Quando a DC/Warner falhou miseravelmente em desenvolver um
universo compartilhado do mesmo porte do Marvel Studios, o anúncio de um filme
solo do Coringa, totalmente diverso do interpretado por Jared Leto, soou como
algo entre o desespero e a total ausência de rumo. Apesar de, no universo dos
quadrinhos, edições especiais com realidades alternativas ser algo comum, a
introdução desse conceito aqui soou entranha num ambiente hollywoodiano onde a
Marvel produziu 22 filmes que fazem parte de uma única história. O desafio do
projeto, porém, era maior: seria um filme de origem sobre um personagem cujo
passado já foi contado diversas vezes nos quadrinhos de formas totalmente
diferentes, sendo essas incertas origens múltiplas parte integrante da própria
característica caótica do Coringa. Além disso, seria o primeiro filme R-rated
(classificação 17 anos) dentro do universo dos principais personagens da DC.
Após o fiasco de Liga da Justiça, o projeto foi aprovado com meros 35 milhões
de dólares de orçamento. Era uma aposta totalmente nova.
Antes de estrear mundialmente, o filme já provocou furacões
por onde passou. Aplaudido de pé por 8 minutos em Veneza de onde saiu com o Leão
de Ouro de melhor filme, feito inédito para esse gênero. Boa parte da crítica
apontou uma acentuada possibilidade de turbilhão político no contexto atual, e
alguns denunciaram o que seria a glamorização da figura do homem branco
violento e tóxico. O diretor Todd Phillips deixou expressamente claro em
entrevistas que Coringa não é um filme político. E, talvez, essa era sua
intenção ao escrevê-lo e dirigi-lo. Contudo, ao construir com absoluta
maestria, ao lado do gênio Joaquim Phoenix, o nascimento do mais famoso vilão
dos quadrinhos desde sua base, Phillips fez um filme que é político do primeiro
ao último frame. E mais que isso: um filme trágico, verdadeiramente sombrio, desesperançado
e, mais do que tudo, provocador e incendiário como não se via desde Clube da
Luta, há 20 anos.
No processo de narrar a transformação do pacato e frágil
Arthur Fleck no perversamente insano Coringa, Phillips traz uma paisagem de
decadência, desilusão e desespero urbanos, numa Gotham que falhou como
sociedade em todos os sentidos. Cuidando sozinho da mãe, Arthur sonha em ser
comediante enquanto trabalha numa agência de palhaços, sofrendo humilhações e
passando despercebido pela vida, enquanto luta contra os sintomas dos diversos
distúrbios mentais que o afligem, ainda que o acompanhamento psicológico e os
sete remédios controlados que recebe lhe deem algum equilíbrio, mesmo que
tênue.
Talvez o mais fascinante no filme é como o personagem é
desenvolvido num ritmo muito lento porém perfeitamente constante. Ele evolui
lenta e suavemente, de forma quase imperceptível, porém, a cada cena, existe
algo a mais ali. Quando o Coringa finalmente surge, isso não causa estranheza
alguma, ainda que, se lembrarmos do Arthur do início do filme, pareça uma
pessoa completamente diferente. Tudo é perfeitamente orgânico e o ocaso de
Arthur e o nascimento do Coringa são indissociáveis da própria cidade de
Gotham. Ainda que muitas críticas se façam hoje em como o cinema dá a
portadores de doenças mentais o destino quase que inexorável de vilões
psicopatas, podemos dizer que aqui as questão da doença mental é muito bem
trabalhada. E, a partir daí, podemos tecer algumas considerações sobre as
maiores críticas que o filme tem recebido, no que se refere ao personagem se
tornar um símbolo glamourizado de grupos violentos específicos.
Tentando não cair em spoilers, é seguro afirmar que o
Coringa é essencialmente um filho de Gotham. Arthur é humilhado e
invisibilizado por sua condição de doente mental e de trabalhador que sobrevive
parcamente de sub empregos. O momento em que o programa social que fornece
apoio e remédios a Arthur é cortado pelo governo é um dos mais precisos
símbolos que o filme oferece das consequências do abandono social perpetrado
por maus governos, cujas vítimas são justamente os mais vulneráveis.
