domingo, 25 de abril de 2021

Os filmes do Oscar: O SOM DO SILÊNCIO – 6 indicações

Por Ricky Nobre

Existem vários tipos de luto. Um deles pode ser o luto por si mesmo ou por uma parte de sua vida que desaparece de uma hora para outra. Em O Som do Silêncio, Ruben, um baterista que forma uma dupla de heavy metal com sua namorada Lou, perde drasticamente a audição em questão de dias. Ele inicialmente finge que não está acontecendo, até que procura um médico que lhe mostra a gravidade da situação e que era imperativo se afastar de ruídos altos para preservar a audição que restou. Mas, em negação, continua se apresentando em turnê, até que o som o abandona quase que completamente. Quando a raiva bate e se mostra um perigo até para ele mesmo, Lou o convence a procurar ajuda, e ele chega numa comunidade de surdos onde ele precisará aprender a viver em sua nova condição.

 

O que difere O Som do Silêncio de tantos outros dramas edificantes de sofrimento e superação é sua crueza e sua honestidade. Ainda que o diretor Darius Marder opte com frequência por sutileza e delicadeza, a forma como acompanhamos a história de Ruben é carregada de verdade, seja a que ele experimenta e sente, seja a das pessoas que o rodeiam. O objetivo de Paul, que gerencia a comunidade onde ele passa a viver, é de que ele aceite sua nova condição e aprenda a viver com ela como sua realidade atual, que ele consiga um momento em que ele fique parado, em repouso, em silêncio, sem que a cabeça gire a 300 por hora sobre o que acontece com ele. Mas isso é tudo o que Ruben pensa. Inconformado, ele acredita precisar arrumar dinheiro para os implantes que podem lhe trazer de volta a audição, para poder voltar com Lou, botar a banda na estrada, gravar o disco que planejavam, e tudo voltar como era antes. Só que nada será como antes novamente. Ele aprende libras e se conecta cada vez mais com as pessoas da comunidade, vive momentos de alegria, mas sua vida anterior não lhe sai da cabeça.

 

O filme é muito bem-sucedido ao mostrar os amores de Ruben. Ele ama a música, não apenas o metal que toca em seus shows, mas velhas gravações de blues e da Motown que rodam em seu toca-discos. Ama Lou por ser sua parceira musical, ama a pessoa que ela é e ama ela ter “salvado sua vida”, pois ele parou de usar drogas nos quatro anos em que estão juntos. Ele ama seu trabalho e ama a estrada por onde viaja em seu ônibus-trailer, seu lar, indo de cidade em cidade, de show em show. Com isso tão bem estabelecido, sentimos o brutal impacto de, com a perda da audição, Ruben perder tudo isso de uma vez, já que nem a convivência com Lou é possível, pois na comunidade, nessa fase de aprendizado, ninguém de fora é permitido. Daí a obsessão de Ruben em reaver tudo que perdeu, não importa os custos.

 

A total imersão que sentimos no mundo do protagonista se dá principalmente por três fatores: a câmera, o som e Riz Ahmed. A câmera segue Ruben com constante intimidade, sempre atenta aos pequenos gestos e expressões. Geralmente livre e “na mão”, é uma câmera que lembra o estilo documental, da mesma forma que a montagem segue um pouco essa lógica, onde os saltos temporais ficam implícitos nas diferenças de comportamento e atividades do personagem. A experiência anterior exclusiva do diretor nessa área (montou e escreveu diversos documentários e dirigiu um) explica seu estilo.

 

Quanto ao som, talvez seja um dos experimentos mais extraordinários no cinema em décadas. Um absoluto primor técnico e artístico, o som, ao critério extremamente sensível e preciso da direção, nos joga para dentro e para fora da cabeça de Ruben, sempre no momento exato. A cada fase de perda de audição, ouvimos exatamente o que ele ouve, trazendo para muito perto de nós seu medo, desespero e decepção. Quando ouvimos o som puro do mundo à volta dele, é sempre extremamente rico, repleto de camadas belas e sutis dos mais diferentes sons e ruídos, e tudo sem ser exagerado nem embolado, não é uma cacofonia. É a música do mundo. É como se o diretor esfregasse na nossa cara a beleza dos sons que nos rodeia e aos quais não damos valor, mas que agora estão fora do alcance de Ruben. O contraste com o som do silêncio de Ruben é sempre preciso e chocante. Outro destaque do trabalho sonoro é a reprodução do som dos implantes, drasticamente diferentes dos sons reais, que também têm alto impacto dramático.

