Por Ricky Nobre
A produção cultural brasileira foi massacrada durante o último governo. O primeiro longa-metragem da dupla Priscyla Bettim e Renato Coelho é um filme que representa bem este período. Filmado em janeiro de 2019, nos primeiros momentos do governo Bolsonaro, Cidade dos Abismos levou muito tempo para ser finalizado, passando posteriormente por um extenso circuito de festivais nacionais e internacionais durante 2021 e 2022, nos quais arrebatou alguns prêmios, e finalmente agora, em maio de 2023, estreia nos cinemas. No filme, o assassinato de uma mulher transexual une uma amiga da vítima, também trans, uma mulher de classe média que estava no local e um imigrante nigeriano, dono do bar onde aconteceu o crime e, deste entrelaçamento de vidas, surge o desejo de justiça.
Bettim e Coelho possuem uma trajetória no estudo e na produção de cinema experimental e trazem essa experiência para o filme, que se entrelaça com o cinema narrativo tradicional. Muito inspirado no ciclo do cinema marginal brasileiro, o filme traz personagens que se expressam de forma poética, muitas vezes encarando o espectador, numa pausa da narrativa dramática. As interpretações evitam ao máximo qualquer arroubo melodramático, possuindo um comedimento (assim como nas expressões de violência) um tanto bressoniano, porém lembrando também um pouco dos diálogos dublados típicos do cinema brasileiros nas décadas de 60 e 70. Esta abordagem que privilegia o poético acima do narrativo constrói a emoção dos personagens muito mais como uma representação do que como uma frontalidade dramática, o que pode parecer um tanto frio, principalmente em momentos chave. Ainda que a performance do elenco seja muito controlada, o destaque ainda fica com Verónica Valenttino, que tem uma expressividade e um domínio de cena que a garante como o centro emocional do filme.
A concepção e o apuro estético do filme com certeza é seu melhor trunfo e seu maior sucesso. Cidade do Abismo foi todo rodado em película, majoritariamente em 16mm, com duas cenas em 35mm (incluindo um plano sequência de cinco minutos) e duas em Super8. Levando em conta o altíssimo custo dos negativos hoje em dia em que a quantidade fabricada é muito baixa, é impressionante o que uma produção de orçamento tão limitado conseguiu atingir. Com muitos planos longos e fixos, a direção criou sua linguagem ao mesmo tempo em que procurou lidar com a limitação de não poder filmar cada cena múltiplas vezes tendo pouco negativo para utilizar. Mesmo assim, a fotografia tira muito partido das qualidades únicas do suporte e entrega luz e cores belíssimas. É especialmente impressionante o que conseguiram extrair de um suporte tão limitado quanto o Super8, sendo que as duas cenas filmadas com esse formato estão entre as mais expressivas, sendo uma delas uma cena de sonho, onde Glória persegue a amiga assassinada, talvez a melhor do filme.
É muito curioso o quanto que as características indesejadas da película são abraçadas por inteiro pelos diretores. As diversas impurezas que grudam no negativo, que geram pontos e manchas brancas esporádicas pela tela, são todas mantidas, mesmo sendo facilmente removíveis digitalmente, como se fosse uma antiga cópia recuperada de um filme dos anos 60. Na cena que mostra os personagens em close, em preto e branco, os diretores deixam vazar parte da perfuração lateral da película super8 e, mais adiante, cor, preto e branco e imagens danificadas se misturam freneticamente enquanto um carro segue outro. Durante todo o filme, da mesma forma como evitam o naturalismo nas interpretações, os diretores evitam a composição de um realismo na linguagem, evidenciando o filme como tal, através das características de seu suporte técnico (os cantos da película, marcas e manchas), algo que evoca não apenas o cinema experimental e marginal brasileiro, mas também um tanto de Bergman e de Tarantino, de certo modo.
A personagem Bia, que trabalha na Cinemateca Brasileira, aparece em uma cena revisando na moviola o filme Limite, de Mário Peixoto, de 1931, um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro e que foi dado como perdido durante um tempo. É muito curioso que as imagens do filme escolhidas nessa cena são, em sua maioria, as mais danificadas (uma parte do filme se perdeu e algumas cenas sobreviveram de forma bem precária), e mais adiante, fragmentos do filme reaparecem na já citada cena de perseguição, em meio ao turbilhão frenético de imagens.
Existe, portanto, um diálogo entre a violência sofrida pelos marginalizados, sua resistência, as marcas da película que pincelam praticamente todas as cenas e os flashes de película danificada, principalmente as de Limite, uma obra prima que quase desapareceu. É como se o suporte em celuloide escolhido para o filme representasse um papel para além da beleza das cores, das texturas e de suas características técnicas. Mesmo manchado, marcado, deformado, o FILME resiste, com sua arte, sua visão de mundo, suas denúncias, seus personagens e as vidas que eles representam. Os perseguidos e excluídos da sociedade podem muitas vezes perder a batalha, mas eles resistem. A arte e os marginalizados estarão sempre aqui, quer os poderosos e os fascistas queiram ou não.
COTAÇÃO:
CIDADE DOS ABISMOS (Brasil, 2021)
Com: Verónica Valenttino, Sofia Riccardi, Carolina Castanha e Guylain Mukendi
Direção: Priscyla Bettim & Renato Coelho
Roteiro: Priscyla Bettim
Montagem: Caio Lazaneo
Direção de Fotografia: Rodrigo Pannacci
Música: Arrigo Barnabé e Vitor Kisil
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