o filme de si mesmo, até nos momentos mais fracos, é o excelente elenco, principalmente Margot Robbie, que cada vez mais se firma como a maior estrela de cinema deste século, com um talento dramático e cômico e uma presença de tela extraordinários. 

 

Por fim, a intenção de Chazelle de fazer uma grande homenagem apaixonada ao cinema e uma denúncia das práticas da indústria parece ter ficado soterrada numa orgia de caos. Seus momentos finais, numa montagem que foi alvo de muitas críticas, o filme evoca diversas produções que, como O Cantor de Jazz, marcaram momentos no cinema em que grandes mudanças aconteceram, sugerindo que, não importa o que aconteça, o cinema sempre resiste. Muda, se transforma, mas sobrevive. Porém, nenhuma dessas mudanças foi uma demanda tão urgente e avassaladora quanto o surgimento do som que, num prazo de 3 anos, tornou todo um modo de produção em completamente obsoleto. E estes momentos finais, com o personagem com os olhos brilhando diante de uma tela, evoca cenas finais semelhantes em A Rosa Púrpura do Cairo e Cinema Paradiso, que fizeram mais com muito menos. E isso acaba resumindo toda a experiência de Babilônia. Poderia ter sido muito mais com muito menos.

 

COTAÇÃO: 


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Música original: Justin Hurwitz

Design de produção: Florencia Martin e Anthony Carlino

Figurino: Mary Zophres

 

BABILÔNIA (Babylon, EUA – 2022)

Com: Diego Calva, Margot Robbie, Brad Pitt, Li Jun Li, Jovan Adepo, Eric Roberts, Olivia Wilde, Olivia Hamilton, Katherine Waterston e Tobey Maguire

Direção e roteiro: Damien Chazelle

Fotografia: Linus Sandgren

Montagem: Tom Cross

Música: Justin Hurwitz

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Os filmes do Oscar: A BALEIA – 3 indicações

Por Ricky Nobre

O cinema de Aronofsky é sombrio, intenso e, muitas vezes, esmagador. Essa abordagem já trouxe grandes unanimidades como Réquiem para Um Sonho e Cisne Negro, e também obras polêmicas como Mãe! Seu mais recente filme vem causando bastante alvoroço não apenas por ser a volta triunfal de Brendan Fraser mas também pelas reações sobre como o tema da obesidade foi tratado.

 

Aronofsky parte de uma proposta estética que evidencia e reforça o isolamento do personagem. Tendo origem teatral, a história se passa inteiramente na casa do protagonista que o diretor de fotografia Matthew Libatique, antigo colaborador do diretor, retrata de forma muito sombria, com baixíssima luminosidade e uma paleta intensamente esverdeada, confinada a uma janela 4:3, transformando a casa em uma caixa que aprisiona o personagem. Mas sua real prisão está nele mesmo. Com quase 300 quilos e severos problemas de mobilidade, o professor Charlie jamais sai de casa e dá aulas online. Sua única conexão humana além das aulas é sua melhor amiga Liz, que é enfermeira e cuida dele como consegue. Mas seu estado só piora, e ele se recusa a ir a um hospital. Desta forma, o filme já parte de uma premissa pessimista e fatalista, pois o personagem segue num caminho de autodestruição e decide simplesmente esperar a morte, e todo o filme parece ser uma contagem regressiva. 

 

A fotografia, que pode lembrar um thriller mórbido, se junta à música de Rob Simonsen, marcando a primeira vez em que Aronofsky trabalha com outro compositor além de Clint Mensell, seu colaborador em todos os seus longas anteriores. É uma música que evoca uma atmosfera um tanto etérea em momentos mais calmos, um tanto assustadora em momentos mais tensos e chegando quase ao terror em cenas como a do engasgo. É como se Aronofsky visse o protagonista como que vivendo em seu horror particular e esse horror se tornasse sua identidade e a do próprio filme. 

