domingo, 24 de fevereiro de 2019

Os Filmes do Oscar: ROMA – 10 indicações


Por Ricky Nobre

 

A América Latina tem cicatrizes que são próprias. Talvez por isso, mesmo o espectador brasileiro que não é versado na História recente do México é capaz de compreender o que se desenrola em Roma, o mais recente projeto pessoal e independente da Alfonso Cuarón, que já conquistou Hollywood com filmes como Harry Potter e O Prisioneiro de Azkaban e Gravidade. Para o público norte americano e, mais acentuadamente, europeu, causa estranheza os laços ao mesmo tempo íntimos, emocionais e hierárquicos entre as empregadas e babás pobres que trabalham e moram nas casas de brancos de classe média. O brasileiro Que Horas Ela Volta? já havia tido esse efeito pelos festivais internacionais onde passou. Mas Cuarón vai muito além do ótimo exemplo nacional. Ambientado nos anos de 1970 e 1971, Roma adiciona ao desequilíbrio social e abismo de classes o componente do turbilhão político de um México que raras vezes em sua história viu democracia. Mas o que torna o filme verdadeiramente poderoso e único é todo o investimento pessoal e emocional que o diretor e roteirista investe. Roma foi o bairro onde Cuarón viveu por toda a juventude e a protagonista Cleo é baseada na moça indígena que trabalhou por muitos anos em sua casa. Segundo o diretor, 90% do roteiro foi extraído de suas memórias. 

 

A brilhante direção de Cuarón concebe e realiza um filme que surpreende pela aparente simplicidade. Não é uma trama de grande sucessão de acontecimentos. Os grandes dramas da vida estão nas vírgulas do cotidiano, na rotina diária. Mas é nesse dia a dia que ele estabelece as contradições que hoje pode chocar a muitos que não estão acostumados com essa realidade, como o enorme afeto das crianças por Cleo, que mora num quartinho do lado de fora da casa e que tem o consumo de luz elétrica regulado pela patroa. O trabalho doméstico diário, extenso e invisível do nascer do sol ao apagar da última luz não é apreciado se o cachorro fizer mais um cocô antes do patrão chegar. A vida confortável e segura tem o rosto branco. A pobreza e o subemprego tem rosto escuro e traços indígenas. 

 

A experiência pessoal do diretor nessa realidade leva essas reflexões para além de clichês e julgamentos absolutos. Talvez o elemento que mais sirva de ponto de união entre classes seja as mulheres. São elas que cuidam de tudo quando o homem vira as costas para a família. São elas que pagam o preço social e emocional do abandono. Uma cena de grande impacto e significado é quando Sofia, a dona da casa, chega bêbada e abraça Cleo: “Nós mulheres estamos sempre sozinhas”. Cleo e Sofia sofrem abandono semelhante quase ao mesmo tempo. Quanto aos homens, são em sua totalidade ou os donos do poder, os agentes da morte e violência ou os que partem sem sequer um aviso. Na chocante cena do Massacre de Corpus Christi (onde o espectador latino americano pode não saber exatamente o que está acontecendo, mas ENTENDE o que está acontecendo), há a chocante convergência entre o povo nativo e explorado com a violência do poder, quando a morte chega pelas mãos de jovens pobres treinados pelo governo para reprimir manifestações populares. 

 

A câmera de Cuarón consegue extraordinária proximidade com os personagens, ao mesmo tempo que é surpreendentemente econômica em closes. A câmera desliza suave, quase sempre na horizontal, tentando ser o mais invisível possível. Ainda assim, não existe uma impressão de “registro documental”, em que pese a fotografia em preto e branco. A câmera é viva e precisa, mas a emoção é extraída dos atores, do roteiro, com a câmera procurando ser, o tanto quanto possível, uma testemunha imparcial, ainda que algumas escolhas de enquadramento permaneçam carregadas de significado.

 

O filme se agiganta incrivelmente com a impressionante cena do parto e, pouco mais adiante, a cena da praia. Esta última, impecável em todos os aspectos, da concepção, ao elenco, os efeitos especiais absolutamente invisíveis, a carga emocional brutal e catártica de quem segura sua dor em silêncio tempo demais. Roma parece terminar sem uma conclusão clara, um final “redondinho”. Roma é um filme que passa pelo espectador “como quem não quer nada”. Com seu ritmo firme, porém suave, com seu olhar distante, porém preciso sobre os acontecimentos e personagens, ele termina deixando uma impressão no espectador que ele pode não saber ao certo de onde vem e porquê. Roma convida à reflexão não só durante mas bem depois do fim da exibição. Um filme que, apesar do incisivo comentário social, tem, de fato, um profundo impacto emocional. Dentre seus colegas e amigos mexicanos que conquistaram Hollywood, Cuarón sempre foi o de maior coração. E acredite: um homem capaz de fazer Harry Potter, Gravidade e Roma, é capaz de qualquer coisa.

 

COTAÇÃO:

ROMA (2018)

Com: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Jorge Antonio Guerrero, Nancy García García e Fernando Grediaga.

Direção, roteiro e fotografia: Alfonso Cuarón     

Montagem: Adam Gough e Alfonso Cuarón



INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Melhor filme de língua não inglesa

Direção: Alfonso Cuarón

Atriz: Yalitza Aparicio

Atriz coadjuvante: Marina de Tavira

Roteiro original: Alfonso Cuarón

Fotografia: Alfonso Cuarón        

Edição de som: Sergio Díaz e Skip Lievsay

Mixagem de som: Skip Lievsay, Craig Henighan e José Antonio García

Direção de arte: Eugenio Caballero, Bárbara Enríquez

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