Por Ricky Nobre
Toda obra, seja literária, plástica ou musical, precisa de um recorte. É necessário escolher quais enfoques, emoções ou fatos a serem retratados e trabalhados. O cinema, sendo uma arte composta basicamente por todas que a precederam, necessita desse recorte não apenas no roteiro, mas na forma como é enquadrado, montado, definir qual a abordagem das interpretações, do tom geral. Isso serve para ficção, mas é ainda mais importante em obras baseadas na realidade, pois já existe uma quantidade de abordagens possíveis à priori e expectativas quanto a elas. Escolher falar sobre tudo é um risco que o cineasta deve, conscientemente, avaliar e decidir como fazer isso. Porque querer falar sobre tudo carrega o risco de acabar falando sobre nada. E Maestro é um filme sobre nada.
É inegável a paixão de Bradley Cooper pela figura, história e talento do compositor e regente Leonard Bernstein. Assim como é inegável seu talento como ator e também como cineasta, como provou com sua excelente estreia na direção em Nasce uma Estrela. Mas, na verdade, Cooper nem parece que sequer tentou falar sobre tudo em Maestro. Ele tem um punhado de boas ideias visuais, como a fluidez com que os personagens passam de um cenário para outro, como se estivessem em musicais, como que evocando uma época de ouro na vida do personagem, onde tudo era perfeito, ou a separação temporal, onde os anos 40 são em 4:3 preto e branco e os anos 50 e 60 em 4:3 colorido, e as poucas cenas nos anos 80 em widescreen. É louvável também como Cooper filma em 35mm de forma que realmente pareça película, com um belíssimo resultado, numa época em que filmagens nesse formato são surradas na pós-produção até que pareçam digitais.
Mas a sensação que Maestro passa é que é um conjunto de ideias visuais e pinceladas em possíveis temas, mas que são vazios de conteúdo. A paixão de Lenny pela música e, consequentemente, pela regência, seu trabalho e suas dificuldades como compositor, seu processo criativo, sua homossexualidade (ou bissexualidade, sendo mais preciso) e a forma como ele e a esposa lidam com ela como casal, a mudança na vida e na mente dos personagens conforme o tempo passa, tudo isso passa de relance, sem aprofundamento, sem uma visão particular, sem que nada disso seja, de fato, assunto. As passagens de tempo não são apenas saltos temporais, mas vácuos narrativos. Em determinado momento, a esposa do protagonista o acusa de ter determinada postura quanto a seu trabalho. Mais adiante, ela reconhece que isso foi completamente superado após um determinado evento. Como? Quando? De que forma ele fez aquilo? Por quê? O que ele sentiu no processo? Nada disso importa. É apenas uma informação: o personagem foi do ponto A para o ponto B, apenas. E essa é uma característica básica do filme, herdada, não sabemos, da gênese do roteiro ou do processo de montagem, mas a maioria das coisas que vemos não são processos, nem emoções: são informações que as personagens falam. E falam, e falam. É um filme repleto de diálogos expositivos, terrivelmente engessados, de um didatismo particularmente obtuso.
Essa sucessão de aspectos, temas e fatos importantes da vida de Lenny, todos sem aprofundamento algum, gera em seu terço final uma anomalia, onde a esposa de Lenny, Felicia, rouba o protagonismo pelo simples fato de que algo está acontecendo na vida dela e Cooper, enfim, se detém em algo com mais atenção e cuidado. Algumas escolhas visuais são particularmente estranhas, onde duas cenas de discussão entre o casal (uma sutil e outra acalorada) são enquadradas de forma bem distante e absolutamente estática, talvez para destacar a distância física entre o casal, em referência à distância emocional, mas ao altíssimo custo de um total distanciamento dos atores com o público, onde a imobilidade do quadro não se traduz em uma abordagem genuinamente emocional.
Na mesma medida, as escolhas de Cooper tanto como ator quanto diretor rumam para uma abordagem utilizada em diversos filmes do gênero que é a tentativa de quase ressurreição do personagem biografado, e que desembocam num retrato de Bernstein que beira a caricatura. A pesada maquiagem e os trejeitos físicos e vocais formam um conjunto que chama mais a atenção pelo esforço em recriar a pessoa do que pela tradução cinematográfica de quem, de fato, era Lenny.
Nisso, a cena do concerto na catedral, muito comentada na internet em um tom bem crítico por ser exagerada e ligada ao fato de que Cooper teria ensaiado a cena durante seis anos (!!!), acaba por funcionar de forma bem surpreendente, sendo que esse seu exagero performático tem um resultado estético que, de fato, transmite a relação apaixonada e visceral de Bernstein com a música. Além desta cena, é particularmente belo um take específico, onde Lenny conversa com um autor com quem escreverá sua biografia: a textura do filme, as cores, a pesadíssima maquiagem sob aquela luz, Cooper interpretando de forma bem próxima às características do personagem, ao mesmo tempo em que consegue domar a afetação que lembra a imitação humorística. É como que um fragmento, um raio de luz que representa tudo o que o filme poderia ter sido. Mas Cooper não tem um norte em seu filme. Não tem um recorte. É um filme que imita a vida aos fragmentos em vez de criá-la.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Ator: Bradley Cooper
Atriz: Carey Mulligan
Roteiro original: Bradley Cooper e Josh Singer
Som: Richard King, Steve Morrow, Tom Ozanich, Jason Ruder e Dean Zupancic
Fotografia: Matthew Libatique
Maquiagem: Kazu Hiro, Kay Georgiou e Lori McCoy-Bell
MAESTRO (EUA – 2023)
Com: Bradley Cooper, Carey Mulligan, Sarah Silverman, Maya Hawke, Sam Nivola e Alexa Swinton
Direção: Bradley Cooper
Montagem: Michelle Tesoro
Design de produção: Kevin Thompson
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