 

Essa visão de horror acaba se espalhando por todo o canto e contamina até as cenas mais tristes e trágicas. Aronofsky filma os episódios de compulsão alimentar como quem filma o ataque de um monstro e, na prática, é num monstro que ele é transformado. É tal a falta de delicadeza e de tato ao retratar momentos tão dolorosos na vida de quem vive transtornos como a compulsão, a depressão e a ansiedade, que vêm à mente ecos de seu primeiro grande sucesso Réquiem para Um Sonho. Nele, os quatro personagens principais iam progressivamente se afundando cada vez mais em seus vícios, até que, no ápice da narrativa, temos um show de horrores, onde cada um tem o pior e mais violento destino possível, numa apoteose de sensacionalismo moralista de fazer corar um instrutor do Proerd, mas que ressoou muito positivamente com o público. O que parecia um momento isolado no corpo de sua obra, agora volta como um olhar impiedoso aos excessos de Charlie. É como se Aronofsky tivesse uma opinião muito clara do que pessoas que sofrem de qualquer tipo de compulsão merecem.

 

O roteiro, assinado pelo próprio autor da peça original, daria espaço para um olhar mais humanizado e menos sombrio, ainda que trágico e dramático. Ele, porém, tem seus próprios problemas, como a personagem da filha Ellie, que é interessante em sua incontrolável raiva pelo abandono paterno, mas que é escrita de forma caricata, algo que a direção reforça, e que acaba funcionando como mais um instrumento de humilhação do protagonista em vez de ter uma função de antagonismo mais rica. A direção parece não tentar esconder a origem teatral e até mesmo a evidencia, não só na limitação espacial, mas também na dinâmica de entrada e saída de personagens (sendo um bom exemplo as vezes em que Ellie quase sai da casa e para subitamente à porta, num movimento bem marcado). À primeira vista, a escolha fatalista e desesperançada de Charlie parece não ser muito bem embasada pelo texto, pois ela obviamente vai além das preocupações com custos hospitalares. Mas não é muito difícil para o espectador juntar os pedaços, principalmente quando vai se revelando o destino de seu namorado. O que chama a atenção é como uma pessoa que tem sempre um olhar tão generoso para com o outro, a ponto de ver sempre o melhor na filha, não vê sentido em viver nem para poder recuperar o tempo perdido como pai. Aí cabe uma comparação com uma jornada semelhante em outra obra de Aronofsky, O Lutador.

 

O protagonista de O Lutador, assim como Charlie, mantém hábitos que lhe causam severos danos à saúde, notadamente, manter sua profissão violenta já numa idade avançada. E como Charlie, ele tenta recuperar o tempo perdido com a filha, que ele negligenciou quando estava no auge da profissão. Após seu fracasso em restabelecer seus laços com a filha, o lutador acaba escolhendo um caminho de autodestruição. Mas ao fazê-lo, é como se ele escolhesse uma afirmação de sua identidade: ele é um lutador, portanto, luta, e é assim que ele escolhe partir. Charlie é professor de redação, e é justamente como tal que ele tenta desesperadamente, até o último minuto, mais que salvar seu relacionamento com ela, mas salvar a filha dela mesma. É praticamente um ato de heroísmo. O olhar de Aronofsky, contudo, dissolve esse esforço ao tentar extrair o drama a partir de seu ponto de vista que vê seu protagonista de forma sempre monstruosa. O último take parece finalmente humaniza-lo, como se humano antes não fosse. Como diz a grande Lindsey Ellis: “Enquadramento sempre se sobrepõe ao texto. Sempre, sempre, sempre”. 

 

Ilesos de tudo isso saem Fraser e Hong Chau, com interpretações irretocáveis, principalmente Fraser, que encarou o desafio de um fat suit de 170 quilos. Ele tenta ao máximo extrair a emoção genuína, enquanto o diretor só traz desconforto e um olhar focado no grotesco, e a compreensível repulsa que o protagonista sente de si mesmo, a câmera transforma na do próprio filme. Aronofsky fracassa tanto na construção do melodrama que seu ápice, a já citada cena final, acaba sendo o perfeito resumo de tudo que há de errado com o filme.

 

O principal problema que faz com que A Baleia fracasse em sua tentativa de aproximar o público do drama vivido pelo protagonista é o olhar severo e esmagador que Aronofsky imprime. No filme, a personagem da amiga Liz, por medo ou frustração, diz verdades muito duras a Charlie, mas ela o faz porque o ama genuinamente. Já a filha, diz coisas horríveis para o pai porque verdadeiramente o despreza. Aronofsky pensa que ele é a amiga. Mas ele é a filha.