Não é tarefa fácil separar todas as camadas sociais e
psicológicas do filme e do personagem, mas esse é o nível de complexidade
atingido por Phillips, cuja carreira consistia exclusivamente de comédias,
principalmente a trilogia de Se Beber Não Case, o que o torna um feito
verdadeiramente surpreendente. Como aliado, Phillips tem uma performance
histórica de Phoenix, que desenvolveu um trabalho de expressão corporal que é
um espetáculo por si só. Todo o filme é contado a partir do ponto de vista de
Arthur, o que intensifica a identificação do público com os dramas e as motivações
do personagem. Porém, quanto mais brutal ele se torna, cresce o conflito do
público ao ver atos perversos motivados por sentimento os quais o filme os fez
compreender perfeitamente. O público é desafiado a não corroborar com os atos
de Arthur e da turba que o idolatra, ainda que nos fique claro que tal
resultado seja o ápice inevitável da decadência de uma sociedade abandonada.
O que talvez explique que até alguns dos maiores defensores
do filme também chegaram a defini-lo como “perigoso” seja o fato de que o
triunfo do Coringa não possui contraponto na tela. Nos quadrinhos e em filmes
anteriores, o contraponto do Coringa é o Batman. No já citado Clube da Luta, o
contraponto da persona Tyler é a persona Jack. Aqui, Phillips deixa
exclusivamente para o público a tarefa de criar contraponto ao “mito” Coringa.
O certo e o errado se fundem e confundem como acontece em tempos de decadência
e desespero sociais. Isso torna a tarefa de não idolatrar o Coringa mais difícil.
Porém, desde a primeira cena, Phiilips deixa claro que facilitar não era seu
objetivo. Muito pelo contrário.
Falando especificamente do universo de quadrinhos, Coringa é
seguramente o primeiro filme de universo de super heróis em que absolutamente
qualquer coisa que aparece na tela poderia realmente ter acontecido no mundo
real, inclusive levando em conta que a narrativa se passa em 1981. O realismo é
total, seja ele concreto, tecnológico ou psicológico. Na sua tarefa, Phillips
teve o auxílio precioso da montagem de Jeff Groth que constrói o perfeito ritmo
do filme, a fotografia de Lawrence Sher, com um impressionante trabalho de
cores e uma luz que remete diretamente ao cinema dos anos 70 (Taxi Driver e O
Rei da Comédia, ambos de Scorcese, são inspirações poderosas em diversos
níveis) e a música da sueca Hildur Guðnadóttir, a perfeita voz da mente de
Arthur, num trabalho inspirado como poucos no cinema de hoje. Ainda falando em
quadrinhos, é sempre uma aposta perigosa estabelecer qualquer laço prévio entre
o Coringa e a família Wayne, e o filme corre esse risco com inteligência.
É importante o público ir preparado para algo inédito nos
filmes do gênero: não é um filme de ação, sequer tem uma única cena de ação no
filme. Phillips não fez apenas um filme de quadrinhos verdadeiramente sombrio
no seu âmago (para muito além das infantilidades pseudo maduras que infestaram
tentativas recentes da DC) e completamente realista. Coringa é um estudo de
personagem sublime, uma tragédia humana devastadora e uma visão política e
social incendiária. Um filme que será discutido por anos pelo público ao qual
foi delegado o veredito do palhaço do crime, o mestre do caos. Mas se Todd
Phillips se permite algum comentário sobre em qual lado da balança pesam os
atos do Coringa, é bom lembrar que o toque final do nascimento do vilão, nos
últimos minutos, é desenhado com sangue.
COTAÇÃO:
CORINGA (Joker, 2019)
Com: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances
Conroy e Brett Cullen.
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver
Fotografia: Lawrence Sher
Montagem: Jeff Groth
Música: Hildur Guðnadóttir
Um comentário:
Eu não teria escrito melhor... e não sou um robô, raios!!!
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