 

Por fim, temos o trabalho extraordinário do ator Riz Ahmed. Sua total entrega vai desde a preparação, onde aprendeu libras e a tocar bateria, até a forma como ele expressa cada emoção, seu olhar de raiva, de medo, seu olhar perdido por não saber como viver sem ouvir, a determinação, a decepção e a serenidade. Ahmed nos faz íntimo de Ruben e torcemos e sentimos por ele a cada passo.

 

Talvez o filme peque apenas por tomar algumas liberdades justamente no que se refere aos implantes auditivos. Apesar de mostrar com total realismo seu funcionamento, eles, apesar de seu alto custo, são na realidade cobertos pela imensa maioria dos planos de saúde dos EUA, ao contrário do que é dito no filme. Da mesma forma, existe todo um longo trabalho anterior à cirurgia não só de preparação mas de esclarecimento sobre o real efeito deles na audição, assim como a recuperação da cirurgia não é tão imediata. Num filme com uma preocupação realista tão profunda, pareceu que essas liberdades serviram como um atalho dramático do roteiro, que não casa muito bem com o restante do filme. Mas para quem não está familiarizado com o assunto, flui sem problemas.

 

Darius Marder nos oferece uma surpreendente estreia na direção de ficção e é, sem dúvida, um nome para ser acompanhado com atenção. O realismo da abordagem e a escolha por evitar a emoção fácil, o melodrama e as “mensagens edificantes” tornam o filme uma experiência singular. Seguimos o protagonista em uma viagem que vai do som do metal pesado que ele toca em seus shows, ao som metalizado e distorcido dos implantes que ele julgava serem sua salvação. Sound of Metal é uma experiência triste, um tanto desesperadora, mas profundamente humana.

 

COTAÇÃO: 


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Ator: Riz Ahmed

Ator coadjuvante: Paul Raci

Roteiro original: Darius Marder e Abraham Marder

Som: Nicolas Barker, Jaime Baksht, Michelle Couttolenc, Carlos Cortes e Philip Bladh

Montagem: Mikkel E. G. Nielsen

 

O SOM DO SILÊNCIO (Sound of Metal, EUA – 2019)

Com: Riz Ahmed, Olivia Cooke, Paul Raci, Lauren Ridloff e Mathieu Amalric.

Direção: Darius Marder

Roteiro: Darius Marder e Abraham Marder

Fotografia: Daniël Bouquet

Montagem: Mikkel E. G. Nielsen

Design de produção: Jeremy Woodward

sábado, 24 de abril de 2021

Os filmes do Oscar: A VOZ SUPREMA DO BLUES – 5 indicações


Por Ricky Nobre

O dramaturgo norte americano August Wilson foi o criador do que ficou conhecido como “O Ciclo do Século” ou “O Ciclo de Pittsburgh”, composto por dez peças teatrais, cada uma ambientada em uma década do século XX, retratando a realidade da comunidade negra dos EUA. Em 2016, Denzel Washington produziu, dirigiu e estrelou Um Limite Entre Nós, ambientada nos anos 50. Agora ele volta apenas como produtor trazendo A Voz Suprema do Blues, que se passa na década de 20, como parte de um projeto de filmar todas as dez peças de Wilson.

 

O título original Ma Rainey's Black Bottom se refere a uma das mais de 100 músicas gravadas por Ma Rainey, conhecida como “a mãe do blues”, pelo selo Paramount entre 1923 e 1928. O filme é baseado no fiapo de fatos que se conhece da biografia de Ma Rainey. Mais do que tentar traçar um retrato fiel da história da cantora, o texto procura retratar com fidelidade seu talento, a personalidade bombástica e também a realidade dos artistas negros da época. Desta forma, acompanhamos a narrativa ficcional de um dia de gravação de Ma Rainey e sua banda, em dezembro de 1927, quando ela gravou uma dúzia de músicas, além daquela dá o título. Fora Ma Rainey e o dono da gravadora, todos os demais personagens são ficcionais, e contam a mesma história da protagonista, sob outro ponto de vista.