 

COTAÇÃO: 



INDICAÇÕES AO OSCAR:

Ator:  Brendan Fraser

Atriz coadjuvante: Hong Chau

Maquiagem e cabelo: Adrien Morot, Judy Chin e Anne Marie Bradley

 

A BALEIA (The Whale, EUA – 2022)

Com: Brendan Fraser, Sadie Sink, Ty Simpkins, Hong Chau e Samantha Morton

Direção: Darren Aronofsky

Roteiro: Samuel D. Hunter, baseado em sua peça teatral

Fotografia: Matthew Libatique  

Montagem: Andrew Weisblum   

Música: Rob Simonsen

Design de produção: Mark Friedberg e Robert Pyzocha

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Os filmes do Oscar: PASSAGEM – 1 indicação

Por Ricky Nobre

A difícil readequação dos veteranos de guerra à vida cotidiana gerou filmes tão memoráveis e diferentes entre sim quanto Os Melhores Anos de Nossas Vidas (1946), Amargo Regresso (1978) e o primeiro Rambo (1982). Passagem segue essa tradição e, apesar de não ter o impacto de seus antecessores, traz o diferencial de um olhar feminino da diretora, duas roteiristas e da atriz principal que também produz.

 

Extremamente debilitada física e mentalmente após seu veículo ser atingido no Afeganistão, Lyndsey passa semanas em um centro de recuperação, onde precisa reaprender a fazer praticamente tudo, desde falar e escovar os dentes até a andar. Sua recuperação física, porém, não é o foco da narrativa, pois se conclui em 15 minutos de filme. O grande obstáculo de Lyndsey é sentir-se parte da humanidade novamente, de sua família e sua cidade. Mesmo ainda frágil e com crises de pânico, ela tenta convencer seu médico a liberar sua volta ao exército, onde poderá ser realocada. O fato de Lyndsey sentir-se mais à vontade em uma guerra em outro continente do que em sua vida de classe média baixa, ao lado da mãe, é o principal ponto de estranheza que conduz a narrativa. Sua relação com o mecânico James, que também guarda um passado traumático, começa como um alívio e uma janela para a recuperação de ambos, mas que também irá testar o quanto Lyndsey consegue manter uma relação saudável.

 

A direção de Lila Neugebauer procura evitar ao máximo os clichês dramáticos ligados a essa temática da volta de ex-combatentes. É tudo muito sutil, comedido, algo que dá muito certo boa parte do tempo, mas que também acaba tendo um efeito colateral de um certo distanciamento emocional, ainda que apenas parcial. Isso porque a dupla de atores principais, Jennifer Lawrence e Brian Tyree Henry, consegue transmitir o máximo possível as emoções de seus personagens dentro dessa proposta intimista e reservada. Talvez o aspecto mais problemático seja a relação de Lyndsey com a mãe, que é escrita de forma tão básica, com apenas leves sugestões das reais tensões entre as duas, que acaba limitando nossa compreensão do que torna a convivência delas tão problemática. 

 

A forma como a protagonista chega a uma conclusão de suas questões pode parecer simplista, mas é bastante efetiva, conseguindo até dar uma maior clareza a questões nebulosas do roteiro. Ainda que, apesar de uma boa concepção, a condução da diretora seja um tanto falha, Lawrence e Henry seguram o filme com tanto talento, transmitindo ao máximo a emoção de seus personagens, sem sair da proposta estabelecida pela direção, que o resultado final chega a ser positivo, ainda que deixe a impressão de que poderia ter ido bem além.

 

COTAÇÃO: 

 

INDICAÇÃO AO OSCAR:

Ator coadjuvante: Brian Tyree Henry

 

PASSAGEM (Causeway, EUA – 2022)

Com: Jennifer Lawrence, Brian Tyree Henry, Jayne Houdyshell, Linda Emond e Stephen McKinley Henderson

Direção: Lila Neugebauer

Roteiro: Ottessa Moshfegh, Luke Goebel e Elizabeth Sanders

Fotografia: Diego García

Montagem: Robert Frazen e Lucian Johnston

Música: Alex Somers

Design de produção: Jack Fisk

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Os filmes do Oscar: TRIÂNGULO DA TRISTEZA – 3 indicações

Por Ricky Nobre

O sueco Ruben Östlund é um dos maiores nomes do cinema europeu recente. Adorado em Cannes, onde seus quatro longa-metragens saíram premiados, chega à sua segunda indicação ao Oscar, após The Square para filme estrangeiro em 2017, desta vez na categoria melhor filme. Seu estilo sempre foi controverso, mas Triângulo da Tristeza é provavelmente seu filme mais divisivo, um autêntico “ame ou odeie”.

