Por Ricky Nobre
É um tanto bizarro que a Academia ame tanto Tarantino. Seu
cinema é essencialmente referencial e metalinguístico, e todos sabemos o quanto
Hollywood ama quem fala dela mesma. Mas o cinema ref(v)erenciado por Tarantino
não é o da indústria padrão, mas sim do cinema B, exploitation, cool e kitsch,
sujo, brutal, tolo e, acima de tudo, com estilo, tanto estiloso quanto estilizado.
Já foi dito que o cinema de Tarantino é um gênero por si só, e esse gênero se
traduz numa forma única e original de transformar uma obsessão nostálgica das
experiências cinematográficas da juventude em assinatura autoral, banhada em
conversa fiada e sangue. Após estourar na década de 90 como uma voz nova e
surpreendente no cinema, Tarantino foi deixando de ser uma unanimidade ao longo
da última década. Apesar de ser classificado como um de seus melhores filmes
por muitos fãs, o revisionismo galhofeiro de Bastardos Inglórios não agradou a
todos; o terceiro ato de Django Livre é excessivamente caótico e meio vazio; Os
Oito Odiados acabou se mostrando sem muitas novas ideias e com personagens que
soavam todos iguais, intensificando a sensação de que Tarantino rumava cada vez
mais a se tornar uma paródia de si mesmo. Ele sempre reverenciou o passado do
cinema de um jeito bem particular, mas cada filme parecia voltar
insistentemente ao mesmo ultra-violent-exploitation-revenge-movie. E quando
você insiste em olhar sempre para um mesmo ponto do passado, e você vai
envelhecendo, esse passado fica cada vez mais distante. Antigo ídolo dos jovens
modernos e alternativos, Tarantino corria o risco de se tornar, ele mesmo,
passado.
Em Era Uma Vez em... Hollywood, Tarantino aprofunda e
sedimenta seu olhar ao passado, não apenas da arte cinematográfica, mas da
indústria em si. Seguindo uma fase na vida de um ator decadente e seu fiel
amigo dublê, o filme tira uma polaroid de um momento no tempo, uma Hollywood da
TV e do cinema, das ruas, das salas de exibição, das casas ricas das estrelas.
E também dos destinos cruéis reservados aos que vão se tornando irrelevantes
nesse meio. Ao colocar o Rick de DiCaprio como vizinho de Polanski e sua esposa
Sharon Tate, Tarantino põe a mesa de um fiapo de trama que se desenrolará muito
lentamente, mas com precisão.
Ainda que o desenvolvimento de Tate como personagem tenha
sido alvo de muitas críticas (não totalmente sem razão), a forma como o roteiro
a constrói e a direção lhe dá vida parte de um pressuposto específico: Sharon
Tate é um verdadeiro anjo de beleza, doçura, simplicidade e pureza, um ideal
que representa um sonho idealizado, representando uma Hollywood que, se alguma
vez realmente existiu além das aparências, teria morrido com os crimes de
Charles Manson junto com a jovem atriz. Se em algum momento seu personagem se
desenvolve além do mero símbolo de uma época, isso vem na sequência em que ela
vai ao cinema assistir ao próprio filme e se diverte ao ver o bom resultado com
o público, e na forma como a montagem entrecorta esses momentos com a luta de Rick
em fazer um bom trabalho nas filmagens de um piloto de TV e desesperando-se com
os erros.
E não é à toa que Rick e Cliff se envolvem com frequência em
filmes e séries de western. Eles próprios têm um ar de velhos cowboys, lutando
para permanecerem relevantes em um mundo que vai mudando radicalmente ao seu
redor, num eco, consciente ou não, de Perdidos na Noite, que capturou essas
mudanças no momento em que aconteciam, no mesmo ano de 1969. Tarantino não
apenas inunda o filme de imagens que reproduzem belissimamente a época, mas
também desenvolve a metalinguagem, tão comum à sua obra, a uma sofisticação
inédita para ele. A filmagem do piloto de TV, por exemplo, é exibida para o
público com o olhar do real, não da forma como seria filmado na TV da época,
mas atual, sendo quebrada pelos erros do ator, sem que a narrativa se
interrompa. É uma realidade inventada dentro de uma filmagem dentro de um
filme.
Um dos melhores trunfos de Era Uma Vez... é a volta dos
grandes diálogos de Tarantino. Eles ainda carregam a inconfundível marca do
diretor e roteirista, mas soam como seus personagens, com características
distintas e nuances, e não como se todos falassem igual a Tarantino dando
entrevista. E esses diálogos é que nos levam junto com o filme, deslizando sem
nenhuma pressa, por mais de duas horas até o decisivo terceiro ato. E o que
acontece nele é a razão de ser do filme. E é impossível qualquer análise da
razão de ser do filme sem spoiler. Então...
