Por Ricky Nobre
A América Latina tem cicatrizes que são próprias. Talvez por
isso, mesmo o espectador brasileiro que não é versado na História recente do
México é capaz de compreender o que se desenrola em Roma, o mais recente projeto
pessoal e independente da Alfonso Cuarón, que já conquistou Hollywood com filmes
como Harry Potter e O Prisioneiro de Azkaban e Gravidade. Para o público norte
americano e, mais acentuadamente, europeu, causa estranheza os laços ao mesmo
tempo íntimos, emocionais e hierárquicos entre as empregadas e babás pobres que
trabalham e moram nas casas de brancos de classe média. O brasileiro Que Horas
Ela Volta? já havia tido esse efeito pelos festivais internacionais onde
passou. Mas Cuarón vai muito além do ótimo exemplo nacional. Ambientado nos
anos de 1970 e 1971, Roma adiciona ao desequilíbrio social e abismo de classes
o componente do turbilhão político de um México que raras vezes em sua história
viu democracia. Mas o que torna o filme verdadeiramente poderoso e único é todo
o investimento pessoal e emocional que o diretor e roteirista investe. Roma foi
o bairro onde Cuarón viveu por toda a juventude e a protagonista Cleo é baseada
na moça indígena que trabalhou por muitos anos em sua casa. Segundo o diretor,
90% do roteiro foi extraído de suas memórias.
A brilhante direção de Cuarón concebe e realiza um filme que
surpreende pela aparente simplicidade. Não é uma trama de grande sucessão de
acontecimentos. Os grandes dramas da vida estão nas vírgulas do cotidiano, na
rotina diária. Mas é nesse dia a dia que ele estabelece as contradições que
hoje pode chocar a muitos que não estão acostumados com essa realidade, como o
enorme afeto das crianças por Cleo, que mora num quartinho do lado de fora da
casa e que tem o consumo de luz elétrica regulado pela patroa. O trabalho
doméstico diário, extenso e invisível do nascer do sol ao apagar da última luz
não é apreciado se o cachorro fizer mais um cocô antes do patrão chegar. A vida
confortável e segura tem o rosto branco. A pobreza e o subemprego tem rosto
escuro e traços indígenas.
A experiência pessoal do diretor nessa realidade leva essas
reflexões para além de clichês e julgamentos absolutos. Talvez o elemento que
mais sirva de ponto de união entre classes seja as mulheres. São elas que
cuidam de tudo quando o homem vira as costas para a família. São elas que pagam
o preço social e emocional do abandono. Uma cena de grande impacto e significado
é quando Sofia, a dona da casa, chega bêbada e abraça Cleo: “Nós mulheres
estamos sempre sozinhas”. Cleo e Sofia sofrem abandono semelhante quase ao mesmo
tempo. Quanto aos homens, são em sua totalidade ou os donos do poder, os
agentes da morte e violência ou os que partem sem sequer um aviso. Na chocante cena
do Massacre de Corpus Christi (onde o espectador latino americano pode não
saber exatamente o que está acontecendo, mas ENTENDE o que está acontecendo),
há a chocante convergência entre o povo nativo e explorado com a violência do
poder, quando a morte chega pelas mãos de jovens pobres treinados pelo governo
para reprimir manifestações populares.
A câmera de Cuarón consegue extraordinária proximidade com
os personagens, ao mesmo tempo que é surpreendentemente econômica em closes. A câmera
desliza suave, quase sempre na horizontal, tentando ser o mais invisível
possível. Ainda assim, não existe uma impressão de “registro documental”, em
que pese a fotografia em preto e branco. A câmera é viva e precisa, mas a
emoção é extraída dos atores, do roteiro, com a câmera procurando ser, o tanto
quanto possível, uma testemunha imparcial, ainda que algumas escolhas de
enquadramento permaneçam carregadas de significado.
O filme se agiganta incrivelmente com a impressionante cena
do parto e, pouco mais adiante, a cena da praia. Esta última, impecável em
todos os aspectos, da concepção, ao elenco, os efeitos especiais absolutamente invisíveis,
a carga emocional brutal e catártica de quem segura sua dor em silêncio tempo
demais. Roma parece terminar sem uma conclusão clara, um final “redondinho”. Roma
é um filme que passa pelo espectador “como quem não quer nada”. Com seu ritmo
firme, porém suave, com seu olhar distante, porém preciso sobre os
acontecimentos e personagens, ele termina deixando uma impressão no espectador
que ele pode não saber ao certo de onde vem e porquê. Roma convida à reflexão
não só durante mas bem depois do fim da exibição. Um filme que, apesar do
incisivo comentário social, tem, de fato, um profundo impacto emocional. Dentre
seus colegas e amigos mexicanos que conquistaram Hollywood, Cuarón sempre foi o
de maior coração. E acredite: um homem capaz de fazer Harry Potter, Gravidade
e Roma, é capaz de qualquer coisa.
COTAÇÃO:
ROMA (2018)
Com: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Jorge Antonio
Guerrero, Nancy García García e Fernando Grediaga.
Direção, roteiro e fotografia: Alfonso Cuarón
Montagem: Adam Gough e Alfonso Cuarón
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Melhor filme de língua não inglesa
Direção: Alfonso Cuarón
Atriz: Yalitza Aparicio
Atriz coadjuvante: Marina de Tavira
Roteiro original: Alfonso Cuarón
Fotografia: Alfonso Cuarón
Edição de som: Sergio Díaz e Skip Lievsay
Mixagem de som: Skip Lievsay, Craig Henighan e José Antonio
García
Direção de arte: Eugenio Caballero, Bárbara Enríquez
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