 

Dividido em três partes, o filme começa apresentando seus protagonistas, o casal de modelos Yaya e Carl. Uma longa e aparentemente tola discussão sobre uma conta de restaurante se estende não só por toda essa parte mas até meados da segunda, e estabelece um tom que parecia ser o que o diretor seguiria. Os diálogos são construídos num tom um tanto realista, mas também com uma certa confusão proposital, e o mérito da questão não fica óbvio, assim como também não parece óbvio um julgamento moral sobre cada um dos personagens (por vezes ele parece ser apenas um cara insuportável, enquanto ela chega a admitir que é manipuladora). É uma discussão que não só trata de convenções de gênero, mas também sobre dinheiro e poder. Temos a impressão de que o caminho de Östlund não será o da obviedade. Mas não eram bem esses os planos do diretor.

 

Podemos conjecturar que o desfile caótico de obviedades que se amontoam no segundo ato é parte da crítica do diretor, algo na linha de criticar a superficialidade sendo superficial. É possível relembrar aqui toda uma produção teórica sobre cinema e sobre arte em geral que problematiza a intencionalidade, mas podemos ficar só com o ditado popular que diz que delas o inferno está cheio. O roteiro ainda mostra boas ideias, mas elas são literalmente afogadas em escatologia, numa epidemia de vômitos e esgotos explosivos, porque cobrir a elite de dejetos foi a forma mais inteligente e profunda que o Östlund encontrou para mostrar como ela realmente é. Daí é um efeito dominó de superficialidades (os diálogos entre o capitão e o milionário russo nunca atinge sua potencialidade), até um corte brusco para o terceiro ato.

 

E é nesta terceira parte, para a qual parece haver um estranho consenso de ser a mais fraca do filme, que Östlund consegue dar uma salvada nesse naufrágio e abre umas questões e as desenvolve de forma um pouco menos tola (mas pouco, bem pouco), a partir do momento em que as relações de poder se invertem. O desfecho em aberto talvez coloque a questão mais relevante e ousada do filme, onde ele propõe que o poder corrompe inexoravelmente ou que o retorno da classe trabalhadora que se libertou da opressão à sua antiga condição é rigorosamente inaceitável. No saldo final, porém, a crítica social de Triângulo da Tristeza tem a profundidade de um garoto de 15 anos xingando muito no Twitter. Dá até vontade de rever O Mordomo e a Dama (1957), a genial comédia britânica de Lewis Gilbert. Tem luta de classes, desconstrução da elite, utopia, desilusão, naufrágio e ilha. E tem inteligência também.

 

COTAÇÂO:


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Ruben Östlund

Roteiro original: Ruben Östlund

 

TRIÂNGULO DA TRISTEZA (Triangle of Sadness – 2022)

Com: Charlbi Dean, Woody Harrelson, Harris Dickinson, Zlatko Buric, Dolly De Leon, Alicia Eriksson e Carolina Gynning.

Direção e roteiro: Ruben Östlund

Fotografia: Fredrik Wenzel

Montagem: Mikel Cee Karlsson e Ruben Östlund

Design de produção: Josefin Åsberg

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Os filmes do Oscar: BARDO: FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES – 1 indicação

Por Ricky Nobre

O cinema de Iñárritu é um cinema pesado. O mais sombrio dos Los Tres Amigos (ele e seus compatriotas mexicanos Del Toro e Cuarón), Iñárritu sempre testou em sua filmografia os limites suportáveis do drama. Seus personagens sofrem (e muito) física, emocional ou socialmente. Sua opção pelo mais sombrio da alma humana torna-se óbvia quando vemos, por exemplo, em O Regresso a jornada do protagonista ser de vingança, quando a figura histórica que inspirou o filme, na verdade, perdoou seu traidor. Em Bardo, Iñárritu volta-se para si mesmo, e ainda acumula as funções de diretor, produtor, montador, roteirista e compositor.

