Um padre com uma crise de fé, uma atriz famosa, uma menininha adorável, um detetive perspicaz que gosta de cinema e uma entidade demoníaca desocupada. Juntos, eles aprontam todas num dos filmes mais emblemáticos da história do cinema. Mas o filme não veio do nada. Tudo começou com um livro...
A maioria das pessoas deve se lembrar mais do filme, sucesso em 1973 que chocou o mundo com uma visão arrebatadora de um exorcismo. O filme rendeu Oscar, o que é raro na categoria Terror, ganhando as estatuetas de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Som, além de ter sido indicado a diversos prêmios, entre eles, Melhor Filme e Melhor Diretor. Se o filme causou todo esse impacto, o que podemos esperar do livro?
Minhas lembranças do filme são nubladas, pois eu era muito pequena quando o vi e depois fui contaminada por centenas de cenas copiadas e parodiadas. O que, sinceramente, foi bom! Pude ler o livro sem comparar o tempo todo com o filme.
A primeira coisa que salta aos olhos é a escrita de William Peter Blatty. Ela é poética, visceral e bem-humorada. Seus personagens são muito bem construídos, fazendo-nos simpatizar com quase todos de primeira (quase todos porque eu não gostei muito do Burke).
Fica evidente a enorme pesquisa que o autor fez, desde saber como uma atriz vive, como ela trabalha, como é sua família, até como padres vivem, o que comem e para onde vão quando a missa acaba.
Para quem chegou no planeta agora, segue um pequeno resumo. Chris MacNeal é uma atriz bem sucedida que vive com a filha de 11 anos Regan. Tudo vai bem até que a guria encontra um tabuleiro oui-ja (sempre ele...) e a mãe não liga, porque é cética. Só que coisas estranhas começam a acontecer. Buscando tratamento na ciência e medicina tradicional, Chris vai vendo a coisa piorar com o comportamento da sua filha mudando de tal forma que ela é aconselhada a procurar um exorcista.
Nisso, já estávamos acompanhando o padre Karras, que está numa profunda crise de fé depois da morte da mãe. Ele assume a investigação e vamos todos ficando desesperados enquanto a situação piora a cada dia. Enquanto isso, o detetive Kinderman ronda a casa tentando desvendar um assassinato.
O livro flui que é uma maravilha. A pesquisa do autor se estende para a área médica, onde ele destrincha todas as possibilidades para o comportamento errático de Regan ter uma causa física, e não espiritual. Os diálogos são ótimos, cheios de personalidade, enquanto outros trechos são pura poesia.
Porém, algumas coisas me fizeram ranger os dentes de vez em quando. A primeira é a ligação do demônio que possui Regan com uma divindade babilônica e assíria chamada Pazuzu, que aparece apenas no início do livro para o padre Merrin na forma de uma estatueta. Feito de partes de animais e feio pra caramba, Pazuzu era o deus dos ventos do sudoeste, que levava fome, pragas e destruição onde seus ventos sopravam. Ele também mantinha outros demônios afastados e era frequentemente invocado para proteger mães, crianças e gestantes. Por mais que ele realmente pareça assustador, apropriar-se de entidades de culturas alheias para transformá-las em demônios da sua própria cultura é algo comum (especialmente para os americanos, como quando Indiana Jones se apropriou de Kali como deusa maligna devoradora de criancinhas, ou A Múmia se apropriou do sacerdote Imhotep como seu principal vilão), mas não é muito correto. As adaptações retiram a menção a Pazuzu, mostrando que há uma luz no fim do túnel.
A outra coisa que me incomodou foi a falta de limites para a falta de fé. Quando os efeitos iniciais surgem, temos uma menininha falando com um amiguinho invisível com o tabuleiro oui-ja. OK. Desavisados e céticos podem ignorar esse aviso de desgraça.
A seguir, Regan começa a falar com seu amiguinho invisível SEM a ajuda do tabuleiro oui-ja. Tá. Sigamos que tem boleto pra pagar e não podemos prestar atenção nisso agora...
O quarto da menina se torna gelado. Hummmm....
Os móveis super pesados mudam de lugar. Tudo bem, tem uma explicação lógica. Regan é sonâmbula e sonha que é um estivador, adquirindo super força.
E aí vêm vozes guturais, obscenidades, blasfêmias, cama pulando, cabeça virando, ventania em quarto fechado, assassinato improvável, fedor indescritível e mudança escabrosa de aparência. A essa altura, sinceramente, não tem como acreditar que tem uma explicação perfeitamente normal para isso. Mas é o que o padre Karras diz. Até a cética mãe que costumava ser ateia está abismada com isso. Em certo ponto, letras surgem no corpo de Regan, de dentro pra fora. O padre Karras diz que isso é normal, ao que Chris responde gritando:
- Normal??? Normal onde? Na Transilvânia???
Então, por mais que eu tenha entendido que tudo tinha que ser visto como algo que tem explicação, teve um momento que não tinha mais como cavar explicação, e eu já estava com minha cabeça aqui virando também. Mesmo depois de tudo, ainda havia uma suspeita de que não tinha sido uma possessão, como se o próprio autor estivesse com certo receio de ser julgado um tolo caso dissesse que sim, tinha um demônio dentro dessa menininha. Sem falar que as explicações eram tão loucas que era mais fácil acreditar num demônio mesmo, como por exemplo, a cama estava pulando por causa de convulsões musculares da criança.
Mesmo assim, o livro é uma delícia para quem gosta de uma boa leitura. Se você não gosta de terror, melhor ler de dia. Algumas cenas são especialmente apavorantes, enquanto outras são perturbadoras ao extremo. Eu nunca diria que esse livro pudesse virar um filme, de tão pesado que ele é.
Eu tinha lido antes dele o livro Legião, do mesmo autor, com alguns dos personagens do Exorcista voltando, e logo trago a resenha dele também. Todas as coisas que me incomodaram em O Exorcista, simplesmente desapareceram em Legião, mostrando que o autor conseguiu ficar ainda melhor.
E, por fim, sem querer parecer pedante ou fora da casinha, eu fiquei feliz em perceber semelhanças com Uma Guerra de Luz e Sombras, e essas leituras me animaram a retomar a continuação. Eu amo quando um livro nos inspira a criar outros mundos.
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