 

Enquanto ensaiam numa sala fechada, os membros da banda mostram diferentes visões sobre o que é ser negro nos EUA em geral e artistas negros em particular, assim como todo preconceito e violência que sofrem. Músicos de gerações diferentes têm visões que coincidem ou se colidem. O destaque é para o jovem trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu derradeiro papel), um músico de muito talento, muita ambição, pouca paciência e quase nenhum limite. Ele sabe que tem talento, conhece a indústria da música (que crescia), sabe o que faz sucesso, quer impor a si e a suas ideias, pois tem fé em si. Sua agressividade de jovem impaciente, mas também de “fera enjaulada”, colide com a visão de vida e personalidades mais cautelosas de seus colegas músicos mais velhos e experientes. Com terríveis memórias de violência racial vindas da infância, Levee não se conforma com limites, seja uma porta trancada, sejam os injustos limites que lhe são impostos por sua cor. Assim, ele sempre tenta transpor esses limites, seja se engraçando com a namorada de Ma Rainey, seja tentando impor um arranjo diferente do combinado.

 

De forma similar, Ma Rainey, já estabelecida na carreira e um grande sucesso de vendas de discos que transcendeu o sul e dominou o resto do país, vê no valor de sua arte o seu poder de barganha. Ela impõe sua vontade, tem “ataques de diva”, cria dificuldades onde talvez elas não precisassem existir. Mas ela sabe o enorme valor financeiro que ela tem para a gravadora, e que esse é o único valor que o empresário branco vê nela. O que ela quiser exigir, ela exige, e se esse é o único jeito de ter um branco em posição de poder tratando-a com o respeito devido, então assim será. Com narrativas, a maior parte do tempo, separadas, Levee e Ma Rainey dividem a cena e entram em colisão em um tempo reduzido do filme, sendo bem maior os seus desenvolvimentos em separado. 

 

A fraqueza do filme vem da limitada habilidade do diretor George C. Wolfe e do roteirista Ruben Santiago-Hudson em transpor a peça teatral para a tela. Com enorme experiência em teatro e quase nenhuma em cinema, ambos falham em adaptar o tom dos diálogos, das interpretações e do mise-en-scène para a tela. Por mais admirável que seja a performance de Chadwick Boseman, esta é uma bela interpretação para o palco. Todas as cenas e toda a dinâmica entre os músicos são essencialmente teatrais, com longos monólogos e uma dramaticidade que não rende tão bem na tela. O diretor tenta dar vida à câmera, que passeia pelo cenário, fugindo da imobilidade, mas as interpretações são teatro puro. Porém, quando Viola Davis entra... tudo muda como num passe de mágica. Davis pega aquele mesmo texto, com aquela mesma direção e transforma aquilo em cinema como se para isso bastasse respirar. A impressão é de que tudo é feito rigorosamente sem esforço algum. Tamanho é o poder de sua performance que todos os demais atores com os quais divide a cena respondem de forma semelhante, e tudo vira mais cinema. 

 

Por mais que Ma Rainey tenha sido um exemplo pioneiro de artista negra se impondo numa indústria de entretenimento controlada por brancos, ao fim, é impossível tratar de questões deste porte sem uma grande dose de amargura. Na inexperiência, no inconformismo e na frustração de Levee, ele acaba direcionando seu ódio para aquele que menos merecia, enquanto o dono da gravadora segue o padrão, apropriando-se da arte de negros e vendendo-a por brancos para brancos. Ao arrombar a porta, ela leva a lugar nenhum. Uma síntese de dois aspectos da luta de artistas negros para se imporem que poderia ter gerado um belíssimo filme se fosse entregue a artistas que efetivamente dominassem a linguagem do cinema.

 

COTAÇÃO: 


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Ator: Chadwick Boseman

Atriz: Viola Davis

Direção de arte: Mark Ricker, Karen O'Hara e Diana Sroughton

Maquiagem e cabelo: Sergio Lopez-Rivera, Mia Neal e Jamika Wilson

Figurino: Ann Roth

 

A VOZ SUPREMA DO BLUES (Ma Rainey's Black Bottom, EUA – 2020)

Com: Viola Davis, Chadwick Boseman, Colman Domingo, Glynn Turman, Michael Potts, Jeremy Shamos e Taylour Paige

Direção: George C. Wolfe

Roteiro: Ruben Santiago-Hudson, baseado na peça de August Wilson

Fotografia: Tobias Schliessler

Montagem: Andrew Mondshein

Música: Branford Marsalis

Design de produção: Mark Ricker

 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Os filmes do Oscar: MANK – 10 indicações

Por Ricky Nobre

Em 1971 a renomada crítica cinematográfica Pauline Kael publicou um artigo intitulado Raising Kane, onde defendia a tese de que o roteiro de Cidadão Kane foi escrito exclusivamente por Herman Mankiewicz e, portanto, Orson Welles não merecia nem o crédito de co-roteirista nem o Oscar recebido em 1942. Ainda que muitos colegas de profissão tivessem criticado o conteúdo do artigo, e mais ainda, que o cineasta Peter Bogdanovich tenha desmentido ponto a ponto os argumentos de Kael em um artigo próprio no ano seguinte, a história se espalhou de tal forma que ainda hoje é repetida como verdade. Com uma produção absolutamente impecável, o novo filme de David Fincher Mank falha justamente por se apoiar numa tese já desbancada por documentos arquivados da época, mais precisamente, os sete tratamentos diferentes do roteiro, onde apenas o primeiro é de autoria exclusiva de Mankiewicz. Os seis seguintes são em parceria com Welles. 

 

O roteiro de Mank foi escrito originalmente pelo pai de Fincher na década de 90, e em fins daquela década esteve prestes a ser produzido, mas o estúdio não aprovou a abordagem estética de Fincher, cancelando o projeto. Recentemente, porém, o cineasta recebeu carta branca da Netflix para produzir o filme como quisesse. De fato, toda a estética de Mank é justamente seu maior trunfo. Infelizmente, porém, Fincher se apaixonou pelo roteiro de seu pai, ainda que sua base fosse uma teoria já completamente refutada. O próprio diretor, junto com Eric Roth, revisou o roteiro na tentativa de torna-lo mais condizente com essa realidade, mas o fato é que a base permanece, que é a reivindicação total da autoria do roteiro.

 

A concepção de Mank é fascinante. Rodado em preto e branco, o filme passou por diversos processamentos na pós-produção para que a imagem captada em digital 8K parecesse ter sido rodada em película do início de 1940. Pequenos riscos e até as tradicionais “marcas de cigarro” que marcavam as trocas de rolo no momento da projeção foram incluídos. Entretanto, muito mais que esses efeitos de pós-produção e a simulação de um estilo antigo, é a própria beleza do trabalho do fotógrafo Erik Messerschmidt que impressiona e dá ao filme o que talvez seja sua principal identidade. O curioso, porém, é a escolha da proporção 2,20:1 para a tela, em vez da 1,33:1 usada na época. Talvez para dar uma sensação de mais espaço e grandiosidade. Mas não deixa de ser estranho, uma vez que tanto trabalho foi despendido para simular uma estética específica.

 

 Da mesma forma, o som, que muitos insistem em afirmar que é mono, é de fato multicanal, principalmente na música. Porém, a maioria dos sons são realmente concentrados no centro da tela, com a ambientação surround tendo apenas um “eco” do filme, simulando a projeção numa grande sala de cinema. Esse eco, curiosamente, é verdadeiramente a gravação e isolamento da reverberação do filme sendo reproduzido numa grande sala, que foi devidamente gravada e remixada de volta no filme. Porém, a principal e mais fascinante característica do som é uma perfeita simulação do timbre e das limitações características da tecnologia da época, trabalho que levou muito mais tempo do que o esperado. O resultado é perfeito, obra do genial engenheiro de som Ren Klyce. 

 

A música de Trent Reznor e Atticus Ross (da banda Nine Inch Nails), é rigorosamente diferente do trabalho eletrônico composto por eles para todos os demais filmes de Fincher a partir de A Rede Social. Aqui, temos um trabalho 100% acústico com composições de jazz e o estilo clássico de scoring hollywoodiano, com suaves toques herrmanianos (Cidadão Kane foi, de fato, o primeiro filme do lendário compositor Bernard Herrmann). Microfones antigos e os mesmos filtros e equalizações criados para a mixagem do filme foram usados para dar a sonoridade de gravação antiga. 