 

O diretor cria o jornalista e documentarista Silverio como seu alter ego. Numa jornada surrealista, o filme parece falar sobre a História do México, sua política e cultura, quando tudo, de fato, gira em torno do protagonista, ou seja, é a relação dele com esses aspectos do México que estão em pauta. Bardo vai construindo sua estrutura narrativa sem muita preparação para o espectador. As situações surreais possuem uma curiosa lógica de sonho, que podem ser extravagantes, como um bebê voltar ao ventre da mãe, ou sutis, como não conseguir encontrar alguém dentro de casa que estava com você segundos antes. A linguagem surreal em si não se apresenta exatamente como um problema. É, de fato, uma proposta interessante e exala até mesmo uma certa simpatia (algo totalmente inesperado vindo do normalmente áspero diretor), pois trata de alguns temas pelos quais o público é empático com facilidade, como Silverio pequeno em frente ao pai, ou os problemas de aceitação da perda de um filho.

O principal problema de Bardo é que Iñárritu o realizou como uma sessão de análise de si mesmo, porém não num estágio avançado, mas inicial. As questões que o assombram e, consequentemente, a seu personagem, como as relações familiares, seu afastamento total do México, seja por morar em Los Angeles, seja por nunca mais ter filmado lá de novo, a dor da perda do filho, a mistura de orgulho e vergonha em receber homenagens, parecem questões ainda mal resolvidas para ele. Até mesmo sua relação com o México é estranha, pois assim como ele se mostra consciente de que trabalha no país que depredou sua terra natal, suas opiniões sobre o México têm um amargor um tanto estranho. E se são de fato mal resolvidas, ele não parece se dar conta disso, o que fica evidente por um tom de egotrip, cuja intensidade varia de acordo com a cena. O filme é mais do que autocentrado, o que não seria exatamente ruim, mas autoindulgente, o que enfraquece o que parece ser o principal motor do protagonista, que é a culpa por ter se afastado, tanto do México, quanto da família. Quando, em determinado ponto, um personagem critica o último filme do protagonista, que tem, essencialmente, as mesmas características do próprio Bardo que estamos assistindo, e Silverio defende seu filme com veemência, fica inegável o quanto Iñárritu está imerso em si.

 

A fotografia, que rendeu a Bardo sua única indicação ao Oscar, toda feita com grande-angular, parece querer se referir aos documentários de Silverio, com tudo focalizado, com profundidade de campo total, mas que contribui muito para exacerbar esse distanciamento emocional com os personagens, que é quebrado raramente, como em pontos já citados. Por outro lado, as distorções nas laterais acentuam o clima surreal de todo o filme. Se Bardo, em sua maior parte, não possui o clima opressivo (e depressivo) do restante de sua filmografia, é porque Iñárritu reservou essa visão sombria para um aspecto mais sutil, já ao fim do filme. Em uma revelação que explica toda a lógica surreal do filme (não que precisasse explicar, mas até que funciona) Iñárritu parece perceber e se entregar ao fato de que ainda não consegue lidar com nada do expôs de si e sua vida. Bardo marca sua volta após o maior hiato que já teve entre projetos, sete anos após lançar O Regresso. Em Bardo, sugere que precisa sumir, se refugiar e processar tudo do seu próprio jeito. Ele diz que volta, mas vai demorar. Talvez isso sugira um hiato maior por vir. Ou que Bardo é justamente o resultado desse hiato. Bardo se mostra também como uma luta de Iñárritu em se comunicar com o mundo à sua volta, pois existem diversas situações emocionais e simpáticas no filme, mas o protagonista não é assim. É como se ele não se encaixasse em seu próprio delírio. E provavelmente, não teria como ser diferente. De Fellini, só poderia sair . De Spielberg, só poderia sair The Fabelmans. E de Iñárritu, só poderia sair Bardo.

 

 COTAÇÃO:

 

INDICAÇÃO AO OSCAR:

Fotografia: Darius Khondji

 

BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES (Bardo, Falsa Crónica De Unas Cuantas Verdades, México – 2022)

Com: Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani, Ximena Lamadrid, Íker Sánchez Solano, Luis Couturier e Andrés Almeida.

Direção: Alejandro G. Iñárritu

Roteiro: Alejandro G. Iñárritu e Nicolás Giacobone

Fotografia: Darius Khondji

Montagem: Alejandro G. Iñárritu e Monica Salazar

Música: Bryce Dessner e Alejandro G. Iñárritu     

Design de produção: Eugenio Caballero