Por Ricky Nobre
A treta da semana no Twitter cinéfilo foi um post da crítica de cinema Fabiana Lima sobre sua dificuldade em conseguir sessões legendadas nos cinemas da cidade onde mora, que é São Luís, no Maranhão. Abaixo, reproduzo os prints:
Da perspectiva de um cinéfilo mais velho (faço 52 essa semana): esse é um movimento bastante inesperado pra mim. Na minha época (que frase de velho...) se não fosse filme infantil, cinema era legendado. Já a TV era sempre dublada. Eu, e todos que conheci, convivemos perfeitamente bem com esse arranjo. Gravei muito filme dublado em VHS da TV no início da adolescência, para rever muitas vezes. Quando surgiu a febre das locadoras, os filmes em VHS eram invariavelmente legendados, fora os infantis. A TV a cabo surgiu no início dos anos 90, e com ela uma avalanche de opções legendadas. Com o DVD no final da década, a possibilidade de dublado e legendado na mesma mídia inaugurou uma nova era com opções para todos. Mas os cinemas permaneciam legendados, embora seja nessa época que começaram as opções de legenda em filmes considerados infantis, sendo Alladin (1992) o primeiro a ser exibido assim no cinema. Com o tempo, esse segmento de animações e filmes infanto-juvenis passaram a ter cerca de 70% dublado e 30% legendado.
Mas algo mudou recentemente. Nos
últimos 10 anos começaram as opções de filmes não infantis dublados no cinema.
Nada mais justo. Mas em pouco tempo, cinemas de determinadas regiões da cidade
(só posso falar pelo Rio de Janeiro, onde moro) passaram a abolir sessões
legendadas. Da periferia do Rio, os dublados rumaram para a Tijuca, Barra e
zona Sul. Atualmente, nessas regiões predomina um equilíbrio, geralmente
50/50%, podendo ser 60/40% pra um lado ou pra outro. No caso das animações, o
legendado tornou-se uma raridade em qualquer lugar. O Gato de Botas 2
simplesmente não teve distribuição de cópias legendadas. Recentemente, pela
postagem da Fabiana Lima e as respostas que recebeu, percebo que fora do eixo
Rio/São Paulo os legendados estão desaparecendo, relegados a sessões tarde da
noite, muitas vezes em caras salas VIP, que no Rio chegam a custar quase 90 reais por cabeça no fim de semana.
Minha surpresa é que eu sempre imaginei que essa tendência viria de uma maior popularização da sala de cinema. O público acostumado com dublagem na TV não iria querer saber de legendas ao ter mais aceso às salas, através de um processo de barateamento dos ingressos. Mas os ingressos continuam caros e, mesmo assim, o dublado se expande nas salas. Na verdade, quando os preços dos cinemas saíram de controle no final da década de 2000, vínhamos de uma longa tradição de cinema ser uma diversão popular, barata. Minha avó materna vivia no cinema, veio com 12 anos sozinha do interior de Minas pra trabalhar em casa de família. Gostava de Mazzaropi e das chanchadas da Atlântida. Minha avó paterna veio adolescente de Juazeiro do Norte, vendia doce na rua, conjuntos de cama e mesa na favela. Ela amava Hollywood, especialmente Tyrone Powell, Gregory Peck, Janet Gaynor e as operetas com Nelson Eddy e Janet McDonald. Meu pai largou os estudos pra poder trabalhar. Tinha um caderno onde anotava cada filme que viu, em qual cinema e qual sua nota pro filme. Eu me acostumei a ir ao cinema de uma ou duas vezes por semana, às vezes três, com dinheiro de mesada! Ia muito com meus pais também. Hoje os preços dos ingressos tornam isso impossível. Mas mesmo com esses preços o dublado domina as salas.
É sobre classe, já que nas periferias
o legendado praticamente inexiste, mas também não é. É algo mais que eu
sinceramente não sei. Talvez as pessoas antigamente compartimentalizavam mais:
TV é dublado, cinema é legendado. Funcionava assim e as pessoas meio que
aceitavam. Talvez com as opções dubladas do DVD e a TV por assinatura que
passou também a ter as duas opções, e o streaming, o dublado passou a ser mais
assistido, ao ponto de muita gente simplesmente não assistir mais legendado. E
querem a mesma coisa no cinema. A irônica consequência é que está deixando de
ser uma opção justamente nas salas de cinema que passaram décadas oferecendo só
legendado. Assistir filme com som original no cinema está cada vez mais
difícil. Na maioria das cidades do país, já é algo impossível.
Para mim, a experiência do cinema envolve assistir a um filme nas condições ideais: a melhor imagem, o melhor som, as condições mais próximas da exibição imaginada pelos artistas que criaram os filmes. Obviamente, as interpretações dos atores originais e como elas compõem o som do filme é parte essencial disso. A forma como o post da Fabi foi recebido por muitos resume bem essa rede social. "Precisamos de mais sessões legendadas em horários acessíveis" foi entendido como "dublagem não deveria existir". Nada de novo no Twitter.
Investir numa boa tela e num bom som doméstico parece ser cada vez mais a solução. Mas tem dois problemas:
1. É algo ainda mais elitista, para poucos.
2. Não é a mesma coisa, mesmo com um bom sistema.
O que me preocupa é que a experiência de ver filmes em salas de cinema esteve ameaçada por um bom tempo pelos altíssimos preços. Depois pelo choque pós pandemia. Agora pelo desaparecimento do som original em filmes estrangeiros. Não só para quem gosta, mas para quem escreve sobre cinema, perder as salas é uma espécie de tragédia. Não vejo mudanças positivas adiante. A não ser, é claro, o fortalecimento do cinema nacional, que é em português por natureza. Mas isso é pra outro texto...
ADENDO: Tenho lido histórias de terror de pessoas falando alto, usando o celular durante o filme inteiro, e outras coisas que eu não tenho visto nada parecido quando tenho ido ao cinema sem ser cabine de imprensa. Depois descobri que eram geralmente em sessões dubladas. Minha hipótese é a de que as pessoas estão levando a experiência doméstica completa para o cinema, não apenas a dublagem, mas o comportamento de quem está na sala de casa, e não num ambiente coletivo. E temo que isso também seja irreversível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário