Por Ricky Nobre
Terrence Malick ocupa um lugar de destaque, porém bastante
peculiar em meio à safra de grandes cineastas americanos que despontaram na
década de 1970, como Scorcese, Coppola, Spielberg e De Palma. Malick
caracterizou-se como o típico “cineasta bissexto”, com espaços entre suas obras
que variavam entre 5 a até 20 anos. Sempre lembrado pelo belíssimo Cinzas do
Paraíso (1978), Malick permaneceu como um cineasta avesso às regras e
obviedades comerciais, até mesmo em Além da Linha Vermelha (1998) , talvez seu
filme mais acessível ao grande público. A partir de Árvore da Vida (2011),
porém, Malick engatou quatro filmes em sequência, com mais um a ser lançado
ainda este ano. Como se estivesse correndo em busca do tempo perdido, ele
mantém seu estilo poético, por vezes contemplativo ou hermético, e
consistentemente intimista. Nesse contexto, De Canção em Canção vem sendo
recebido de forma bastante controversa: se, por um lado, recebeu louvores do
New York Times e do Independent, cerca de quinze pessoas abandonaram o filme em
sua primeira exibição para a imprensa.
No efervescente
cenário musical de Austin, Texas, a jovem compositora e musicista Faye (Rooney
Mara) se divide entre o doce e leve compositor BV (Ryan Gosling) e o produtor
sexy e controlador Cook (Michael Fassbender). Cook, poderoso e já estabelecido
na indústria, pode ser uma excelente possibilidade de ascensão profissional
para ambos. Por mais que eles tentem levar a vida sem regras e amarras, a
amizade, paixão e trabalho se misturam e desgastam. Sentindo-se cada vez mais
distante de Faye e BV, Cook conhece a garçonete Rhonda (Natalie Portman), que é
imediatamente atraída pelo mundo e personalidade rica e opressora de Cook.
De Canção em Canção foi filmado sem roteiro escrito. Munidos
das descrições de cada cena dadas por Malick, o elenco se desdobrou num intenso
exercício de improvisação. Como resultado, temos atores profundamente
mergulhados em seus personagens, sendo essa imersão provavelmente a única
conexão sólida que o filme terá com o público. Foram ao todo 40 intensos dias
de filmagens, espalhados por um período de dois anos. Apesar de uma grande
variedade de tipos de câmeras terem sido usadas, desde película 35mm até a
badalada digital RED e até Go Pro, o filme parece ter sido quase que
inteiramente rodado com lentes 18mm. Na busca de um contato sempre próximo e
íntimo com os atores, não importando o quão limitados fossem os espaços (tudo
também parece ser locação, nada em estúdio, inclusive as casas), o resultado
muitas vezes são objetos e corpos distorcidos pelo uso da grande-angular a
curtíssima distância. Este é apenas um exemplo de algo que se repete com enorme
frequência em De Canção em Canção. Numa busca pela naturalidade plena, pela não
interpretação, pelo realismo palpável e não posado, Malick consegue exatamente
o oposto.
Ao inserir seus atores em situações reais, como interações
com populares em cenas no México e com astros do rock nos bastidores de
festivais, ou mesmo em uma (a única!) cena em que se simula um show em que Faye
participava, fica evidente que se trata de ficção inserindo-se na realidade,
numa mistura mal sucedida de documentário com interpretação (a participação de
Patti Smith é uma bela e honrosa exceção). Chega a doer o coração perceber que
o maravilhoso trabalho do elenco acaba sendo embrulhado num pacote que o afasta
do público, não pela não convencionalidade da narrativa, mas pela
artificialidade que é gerada, ironicamente, da tentativa de evitá-la a todo
custo.