 

Na proporção em que o roteiro trabalha a serviço desta estética retrô, ele funciona muito bem. Os diálogos são espertos, rápidos, recitados pelos atores com os exatos maneirismos das interpretações da Hollywood clássica. Se os atores não soam como pessoas reais falando, é justamente porque muito trabalho e tempo foram despendidos para que fosse exatamente assim. Desta forma, o Mank apresentado pelo ator Gary Oldman segue essa linha de língua ferina e repostas rápidas e precisas, moduladas entre vários graus de embriaguez. A montagem intercala o processo criativo de Mank, que dita o roteiro para sua assistente, preso à cama após um acidente de carro, com memórias da década anterior e seu trabalho entre gigantes da indústria como Louis B. Mayer e Irving Thalberg, e suas lembranças de William Randolph Hearst e a atriz Marion Davies, sua amiga e paixão platônica. Esses flashbacks servem para dar suporte à inspiração de Mank para o roteiro que, mesmo não citando nomes, era baseado na vida do magnata da comunicação Hearst. 

 

Não deixa de ser curioso, de um jeito meio bizarro, que o filme, numa exemplificação do poder de manipulação da mídia controlada por Hearst (em conluio com a MGM), denuncie a propagação de depoimentos falsos em campanhas e cinejornais com o intuito de minar a campanha do candidato democrata à prefeitura de Los Angeles, enquanto o próprio roteiro se baseia numa premissa falsa. O próprio personagem de Hearst foi muito menos explorado do que poderia, sendo ele a peça-chave do roteiro que estava sendo escrito por Mank.

 

Apesar do brilhantismo técnico e estético e dos excelentes diálogos valorizados pelo ótimo elenco, Mank carece de um brilho além dessas qualidades. Mesmo como uma grande homenagem a Cidadão Kane em particular e à Hollywood clássica em geral, a história contada em si não é particularmente memorável e os flashbacks, ainda que fragmentados, parecem mais interessantes do que o processo de criação de um dos grandes roteiros da história do cinema. Mesmo com problemas de prazo, bloqueios criativos, bebedeiras e enorme pressão, não existe um suspense ou uma maior ou relevante emoção ao vermos Mank lutando para escrever o roteiro. 

 

Ao final, o filme oferece uma interpretação que se assemelha com a realidade, quando Mank entrega um roteiro gigante, onde fica claro que precisará ser reescrito. Mas, logo após, nas últimas cenas, flerta novamente com a teoria de que Welles nada teve a ver com o processo. Não só isso, mas muitas das situações do filme são inventadas ou altamente fantasiadas, fazendo de Mank um filme desaconselhável para quem se interessa em saber de fato como tudo aconteceu. Vale como um espetáculo de amor ao cinema, mas um amor que se atém muito mais à forma. Pois o que falta ao filme é, na verdade, um coração.

 

COTAÇÃO:


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: David Fincher

Ator: Gary Oldman

Atriz coadjuvante: Amanda Seyfried

Música: Trent Reznor e Atticus Ross

Direção de arte: Donald Graham Burt e Jan Pascale

Fotografia: Erik Messerschmidt

Maquiagem e cabelos: Gigi Williams, Kimberley Spiteri e Colleen LaBaff

Figurino: Trish Summerville

Som: Ren Klyce, Jeremy Molod, David Parker, Nathan Nance e Drew Kunin

 

 

MANK (EUA – 2020)

Com: Gary Oldman, Amanda Seyfried, Lily Collins, Arliss Howard, Tuppence Middleton, Tom Burke e Charles Dance.

Direção: David Fincher

Roteiro: Jack Fincher

Fotografia: Erik Messerschmidt

Montagem: Kirk Baxter

Música: Trent Reznor e Atticus Ross

Design de produção: Donald Graham Burt

Os filmes do Oscar: MINARI – 6 indicações

Por Ricky Nobre

Histórias de imigrantes são uma tradição do cinema americano. Numa nação construída a partir do mito do “sonho americano” e da “terra das oportunidades”, a própria arte e indústria cinematográficas nasceram também sobre esse amálgama de diversas culturas e influências. E como a máquina de propaganda que sempre foi, Hollywood usou essa temática com frequência, mostrando sim as muitas dificuldades, mas com finais sempre felizes e triunfantes. Demorou muito para que começassem a aparecer histórias mais realistas e menos glamorosas sobre o tema. Minari, onde o cineasta Lee Isaac Chung se baseia vagamente em suas memórias de infância, chega com humor e delicadeza para fazer um caminho um pouco menos óbvio.

