Por Ricky Nobre
É comum no Japão a adaptação de mangás e animes de sucesso
para filmes live action (com atores). Mas a transposição desses sucessos
nipônicos para o cinema americano é raríssima e praticamente desconhecida. Em
1991, um Mark Hamill desesperado por trabalho estrelou uma versão de Guyver.
Quatro anos depois, um remake americano de Hokuto no Ken foi lançado
diretamente em vídeo, de tão “bom” que era. E bem viva na memória está a versão
de Dragon Ball de 2009. Com este, porém, não fomos abençoados com o
esquecimento. Talvez o melhor resultado tenha sido Speed Racer, um caldeirão de defeitos e qualidades, mas que foi um grande fracasso financeiro e talvez seja o filme menos lembrado dos Wachowski.
O panorama parece estar mudando. A Netflix está para lançar
uma versão com atores do sensacional Death Note, enquanto James Cameron
finalmente tirou da gaveta seu projeto de quase 20 anos de produzir uma versão
de Battle Angel Alita, cuja direção ficará a cargo de Robert Rodriguez, uma vez
que Cameron está às voltas com Avatar 2, 3, 4 e 5, e atuará apenas como
produtor.
O pontapé inicial para essa “nova era” é o lançamento da
versão americana de Ghost In The Shell, um verdadeiro clássico no mangá
original de Masamune Shirow (1989) e no longa de animação de Mamoru Oshii (1995,
lançado em vídeo no Brasil como O Fantasma do Futuro). Os trailers deixaram os
fãs alvoroçadíssimos, pois mostravam reproduções fidelíssimas de cenas icônicas
do longa original. Por outro lado, a escalação de Scarlett Johansson como a
Major fez apitar as sirenes do whitewashing, pois Hollywood realmente não perde
uma chance de escalar um ator branco, mesmo que o material exija diversidade
étnica. Torna-se obrigatório, porém, alertar os fãs de longa data do material
original: este novo Ghost In The Shell não tem rigorosamente nada a ver com o
anime.
Construir uma nova história em torno dos personagens, estilo
e da trama básica do material original não é novidade dentro da franquia. O próprio
filme clássico foi baseado em apenas um trecho do mangá, enquanto sua
continuação (Innocence, 2004) foi livremente baseada em outro. Uma série de TV
com duas temporadas (Stand Alone Complex, 2002-2004) também adaptou livremente
outras subtramas do mangá, e uma nova série de cinco capítulos produzidos para vídeo
(Arise, 2013-2015), parte de uma releitura completamente nova, sem ligação com
o mangá e os animes anteriores. Então qual o problema do remake americano criar
uma nova trama? A princípio, nenhum. O problema é Hollywood sendo Hollywood.
Em 2029, Mira Killian acorda num susto para descobrir que
foi resgatada de um barco de refugiados e que seu cérebro foi transplantado
para um corpo cibernético. Sem as memórias de sua vida, Mira se resigna a viver
em função do Setor 9, agindo como agente especial. Ao investigar um terrorista
virtual, um hacker de mentes que declara guerra ao maior fabricante de
implantes cibernéticos, responsável pelo novo corpo de Mira, esta começa a questionar
suas origens e estranhas imagens e “bugs” que surgem em seu cérebro.
É necessário deixar claro de uma vez o quanto que esse filme
é lindo! Não apenas as recriações de várias cenas famosas do anime são de
extremo bom gosto, como todo o filme é muito bonito de se ver. Infelizmente,
suas qualidades não vão muito longe disso. O principal problema do filme foi
justamente a americanização em seus piores aspectos. Se originalmente a Major
Motoko Kusanagi foi voluntária para se tornar uma ciborgue, sendo uma entre
vários, a Major Mira tornou-se uma “arma viva” à revelia, sendo tratada como
propriedade coorporativa, com a importância de ser um protótipo ímpar. Se a
Major original começa a ter questionamentos filosóficos sobre a própria
humanidade e existência a partir de um caso que investiga, a protagonista do
novo filme é jogada uma trama perigosa que envolve sua própria origem. Os questionamentos
existenciais da personagem original vem de dentro para fora; no remake, é de
fora para dentro.
A fragilidade do roteiro não vem apenas da descomplexização
dos questionamentos da Major, mas do reducionismo simplório que abrange
praticamente todo o filme. Desde os primeiros minutos, a personagem é
bombardeada por todos à sua volta com frases de auto ajuda inspiradoras de
facebook. A banalização de questões existenciais complexas seriam até
perdoáveis não fosse toda uma narrativa tatibitate que debocha da inteligência
do espectador durante quase duas horas. Não é o filme mais idiota do mundo,
longe disso, mas ele não perde nenhuma oportunidade de explicar tudo
imediatamente, e o único grande mistério da trama nunca chega a ser exatamente
um mistério, pois já fica meio claro desde o início. Não deixa de ser um eco de
ironia que este ícone do estilo cyberpunk, tão em voga nos anos 80 e 90, tenha
sido refilmado de uma forma que muito lembra a primeira versão de Blade Runner (1982),
o primeiro grande filme do gênero, onde um final feliz postiço foi adicionado,
junto com uma onipresente narração que explicava o que o espectador via.
Naquela que talvez seja a única surpresa real da trama, o roteiro acaba
criando um esperto artifício que justifica a escolha de uma atriz branca para
interpretar a major, tirando o peso do whitewashing das costas de Scarlet
Johansson. Porém, acaba ficando evidente que o problema não é ela, é o conjunto
da obra. A decisão puramente estética e estilística de ambientar o filme em
Tóquio, e não em, por exemplo, New York, gerou uma distorção grotesca de ter uma
história que se passa no Japão onde mais de 70% do elenco é branco e fala
inglês, sem mencionar o desperdício de um personagem como Togusa, um dos
principais parceiros da Major no mangá, ser interpretado por um ator asiático
apenas para virar um figurante de luxo. Visualmente, Batou acaba sendo o
personagem mais bem traduzido, e não deixa de ser interessante vermos como e
porque ele adquire seus implantes óticos.
E tratando dos personagens clássicos do mangá, chegamos ao elemento
mais interessante de todo o filme: Takeshi Kitano! Escalado para interpretar o
chefe Aramaki, Kitano não se deu ao trabalho de aprender suas falas em inglês.
Ele fala japonês o tempo inteiro, enquanto todos entendem e respondem em
inglês. Aqui o filme perde uma maravilhosa oportunidade de capitalizar de forma
positiva com a ostensiva presença branca no filme. Se os (poucos) atores asiáticos
falassem apenas japonês como Kitano, e Juliete Binoche falasse apenas em
francês, e talvez outros dois atores em outras línguas, criaria-se uma estética
“cosmopolita” não apenas para o filme mas para a própria Tóquio do futuro que
seria um belo ganho para o filme, uma vez que a plausibilidade dessa “babilônia”
se justificaria facilmente com os implantes cerebrais claramente presentes em
todos os personagens. Desta forma, Takashi Kitano se torna uma ilha de
resistência nipônica num universo desfigurado pela americanização. Uma
resistência não só do Japão, mas de si mesmo, pois, ainda que originalmente
Aramaki jamais tenha sido visto segurando uma arma, aqui Kitano constrói um
Aramaki no melhor estilo de seus clássicos personagens.
Mesmo com todas as drásticas mudanças na trama, a Major chega aos
últimos minutos de filme com uma escolha muito semelhante à de sua contraparte
no mangá e no anime. E é justamente essa escolha que marca a grande diferença
entre este novo Vigilante do Amanhã e o clássico Ghost In The Shell. As condições
para o início de uma longa e rentável franquia foram estabelecidas e agora está
nas mãos do grande público que, majoritariamente, não tem conhecimento do anime
e do mangá originais e não possui interesse algum neles. O que vai definir o
sucesso ou não do filme e de suas possíveis continuações é se público
continuará gostando de ver Scarlet Johansson como heroína de ação artificialmente
melhorada (Viúva Negra, Lucy...) e se as limitações narrativas serão ou não um
problema na apreciação do filme. Para os fãs antigos, fica a certeza de que um
baú de referências e “easter eggs” não são o suficiente, é preciso substância. O
tema musical do filme original irrompendo com os créditos finais soa mais como
um deboche, algo como “ouça o que vocês não viram”. Deveria ser emocionante.
Mas só dá raiva.
VIGILANTE DO AMANHÃ (Ghost In The
Shell, 2017)
Com: Scarlet Johansson, Pilou
Asbæk, Takeshi Kitano, Juliette Binoche e Michael Pitt.
Direção: Rupert Sanders
Roteiro: Jamie Moss e William Wheeler
Fotografia: Jess Hall
Montagem: Billy Rich e Neil Smith
Música: Lorne Balfe e Clint Mansell
Um comentário:
Hollywood jamais seria a mesma, se não arruinasse ao menos um clássico por década.
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