By Nanael Soubaim
Há muitos filmes que mereceriam uma releitura de Hollywood, a maioria deles eu gostaria muito de ver em uma, mas há um que merece e eu espero que jamais ganhe. Explicarei, é só um minutinho e já lhes digo.
Mädchen in Uniform, que em português literal seria "senhoritas no uniforme", é um drama alemão escrito por Christa Winsloe (aqui) e filmado pela primeira vez em 1931, baseado na bem sucedida peça "Gestern und heute", ou "ontem e hoje" em tradução literal. Sua característica mais marcante é ter o elenco todo feminino, não se vê um homem durante todo o filme. Essa primeira versão utilizou grande parte do elenco do teatro e filmado no orfanato militar de Postdam.
A trama se passa no fim da bélle époque, conta a história da adolescente órfã Manuela von Meinhards, que perdera a família recentemente e é encaminhada ao orfanato, onde conhece a professora conhecida na trama por Governer Fräulein von Bernburg. Era um orfanato militar do início do século passado, as formalidades eram sim realmente necessárias à época. Quem quiser voltar no tempo e mostra-lhes métodos melhores, sinta-se à vontade. O primeiro elenco tem Hertha Thiele (aqui) como Manuela e Dorothea Wieck (aqui) como Fräulein Elisabeth von Bernburg.
O enredo foge muito aos dramas esperados de um filme sobre orfanatos. O que temos aqui não é uma garota rebelde que quer se livrar das amarras formalistas de uma época repressora, bla-bla, bla-bla e bla-bla. Manuela é uma garota muito bem ajustada, obrigado, seu único sofrimento até então é mesmo a perda da família. O enredo trata de lesbianismo. Muito diferente do que alguns de vocês estão pensando e pelo que já começam a suar, não é nem de longe um filme erótico, não há sequer uma cena de intimidade sexual. Há carinho, algumas carícias leves, abraços longos, mas não o que muita gente esperaria de uma trama assim. A certa altura Manuela beija Fräulein, mas para os onanistas é a coisa mais sem graça do mundo.
Devido ao trauma súbito e recente, a professora passa a dar atenções especiais à nova interna. O que normalmente a transformaria em uma mãe substituta para a aluna, acaba despertando a paixão dela. Trata-se de uma professora experiente, mas relativamente jovem e muito bonita, que certamente desperta a atenção masculina quando sai à cidade. Bem, o homossexualismo não era novidade na Europa da época, só era velado, mas nesta condição chegou a ser bastante tolerado pela maioria; embora um casamento nos moldes tradicionais continuasse nos planos sociais, enfim. Com o tempo e a resistência da professora, a moça tímida e aplicada passa a ter os arroubos costumeiros da adolescência. Em uma peça teatral dentro do orfanato, vestida de garoto do fim da idade média, Manuela se vale do papel, fura o roteiro e se declara publicamente à professora, sendo repreendida com dureza compreensível para a época, pela duquesa que comanda o orfanato. Claro que Hitler não gostou e esta foi uma das obras proscritas pelo nazismo.
Manuela chega a tentar se matar, se atirando da escadaria. O orfanato é um prédio bem alto para a época. Isso fez a directora rever seus métodos, mas causou a renúncia da professora e... Não contarei o filme, ele está disponível para baixar e até algumas locadoras têm as duas versões mais famosas. A segunda versão foi filmada em 1958. Manuela é interpretada pela maravilhosa Romy Schneider (uma boa biographia aqui e uma aqui), Lilli Palmer (aqui) fez Elisabeth. Com o cinema falado, a expressividade vocal e a modulação da própria voz passaram a fazer parte do filme, e Romy emprestou uma doçura rebelde muito grande à Manuela. Ela foi mais melancólica do que Hertha, mas por isso mesmo até um pouco mais agressiva na demonstração de uma paixão proibida naquele ambiente de disciplina severa.
O filme mostra a realidade nua, mas sem qualquer apelação. Tudo é contado de forma muito gentil, às vezes tempestuosa, mas muito gentil. Mesmo na versão de 1958, quando já era normal fazer alusão clara a relações sexuais, quando não insinuadas abertamente, o filme se preserva de excitações que distrairiam a atenção do público de sua mensagem central. Não há mais rebeldias do que as necessárias, não há mais intimidades do que as necessárias à trama, não há sequer um discurso explícito e politizado para colocar tudo a perder. Tudo, exceto a beleza da obra, está dentro do absolutamente necessário. E a segunda versão tem mais beleza por quadro do que as últimas bombas do cinema têm todas juntas em sua íntegra.
Por que não quero que façam um remake? Porque os productoers de hoje dificilmente saberiam respeitar a obra. Hoje sequer se cogita a sutileza com que as duas versões trataram a paixão arrebatadora entre aluna e professora. Hoje se quer simplesmente chocar, como se as aves fossem a solução para os problemas mundiais. Bem, vou contar-lhes uma história triste e bela, a melhor forma de fazer um cabeça-dura ter certeza de que tem razão, é bater de frente com ele, ou chocá-lo pura e simplesmente. Eu sou um cabeça-dura assumido, sei do que estou falando.
Dificilmente um director vai aceitar que tudo fique em um beijo roubado, que as carícias não adentrem nos vestidos e que não haja um homem sorrateiro que não existe no livro. Vai querer transformar o filme ou em uma tragédia desnecessária, ou em um lesbo-pornô desnecessário. Por isso, até que os factos e os parâmetros provem o contrário, prefiro que não haja refilmagens.