 

Uma família coreana, que já vivia numa grande cidade dos EUA a alguns anos, se muda para o interior em busca de melhores condições. Sem dar detalhes à esposa, Jacob adquire um pedaço de terra no meio do nada e uma casa que é, apesar do grande tamanho, essencialmente um trailer, para desespero da esposa que esperava algo melhor. O casal de filhos tem dificuldades em lidar com as constantes brigas dos pais por causa do lugar. A menina Anne, um pouco mais velha, é séria e tem um ar de responsabilidade. O garoto David, sapeca e ativo, tem um sopro no coração que pode ser fatal. Em pouco tempo, chega a vovó Soonja, mãe da esposa Monica, que traz um ar de vida totalmente novo para a família. Ainda que pareça de início leviano e irresponsável, Jacob surpreende ao conseguir tirar daquela terra o melhor que ela tem e, com a ajuda de um vizinho trabalhador e meio doidinho, ele supera diversas dificuldades, algumas delas geradas pela sua própria teimosia. 

 

O elenco é um dos trunfos do diretor, pois se sai muitíssimo bem em criar um agradável senso de intimidade com a família. Steven Yeun (o Glenn de The Walking Dead) e Yeri Han criam uma dinâmica delicada, onde a teimosia dele e a irritação dela colidem com frequência. Mas o tesouro do filme é Yuh-Jung Youn e Alan Kim, respectivamente a vovó Soonja e o pequeno David. Juntos eles são responsáveis pelos momentos mais engraçados, delicados e fofos do filme e dominam sem dificuldade alguma qualquer cena em que aparecem. 

 

O roteiro progride como uma sucessão de pequenos momentos. Não há desconexão, não é fragmentado, mas passa a sensação de uma coleção de memórias que se sobrepõe a qualquer fiapo de trama que o filme apresente, e nisso, a fotografia de tons suaves de Lachlan Milne e a delicadíssima música de Emile Mosseri criam a atmosfera ideal. 

 

A delicadeza e bom humor não excluem momentos mais sóbrios (a sutil crítica ao capitalismo no comentário sobre o descarte de pintos machos provoca certo desconforto), e até mesmo trágicos, conforme o filme avança. Como a fluidez inesperada da vida, uma notícia alegre e extraordinária é seguida, em questão de poucas horas, de uma terrível tragédia. E sem nenhum resquício de melodrama manipulativo, seja nas interpretações ou na música, o filme deixa claro o que é realmente importante nessa vida e que tudo pode ser refeito, um novo começo sempre é possível. Assim como as sementes de minari (uma espécie de “agrião coreano”) que a vovó Soonja traz da Coréia, só precisa do tempo e do solo corretos.

 

COTAÇÃO:


INDICAÇÕES AO OSCAR

Melhor filme

Direção: Lee Isaac Chung

Ator: Steven Yeun

Atriz coadjuvante: Yuh-Jung Youn

Roteiro original: Lee Isaac Chung

Música: Emile Mosseri

 

MINARI (EUA, 2020)

Com: Steven Yeun, Yeri Han, Yuh-Jung Youn, Alan Kim, Noel Cho e Will Patton

Direção e roteiro: Lee Isaac Chung

Fotografia: Lachlan Milne

Montagem: Harry Yoon

Música: Emile Mosseri

Design de produção: Yong Ok Lee

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Os filmes do Oscar: NOMADLAND – 6 indicações

Por Ricky Nobre

No Oscar dos pequenos grandes filmes, Nomadland chega com favoritismo. Já levou o Globo de Ouro de melhor filme dramático e melhor diretora, e também três BAFTAs (filme, diretora e atriz), três prêmios em Veneza, incluindo o Leão de Ouro de melhor filme, e outros incontáveis prêmios nos EUA e ao redor do mundo. Em seu terceiro longa, a chinesa Chloé Zhao assina a direção, roteiro, produção e montagem desta pequena pérola de aparência muito simples, mas realiza alguns feitos grandiosos.

 

Ao adaptar o livro de Jessica Bruder sobre os nômades americanos que vivem na estrada sem endereço fixo, Zhao criou para ser o centro da narrativa a personagem Fern, baseada parte em um amálgama de diversas pessoas descritas no livro, parte na personalidade da própria atriz Frances McDormand. Além dela, temos David Strathairn e alguns poucos atores profissionais (quase todos como os familiares de Fern). Todos os demais personagens do filme são as pessoas reais descritas no livro de Bruder que fazem uma espécie de performance de si mesmos. Totalmente desprendidos de qualquer inibição, esses personagens dão uma imensa vida e veracidade ao mundo dos nômades apresentados no filme. A câmera e a montagem de estilo semidocumental costuram as cenas e depoimentos desses personagens com a interpretação de McDormand que submerge completamente nessa comunidade, tão indiscernível dos demais personagens que alguns participantes sequer sabiam que ela era atriz e a consideraram uma viajante como eles. McDormand chegou a dormir na van da sua personagem por boa parte da produção, até desistir por causa da exaustão. Totalmente entregue, a atriz também realizou boa parte dos trabalhos temporários que sua personagem pega ao longo da estrada, chegando a passar alguns dias embalando encomendas num armazém da Amazon. 

 

O filme ao mesmo tempo em que apresenta histórias duras de sofrimentos e perdas, também celebra uma alegria singular, vinda da liberdade de quem vive num mundo e comunidade próprios. O trabalho é duro, as condições são parcas, mas existe a alegria das amizades, as belezas das estradas e paisagens do país. A crise de 2008 que levou milhares e milhares de famílias a perderem suas casas para os bancos, e diversas falências de indústrias que deixaram outros tantos desempregados explicam a quantidade de pessoas que adotaram esse estilo de vida. Com sutileza e precisão, Zhao costura as histórias que definem personagens que estão na estrada por total falta de opção e as que se apaixonaram pela vida na estrada. Como centro narrativo, Fern é dúbia. Viúva e nativa de uma cidade que literalmente desapareceu com o fechamento da fábrica de gesso que a sustentava, Fern não tem outra alternativa a não ser morar em sua van e cruzar o país, de emprego em emprego. Mas os convites para morar com sua família e, mais tarde, com um amigo que, depois de anos na estrada, encontrou sua pousada, não lhe soam tão sedutores. Fern parece mais empolgada com um ônibus trailer luxuoso numa exposição do que com a ideia de ter uma casa de novo. Ela faz questão de reiterar que ela não é sem lar, ela é só sem casa. 

 

Nomadland não é o primeiro a tentar isso, mas nunca a fusão de atores interpretando e pessoas reais falando sobre si mesmas se deu de forma tão perfeita. O ficcional e o documental se entrelaçam e formam um todo coeso, harmônico e especialmente belo. A bela música de Ludovico Einaudi acalenta os sentimentos e paisagens desta obra onde a diretora não entra, em momento algum, no mérito das questões políticas que tornaram possíveis aquelas condições precárias. O foco do filme é o coração dos nômades, seu senso de comunidade, suas forças e fraquezas. Nomadland é um filme com identidade e alma.

 

COTAÇÃO:


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Chloé Zhao

Atriz: Frances McDormand

Roteiro adaptado: Chloé Zhao, baseado no o livro de Jessica Bruder

Fotografia: Joshua James Richards

Montagem: Chloé Zhao

 

NOMADLAND (EUA / Alemanha – 2020)

Com: Frances McDormand, David Strathairn

Direção: Chloé Zhao

Roteiro: Chloé Zhao, baseado no o livro de Jessica Bruder

Fotografia: Joshua James Richards

Montagem: Chloé Zhao

Música: Ludovico Einaudi

Design de produção: Joshua James Richards

Os filmes do Oscar: JUDAS E O MESSIAS NEGRO – 6 indicações

Por Ricky Nobre

A premiação do Oscar deste ano está repleta de filmes com conteúdo social. Com a pandemia, os grandes filmes foram adiados por seus grandes estúdios, o que abriu espaço para muitos filmes independentes e de produtoras menores. Em anos anteriores, filmes como Moonlight e Parasita eram azarões que surpreenderam a todos. Este ano, eles dominam a premiação. Judas e O Messias Negro se destaca justamente no ano em que sua temática não é a exceção, mas a regra.

 

O diretor e roteirista Shaka King, em seu segundo longa, conta a história do notório líder do Partido dos Panteras Negra Fred Hampton sob um ponto de vista inesperado: o de seu traidor Bill O'Neal, um pequeno ladrão de carros que, para escapar da prisão, aceita ser informante do FBI e se infiltrar no partido. Desta forma, passamos a conhecer Fred, sua liderança, inteligência e incrível carisma que fascinava quem o ouvia. O contexto histórico é bem apresentado para situar o público e King é muito bem-sucedido em nos transportar para este mundo e nos fazer sentir mergulhados nele, nas cores, nos sons, no calor, na tensão, nos sonhos e na dor. 