A partir deste material, seguiram-se mais de três anos de pós-produção,
com um primeiro corte que chegava a oito horas de duração. Mais do que diminuir
sua duração, a luta no extenuante processo de edição parece ter sido o de dar
sentido ao material filmado, papel no qual as narrações em off dos quatro
principais personagens, gravadas muito depois das filmagens, podem ter sido de
fundamental importância. A intenção de Malick parece mesmo ter sido a de
capturar momentos, fragmentos de felicidade, prazer, dor, desejo, dúvida,
frustração, desespero, amor. Porém, a extrema fragmentação da narrativa
torna-se extenuante e incômoda de acompanhar, uma vez que os pedaços não se
juntam direito, seja emocionalmente, seja no fiapo de história.
A música, que deveria, junto com o quarteto principal, ser a
estrela do filme, apresenta-se tão fragmentada quanto a própria narrativa e
apenas muito raramente age como um “cimento” eficiente para ligar os pedaços
num todo coerente. Quem esperar ver um filme sobre música ficará ainda mais
decepcionado. Nas pouquíssimas cenas em que os personagens parecem estar
fazendo música, tudo parece constrangedoramente amador, algo que é mais um
elemento que traz artificialidade ao filme, não pelo excesso de trabalho, mas
pela ausência. Na verdade, o público passa a maior parte do filme sem saber
exatamente o que os personagens fazem, se cantam, tocam, compõem, escrevem...
Parece não fazer a menor diferença para Malick qual a relação dos personagens
com a música e, afinal, que música eles efetivamente fazem.
Se o espectador se dá ao esforço de, diligentemente, procurar
encontrar sentido nas migalhas de informação sobre os personagens e suas vidas,
é a abundância de emoção investida pelos atores que o mantém nessa ingrata
tarefa. A deslumbrante atriz que é Rooney Mara constrói uma personagem tão
fascinada pela luz de BV quanto pela escuridão de Cook. A felicidade, o amor e a
paz estão claramente em seus dias com o compositor cuca-fresca, no qual Ryan
Gosling mostra o grande ator que pode ser. O Cook de Fassbender traz fragmentos
de “rei do mundo” já vistos antes em seus trabalhos como Magneto e Steve Jobs.
Se não existe roteiro que sustente sua personalidade manipuladora, seu egocentrismo
e até crueldade, a mera presença, postura e sutilezas impressas por Fassbender
dão conta do que não é dito. Natalie Portman, cuja personagem tem o destino
mais trágico neste “quadrilátero amoroso”, tem também a mais ingrata das
tarefas, pois constrói sua Rhonda quase que praticamente do nada. É
absolutamente óbvio que é impossível não creditar Malick no sucesso do trabalho
do elenco. Se eles chegaram a esse nível de resultado, foi sem dúvida com uma
excelente direção de atores. O problema é... bem, todo o resto.
Com mais de 40 anos de carreira, Malick trilha por um
caminho (muito semelhante do anterior Cavaleiro de Copas) que poderia ser muito
revigorante, que é um estilo praticamente de cinema de guerrilha, ao filmar sem
qualquer estrutura de estúdio, em meio à realidade da rua e dos festivais de
música. É possível reconhecer o antigo Malick criador de deslumbrantes imagens.
Em determinado ponto, é impossível não imaginar como ele esperou horas pelo
momento exato em que o Sol brilharia com precisão, com uma luz específica, por
debaixo de uma ponte. Mas De Canção em Canção é, no fundo, um filme feito com
técnicas mais apropriadas para jovens cineastas de 20 anos sem um centavo no
bolso. Se você é O Terrence Malick e
quer usar as mesmas técnicas, espera-se que mostre um resultado muito melhor.
DE CANÇÃO EM CANÇÃO (Song To Song, 2017)
Com: Rooney Mara, Ryan Gosling, Michael Fassbender, Natalie
Portman, Cate Blanchett, Holly Hunter, Bérénice Marlohe, Val Kilmer e Lykke Li
Direção e roteiro: Terrence Malick
Fotografia: Emmanuel Lubezki
Montagem: Rehman Nizar Ali, Hank Corwin, Keith Fraase
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