Por Ricky Nobre
Existem vários tipos de luto. Um deles pode ser o luto por si mesmo ou por uma parte de sua vida que desaparece de uma hora para outra. Em O Som do Silêncio, Ruben, um baterista que forma uma dupla de heavy metal com sua namorada Lou, perde drasticamente a audição em questão de dias. Ele inicialmente finge que não está acontecendo, até que procura um médico que lhe mostra a gravidade da situação e que era imperativo se afastar de ruídos altos para preservar a audição que restou. Mas, em negação, continua se apresentando em turnê, até que o som o abandona quase que completamente. Quando a raiva bate e se mostra um perigo até para ele mesmo, Lou o convence a procurar ajuda, e ele chega numa comunidade de surdos onde ele precisará aprender a viver em sua nova condição.
O que difere O Som do Silêncio de tantos outros dramas edificantes de sofrimento e superação é sua crueza e sua honestidade. Ainda que o diretor Darius Marder opte com frequência por sutileza e delicadeza, a forma como acompanhamos a história de Ruben é carregada de verdade, seja a que ele experimenta e sente, seja a das pessoas que o rodeiam. O objetivo de Paul, que gerencia a comunidade onde ele passa a viver, é de que ele aceite sua nova condição e aprenda a viver com ela como sua realidade atual, que ele consiga um momento em que ele fique parado, em repouso, em silêncio, sem que a cabeça gire a 300 por hora sobre o que acontece com ele. Mas isso é tudo o que Ruben pensa. Inconformado, ele acredita precisar arrumar dinheiro para os implantes que podem lhe trazer de volta a audição, para poder voltar com Lou, botar a banda na estrada, gravar o disco que planejavam, e tudo voltar como era antes. Só que nada será como antes novamente. Ele aprende libras e se conecta cada vez mais com as pessoas da comunidade, vive momentos de alegria, mas sua vida anterior não lhe sai da cabeça.
O filme é muito bem-sucedido ao mostrar os amores de Ruben. Ele ama a música, não apenas o metal que toca em seus shows, mas velhas gravações de blues e da Motown que rodam em seu toca-discos. Ama Lou por ser sua parceira musical, ama a pessoa que ela é e ama ela ter “salvado sua vida”, pois ele parou de usar drogas nos quatro anos em que estão juntos. Ele ama seu trabalho e ama a estrada por onde viaja em seu ônibus-trailer, seu lar, indo de cidade em cidade, de show em show. Com isso tão bem estabelecido, sentimos o brutal impacto de, com a perda da audição, Ruben perder tudo isso de uma vez, já que nem a convivência com Lou é possível, pois na comunidade, nessa fase de aprendizado, ninguém de fora é permitido. Daí a obsessão de Ruben em reaver tudo que perdeu, não importa os custos.
A total imersão que sentimos no mundo do protagonista se dá principalmente por três fatores: a câmera, o som e Riz Ahmed. A câmera segue Ruben com constante intimidade, sempre atenta aos pequenos gestos e expressões. Geralmente livre e “na mão”, é uma câmera que lembra o estilo documental, da mesma forma que a montagem segue um pouco essa lógica, onde os saltos temporais ficam implícitos nas diferenças de comportamento e atividades do personagem. A experiência anterior exclusiva do diretor nessa área (montou e escreveu diversos documentários e dirigiu um) explica seu estilo.
Quanto ao som, talvez seja um dos experimentos mais extraordinários no cinema em décadas. Um absoluto primor técnico e artístico, o som, ao critério extremamente sensível e preciso da direção, nos joga para dentro e para fora da cabeça de Ruben, sempre no momento exato. A cada fase de perda de audição, ouvimos exatamente o que ele ouve, trazendo para muito perto de nós seu medo, desespero e decepção. Quando ouvimos o som puro do mundo à volta dele, é sempre extremamente rico, repleto de camadas belas e sutis dos mais diferentes sons e ruídos, e tudo sem ser exagerado nem embolado, não é uma cacofonia. É a música do mundo. É como se o diretor esfregasse na nossa cara a beleza dos sons que nos rodeia e aos quais não damos valor, mas que agora estão fora do alcance de Ruben. O contraste com o som do silêncio de Ruben é sempre preciso e chocante. Outro destaque do trabalho sonoro é a reprodução do som dos implantes, drasticamente diferentes dos sons reais, que também têm alto impacto dramático.
Por fim, temos o trabalho extraordinário do ator Riz Ahmed. Sua total entrega vai desde a preparação, onde aprendeu libras e a tocar bateria, até a forma como ele expressa cada emoção, seu olhar de raiva, de medo, seu olhar perdido por não saber como viver sem ouvir, a determinação, a decepção e a serenidade. Ahmed nos faz íntimo de Ruben e torcemos e sentimos por ele a cada passo.
Talvez o filme peque apenas por tomar algumas liberdades justamente no que se refere aos implantes auditivos. Apesar de mostrar com total realismo seu funcionamento, eles, apesar de seu alto custo, são na realidade cobertos pela imensa maioria dos planos de saúde dos EUA, ao contrário do que é dito no filme. Da mesma forma, existe todo um longo trabalho anterior à cirurgia não só de preparação mas de esclarecimento sobre o real efeito deles na audição, assim como a recuperação da cirurgia não é tão imediata. Num filme com uma preocupação realista tão profunda, pareceu que essas liberdades serviram como um atalho dramático do roteiro, que não casa muito bem com o restante do filme. Mas para quem não está familiarizado com o assunto, flui sem problemas.
Darius Marder nos oferece uma surpreendente estreia na direção de ficção e é, sem dúvida, um nome para ser acompanhado com atenção. O realismo da abordagem e a escolha por evitar a emoção fácil, o melodrama e as “mensagens edificantes” tornam o filme uma experiência singular. Seguimos o protagonista em uma viagem que vai do som do metal pesado que ele toca em seus shows, ao som metalizado e distorcido dos implantes que ele julgava serem sua salvação. Sound of Metal é uma experiência triste, um tanto desesperadora, mas profundamente humana.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Ator: Riz Ahmed
Ator coadjuvante: Paul Raci
Roteiro original: Darius Marder e Abraham Marder
Som: Nicolas Barker, Jaime Baksht, Michelle Couttolenc, Carlos Cortes e Philip Bladh
Montagem: Mikkel E. G. Nielsen
O SOM DO SILÊNCIO (Sound of Metal, EUA – 2019)
Com: Riz Ahmed, Olivia Cooke, Paul Raci, Lauren Ridloff e Mathieu Amalric.
Direção: Darius Marder
Roteiro: Darius Marder e Abraham Marder
Fotografia: Daniël Bouquet
Montagem: Mikkel E. G. Nielsen
Design de produção: Jeremy Woodward
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