Por Ricky Nobre
O sucesso da versão burtoniana de Alice em 2010 e da série
Once Upon a Time (que durou sete temporadas) abriu os olhos da Disney para as
possibilidades de visões atualizadas dos clássicos contos de fadas. Em 2014,
Malévola estreou com uma excelente e muito bem executada premissa de uma fada
que se torna a grande vilã de A Bela Adormecida ao conhecer o pior da
humanidade, e se redime ao conhecer o melhor dela. Muito satisfeita com o
retorno financeiro, a Disney seguiu realizando versões “live action” de seus
clássicos da animação, cada vez mais parecidos com os originais, porém com
desempenhos nas bilheterias ainda mais impressionantes do que de Malévola.
Este, entretanto, permanecia como um dos favoritos do público, talvez por sua
originalidade, ou pela forma como Angelina Jolie encarnou a personagem. Mesmo
não sendo muito afeita a continuações, a Disney tratou de providenciar uma para
sua grande senhora do mal.
Existe um dilema básico ao se criar obras que colocam vilões
como protagonistas. Na paisagem hollywoodiana dos últimos 20 anos, os filmes
baseados em quadrinhos foram a principal fonte de algumas dessas experiências,
em filmes como Esquadrão Suicida e Venom. Malévola cai na mesma questão. Vilões
nos atraem porque são maus. Simples assim. Sabemos que o que fazem é errado,
inaceitável e queremos que sejam punidos no fim, mas, ainda assim, eles exercem
uma profunda sedução junto ao público, uma transgressora sensação de liberdade.
Entretanto, não seria moralmente aceitável nem comercialmente viável que um
vilão fosse verdadeiramente mau durante um filme inteiro e ainda saísse impune,
principalmente num filme da Disney ou no universo de super heróis. Assim, os
vilões nunca são tão ruins quando protagonizam seus próprios filmes;
geralmente, são maus só no início, ou só no meio, ou, ainda, um pouco lá e um
pouco cá durante todo o filme. Nesse contexto, compreende-se o sucesso e a polêmica
em torno do recente Coringa que, numa abordagem adulta, pôs à prova esses
limites. Ainda assim, não podemos esquecer a forma pioneira e bem resolvida
como George Lucas desenvolveu o arco de Anakin Skywalker / Darth Vader ao longo
de seis filmes.
Isso tudo é para podermos compreender como se apresenta a
personagem Malévola neste segundo filme. Como vimos ao final do primeiro,
Malévola termina “regenerada” (em mais de um sentido) graças ao amor que
desenvolveu pela princesa Aurora que um dia chegou a amaldiçoar. Neste segundo,
ela se apresenta, logo de início, com uma aparência bem mais alinhada com sua
persona “maléfica”, diferente do final do filme anterior, ainda que nada tenha
mudado em sua personalidade nos 5 anos que separam as duas histórias. A partir
do pedido de casamento feito pelo príncipe Felipe (Harris Dickinson) a Aurora (Elle
Fanning), muito do humor e da tensão entre Malévola e demais personagens vem
desta persona (obviamente) “malévola”, que é incapaz de se encaixar
confortavelmente em situações sociais aparentemente comuns como um jantar. Na
concepção do roteiro, Malévola não voltou a ser vilã, apenas cultiva uma
personalidade, digamos, peculiar de quem não é exatamente a sogra dos sonhos de
ninguém. O filme explora essa personalidade “marginal” de Malévola para
desenvolver a trama, onde a mãe de Felipe, a Rainha Ingrith (Michelle Pfeiffer,
ótima) arma um plano cruel para tirar de cena seu marido, o rei pacifista John
(Robert Lindsay) e declarar guerra a Moors pondo a culpa em Malévola, evitando
assim a união pacífica dos dois reinos que seria a consequência do casamento
entre Felipe e Aurora.
Justamente pela enorme diversão que o público tem em ver
Malévola sendo má, o filme trabalha nessa corda bamba, de onde pretende tirar o
máximo de entretenimento de sua personalidade divertidamente sombria,
principalmente ao provoca-la com falsas acusações de continuar sendo má. O
diretor Joachim Rønning (em seu primeiro filme sem o habitual parceiro Espen
Sandberg) nos diverte com uma pseudo vilã, um simulacro de maldade que, num desenvolvimento
de personagem competente, forja uma boa e genuína anti-heroína. Ainda assim, o
subtítulo “A Dona do Mal” (mais belo e preciso no original Mistress of Evil) soa
um tanto enganador ou até mesmo genérico.