 

LaKeith Stanfield se sai muito bem como a figura atormentada de Bill, cada vez mais envolvido com o partido. A culpa o corrói, mas as escolhas sempre voltam para seu compromisso em escapar da prisão. O roteiro poderia ter elaborado um pouco mais sobre esse dilema, mas mesmo assim funciona bem. Mas gigante mesmo está Daniel Kaluuya, que domina a tela com uma presença extraordinária e enérgica, quase hipnótica, onde é inquestionável o talento para liderança de seu personagem. Curiosamente, ainda que seus personagens estejam no título do filme, sendo um o Judas e outro o Messias Negro, a Academia indicou os dois como atores coadjuvantes, o que é o mesmo que dizer que este é um filme sem protagonistas.

 

Outro destaque do elenco é Dominique Fishback como Deborah, esposa de Fred, que sempre o desafia e questiona, porém sempre mantendo uma doçura no olhar, sendo uma personagem chave em alguns momentos. Outro personagem interessante, mas que poderia ter sido melhor desenvolvido, foi o do agente do FBI Roy Mitchell. Em sua firme crença na falsa simetria de que a KKK e os Panteras são dois lados da mesma moeda, ele se sente confortável em sua cruzada contra o partido e seus líderes. Em determinado momento, esta ilusão se desfaz, conforme ele descobre algumas práticas desumanas e uma mentalidade racista entre seus colegas do FBI e até mesmo (e principalmente) de seu chefe Edgar Hoover (Martin Sheen, com uma maquiagem horrenda). Aquele parece ser um ponto de virada para o personagem, mas, sem nenhum desenvolvimento ou elaboração do roteiro, ele continua no mesmo movimento de antes, e até um pouco pior. Seu desconforto no ambiente de trabalho, portanto, parece sem propósito.

 

É muito interessante e bem-vindo como King não suaviza o partido ou a figura de Fred Hampton, principalmente a radicalidade de suas práticas e ideias, sem receio de causar desconforto ou perda de simpatia do público. Ao reafirmar que o Partido dos Panteras Negras era, essencialmente, socialista e revolucionário, o filme engrandece as cenas onde Fred busca alianças não apenas com outros grupos de negros da cidade, mas também com os latinos e até com os brancos pobres do sul, ainda que venerem a bandeira confederada, mostrando que a luta dos Panteras era, antes de tudo, de classe. 

 

Judas e O Messias Negro é um filme tenso, desconfortável e amargo. Traça um excelente retrato de sua época e de seus personagens, ainda que pudesse ter elaborado de forma um pouco mais profunda o dilema do homem que traiu Fred Hampton, uma vez que este foi o recorte dramático escolhido. É um filme destemido, ao não se furtar em retratar a violência no discurso e nas ações de membros do Partido, mas é também um filme com uma mensagem e um posicionamento. É curioso perceber o contraste com outro filme deste ano onde o personagem de Fred Hampton também aparece. Em Os 7 de Chicago, é ele quem fica atrás do réu Bobby Seale no tribunal. As abordagens dos dois filmes, porém, não poderiam ser mais diferentes: enquanto um é pura biografia hollywoodiana (ainda que escrita com muita esperteza), este é um filme cru, vigoroso e combativo. Assim como seu personagem.

 

COTAÇÃO:


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Ator coadjuvante: Daniel Kaluuya

Ator coadjuvante: LaKeith Stanfield

Roteiro original: Will Berson e Shaka King

Canção original: "Fight for You" de H.E.R. e Dernst Emile II

Fotografia: Sean Bobbitt

 

JUDAS E O MESSIAS NEGRO (Judas and The Black Messiah, EUA – 2020)

Com: Daniel Kaluuya, LaKeith Stanfield, Jesse Plemons, Dominique Fishback, Ashton Sanders, Algee Smith, Dominique Thorne e Martin Sheen

Direção: Shaka King

História: Will Berson, Shaka King, Kenneth Lucas e Keith Lucas

Roteiro: Will Berson e Shaka King

Fotografia: Sean Bobbitt

Montagem: Kristan Sprague

Música: Craig Harris e Mark Isham

Design de produção: Sam Lisenco