A cada cinebiografia lançada, repete-se a mesma dança: as
discrepâncias entre os fatos reais e o que é retratado no filme geram diversas
controvérsias e indignações. Seja o ato de condensar vários acontecimentos ou
personagens em um só, seja alterar a ordem dos fatos para efeito dramático,
seja simplesmente inventar o que não aconteceu porque a verdade é inconveniente
ou, simplesmente, chata. Por necessidade, capricho ou má fé, as cinebiografias
nunca serão a reprodução exata da realidade. Bohemian Rhapsody chega com a
intenção de ser um retrato da trajetória do Queen, e consegue ser, em parte. Mas,
no fundo, é mesmo o que o público espera que seja: um filme sobre Freddie
Mercury.
Stephen Frears chegou a comandar o projeto com Sacha Baron
Cohen como Freddie, mas os demais membros do Queen, Brian May e Roger Taylor,
que atuavam como produtores, não concordavam em se concentrar apenas no
vocalista e queriam que fosse um filme sobre a banda. Pelas mãos de Brian
Synger, o filme parece ter atingido um meio termo: ainda tem Mercury como
protagonista mas dá um foco bem maior nos demais membros do que era de se
esperar. O filme acompanha o jovem filho de paquistaneses, que não tem
afinidade alguma com os pensamentos tradicionais da família, em seus primeiros
passos no mundo da música, e a ascensão meteórica da banda, os conflitos,
amores, separações, vícios e traições.
De cara, uma coisa que diferencia Bohemian Rhapsody dos
demais filmes sobre músicos, ou mesmo outros artistas, é que alguma atenção foi
dispensada em retratar a arte em si e seus processos criativos. As cenas que
retratam sessões de gravação e processos de composição elevam o filme ao tornar
a arte criada por seus personagens tão relevante quanto seus dramas pessoais ou
os escândalos em que se envolveram, aspectos que acabam sendo o foco único da
imensa maioria das cinebiografias de artistas, como se o único motivo desses
filmes serem feitos fosse a exploração sensacionalista da “vida loca”. Nesse aspecto,
o filme se destaca da mesmice.
No que tange à velha polêmica da “fidelidade”, o filme é um
balaio misto. Muito trabalho e dinheiro foram investidos na reconstrução visual
da época. O estádio de Wembley foi reconstruído exatamente como era em 1985
durante o Live Aid, chegando a impressionar Bob Geldof, idealizador do
concerto, pela fidelidade em cada detalhe. A recriação do show do Live Aid, em
si, é um absoluto primor, estudada e replicada em seus mínimos nuances. O quarteto
de atores que interpreta o Queen também impressiona, seja pela semelhança
física, seja pela recriação dos personagens. Rami Malek, obviamente, é o grande
destaque do elenco. A forma como ele se comporta no palco é realmente impressionante,
e desde The Doors de Oliver Stone não se tem a impressão tão nítida de que
voltamos no tempo e estamos vendo novamente a banda real ali.
Por outro lado, se o visual é tão impressionantemente
idêntico, o roteiro é uma salada de fatos, boatos, recriações e invenções. Enquanto
muita coisa cai no recurso de condensação para acelerar a história, outros são
a mais pura ficção, como toda confusão envolvendo o álbum solo de Mercury e o
Live Aid, tornando o filme alvo de muitas críticas. Mas talvez o maior problema
do filme seja uma certa superficialidade do roteiro. Nada é muito aprofundado,
sejam fatos ou personagens, e fica a impressão de que o público não chega
realmente a conhecer aquelas pessoas, só mesmo Mercury, e muito superficialmente.
Bohemian Rhapsody teve uma produção atribulada. Brian Synger
foi demitido após desaparecer das filmagens em diversas ocasiões, e a Fox
tratou de contratar Dexter Fletcher para substituí-lo nas duas últimas semanas
de filmagem e por todo o processo de pós-produção. Mas talvez seja leviano
apontar esses percalços como responsáveis pelos problemas do filme. De fato, a
ficcionalização de parte da história quebra o mito de que a participação dos
biografados garante uma biografia fiel. May e Taylor não pareceram ver
problemas em inventar uma briga entre o grupo que nunca existiu. De qualquer
forma, mesmo os que conhecem melhor a história da banda e percebem os problemas,
quanto aqueles que nada sabem e compram o que o filme mostra como realidade,
vão sair do filme com um gosto muito bom na boca. Com a grande apoteose final
sendo a fidelíssima recriação do show do Live Aid, Bohemian Rhapsody se
consagra como uma tocante homenagem a Mercury e a uma das maiores bandas de
todos os tempos. Com um final desses, você até esquece os problemas e sai com a
impressão de que viu um filmaço.
COTAÇÃO:
BOHEMIAN
RHAPSODY (2018)
Com: Rami
Malek, Lucy Boynton, Gwilym Lee, Ben Hardy, Joseph Mazzello, Aidan Gillen, Allen
Leech e Mike Myers
Direção: Bryan Singer e Dexter Fletcher (não creditado)
Roteiro: Anthony
McCarten
Fotografia:
Newton Thomas Sigel
Montagem e música original: John Ottman
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Ator: Rami Malek
Montagem: John Ottman
Edição de som: Nina Hartstone e John Warhust
Mixagem de som: Paul Massey, Tim Cavagin e John Casali
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