É importante falar sobre o protagonismo feminino aqui. As três
personagens mais importantes e ativas do filme são mulheres (Malévola, Aurora e
Ingrith). Isso não só enriquece o filme mas também lança uma questão
interessante quando colocamos em perspectiva junto ao filme original. A queda
em direção às trevas de Malévola veio diretamente das ações do reino dos
homens, em particular a traição e cruel violação praticada por um homem em específico,
Stephan. Sob uma ótica feminista, o grande inimigo de Malévola era o
patriarcado, ainda que a alegoria do colonialismo fosse potente em sua ação
militar contra Moors, o reino das fadas. Aqui, entretanto, a grande arquiteta
da guerra, genocídio e colonialismo é a rainha Ingrith, e os pacifistas a serem
eliminados ou domados são John e Felipe. Ao concentrar a real vilania do filme
na figura da rainha (ainda que isso seja um clássico disneyano), o filme refina
seu ataque especificamente à soberba da cultura elitista humana, que põe a “civilização”,
em especial aquela tecnologicamente avançada, sobre os “selvagens”, menos “civilizados”
(se você sentir um sutil eco de Avatar, é isso mesmo).
Se o primeiro filme, apesar de subverter a narrativa tradicional
do gênero, era um exemplo inegável de conto de fadas, este novo está mais
alinhado com o gênero fantasia, apresentando, inclusive, algumas
impressionantes cenas de batalha. Momentos dramáticos são levados a sério, e o
elenco corresponde, principalmente Elle Fanning, num evento particularmente
trágico. Mas falta uma certa consistência na tensão dessa narrativa. Por exemplo,
dois eventos de potencial letalidade são narrados paralelamente. Em um deles,
vários personagens morrem (mesmo!) como moscas, enquanto no outro a narrativa
se arrasta para que resulte no menor número possível de vítimas, e o fato das
narrativas serem paralelas apenas torna isso mais evidente.
Ainda assim, de forma inteligente, o filme amadurece junto
com seu público (imagine que alguém que viu o primeiro filme com 10 anos de
idade, agora vê este com 15), mostrando que as lições da franquia Harry Potter
foram bem aprendidas. Talvez a única grande fraqueza do filme é que ele não se
assume totalmente nessa identidade e, próximo às últimas badaladas, corra de
volta aos braços do conto de fadas, pois, afinal, é um filme da Disney e
pronto. Nos últimos 10 minutos, tudo fica muito mais leve de uma hora pra outra
e espera-se que o público simplesmente aceite que os povos de dois reinos
apenas sacudiram a poeira e foram todos pra uma festa literalmente minutos
depois de uma guerra.
Mesmo com alguns problemas, Malévola: A Dama do Mal irá
agradar muito aos fãs do primeiro. É um filme que investe muito na emoção, com
forte protagonismo feminino, visualmente belíssimo e que fala de amor,
confiança, estigma e esperança. Tem um ótimo elenco e vale aqui destacar a
atuação de Jenn Murray como Gerda, a capanga da rainha que, com um papel quase sem
diálogos, compõe um personagem divertido e bizarro, e é uma das boas surpresas
do filme. Na atual fissura alucinada da Disney em transpor seus clássicos dos desenhos
para os atores, Malévola se impõe como uma proposta original, que apenas cita A
Bela Adormecida em raríssimos momentos. Ele não fecha a porta para um terceiro
filme, que muito provavelmente virá. Talvez nasça uma trilogia que, em anos
futuros, se destaque e mantenha seu valor em meio à pilha de remakes que o
distanciamento crítico do tempo exponha como totalmente desnecessários
MALÉVOLA: A DONA DO MAL (Maleficent: Mistress of Evil, 2019)
Com: Angelina
Jolie, Elle Fanning, Harris Dickinson, Michelle Pfeiffer, Sam Riley, Chiwetel
Ejiofor e Jenn Murray.
Direção: Joachim
Rønning
Roteiro: Linda Woolverton, Noah Harpster e Micah
Fitzerman-Blue
Fotografia: Henry Braham
Montagem: Laura Jennings e Craig Wood
Música: Geoff Zanelli
Design de produção: Patrick Tatopoulos
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