SPOILERS
SPOILERS
SPOILERS
Alterar o destino de Sharon Tate encerra o princípio e o fim
da proposta do filme. Mais do que gerar a oportunidade para uns bons quatro
minutos de violência brutal e catártica, marca registrada do diretor, ou mesmo
seguir o revisionismo presente em sua filmografia recente, o final feliz da
jovem mãe e promissora estrela é a defesa de uma época. A personagem Sharon
poderia ser incluída no clímax e ter, ainda que com a ajuda de seus heroicos
vizinhos, a chance de se defender e de alguma forma alterar seu próprio
destino. Mas tudo acontece sem seu conhecimento, sem que a brutal realidade a
toque de forma alguma. Isso é um trabalho para os heróis, para os velhos
cowboys. Mais especificamente Cliff, o duble, o que realmente faz, o mocinho
com passado nebuloso. Não é à toa que Rick só chega no final e executa a última
invasora de forma extravagante e despropositada, quando essa já estava
mutilada, com uma arma descarregada e quase se afogando. Cliff, o dublê, segue
ferido ao hospital, com a sensação de dever cumprido. Rick é o herói que se
apresenta à Sharon, a mocinha salva. Como na velha Hollywood.
O olhar de Tarantino não apenas retrata os valores de uma
época, mas os abraça. É proposital que todos os hippies do filme sejam, ao fim,
membros da família Manson, além de serem constantemente ofendidos através dos
diálogos de Rick, sempre reclamando dos “malditos hippies”. Aqui, a
contracultura que tinha “paz e amor” como mote, não passa de uma seita de
assassinos. Nesse espírito, que soa como um conservador octogenário, Tarantino
constrói um conto de fadas onde uma das maiores tragédias de Hollywood jamais
aconteceu. Inadvertidamente, talvez, ele pode ter forjado a melhor definição do
papel da violência em seus filmes, tarefa na qual sempre fracassou em
entrevistas, onde, geralmente, optava pela arrogância.
Assim como a morte de Hitler em Bastardos Inglórios serve à
fantasia, a violência catártica contra personagens reais que estavam prestes a
cometer um crime bárbaro é o que separa a brutalidade real com a da fantasia.
Como se a violência, o ódio e o sadismo do mundo real fossem insuportáveis
demais para ele, Tarantino os substitui pela violência exagerada e caricata de
cartoon ou, mais adequadamente aqui, do cinema de terror. Uma violência que
traz o alívio catártico de obliterar os assassinos da vida real, enquanto, em
sua forma, afasta o drama, o sofrimento e o horror da violência palpável do
mundo. Uma ótica que talvez melhor exemplifique como Tarantino acredita que
separa a violência da vida real de sua violência glamorosa de entretenimento.
Era uma Vez em... Hollywood pode parecer um filme atípico de
Tarantino em alguns aspectos. Não existe uma trama forte que mova o filme e,
fora o massacre bem perto do final e um ou outro soco na cara aqui e ali, é o
filme menos violento do diretor. Pode também ter efeitos bem distintos entre os
que conhecem Sharon Tate e, portanto, absorvem o estranho e difuso, porém
crescente suspense que o filme cria conforme se aproxima do final, e o público
mais novo que talvez não conheça Tate nem Manson, a quem provavelmente todo o
sentido do filme escape. Seria curioso conjecturar o que o jovem Tarantino de
Pulp Fiction pensaria do velho Tarantino de Era Uma Vez em... Hollywood. Se sua
filmografia construiu-se sobre um saudosismo estético e artístico, seu mais
recente filme leva esse saudosismo para a própria arte, para a indústria e para
um way of life. De certa forma, Tarantino pode ter passado toda sua carreira se
preparando para fazer esse filme. Pode ainda ser um Tarantino cada vez mais
egocêntrico, arrogante e cheio de si, porém, de volta, enfim, à plena forma.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR
Melhor filme
Direção: Quentin Tarantino
Ator: Leonardo DiCaprio
Ator coadjuvante: Brad Pitt
Atriz coadjuvante: Margot Robbie
Roteiro original: Quentin Tarantino
Direção de arte: Barbara Ling e Nancy Haigh
Fotografia: Robert Richardson
Figurino: Arianne Phillips
Edição de som: Wylie Stateman
Mixagem de som: Michael Minkler, Christian P. Minkler e Mark
Ulano
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