Por Ricky Nobre
Steven Spielberg sempre sonhou em fazer um musical. Em 1985 ele chegou a cogitar essa possibilidade de seguir esse caminho com A Cor Púrpura e, ainda que tenha desistido, existem duas cenas no filme que seguem a lógica de musical e que são especialmente poderosas. Em 1991, ele decide fazer de Hook um musical. John Williams compôs todas as músicas, Leslie Bricusse escreveu todas as letras, mas semanas antes do início das filmagens, ele desistiu novamente, só que, desta vez com imenso arrependimento. Spielberg jamais gostou do resultado final de Hook. Porém, sempre ficou em sua cabeça uma obra pela qual se apaixonou ainda aos 10 anos de idade: West Side Story. 65 anos depois de lançado na Broadway e 60 após a filme dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins, Spielberg nos traz sua versão do que é considerado um dos maiores musicais já criados.
A versão de 2021 de Amor, Sublime Amor é uma anomalia completamente deslocada no cenário cinematográfico atual. Ela é fruto do absoluto descomprometimento do cineasta em relação a expectativas, seja do público, seja de produtores. Spielberg é, certamente, o cineasta mais poderoso de Hollywood e não existe ninguém capaz de dizer o que ele deve ou não fazer. Desta forma, ele constrói uma meticulosa atualização da obra original (não há sequer uma linha de diálogo que não tivesse sido reescrita), enquanto dá ao filme uma atmosfera, um brilho específico que parece saído direto da Era de Ouro de Hollywood, ao mesmo tempo em que empenha um esforço que se espalha por toda a equipe de obliterar o máximo possível qualquer traço de estereótipos e preconceitos sobre porto-riquenhos em específico e latinos em geral. É preciso frisar que foi “o máximo possível”, porque ainda se trata de uma obra originalmente escrita por quatro autores judeus que jamais conheceram um porto-riquenho e está impregnada de noções que pertencem à época em que foi criada, que foi o ano de 1957.
Se formos comparar com o filme de 1961, a diferença mais óbvia e bem-vinda está no fato de que cada membro o elenco agora pertence à mesma etnia de seus personagens, sem os constrangedores blackfaces usados há 60 anos. Mais ainda, foi escolhido um ator trans para interpretar o personagem Anybodys, o que faz todo o sentido. Indo além, desta vez todos os atores cantam suas próprias músicas, nenhum foi dublado, uma vez que boa parte do elenco tem experiência com teatro musical. Mas isso é apenas o começo. O roteiro de Tony Kushner se aprofunda nos personagens e no ambiente, contextualiza a tensão no bairro devido aos projetos de gentrificação, adiciona mais camadas e motivações aos personagens principais, e é mais incisivo ao tratar as questões raciais, trazendo a história mais perto das sensibilidades e conhecimentos do nosso século, ainda que ela continue se passando nos anos 50.
Se os diálogos foram todos mudados, as letras das músicas permanecem intactas quase em sua totalidade, com exceção apenas dos trechos iniciais de America, cujas passagens depreciativas sobre Porto Rico já foram polêmicas na época e que sofreu pequenas mudanças ao longo do tempo, tanto no filme original quanto em encenações posteriores. A performance da Filarmônica de Nova Iorque sob a regência de Gustavo Dudamel é simplesmente excepcional, com utilização das orquestrações originais e ainda, em algumas músicas específicas, os atores cantam ao vivo, sem playback. As coreografias são incrivelmente vibrantes e enérgicas, atualizando com absoluto sucesso as coreografias originais que já eram revolucionárias para a época. A direção de arte impressionantemente detalhada, aliada à fotografia impecável, mantém uma ligeira, mas inescapável estética de cenário de estúdio, algo rotineiro até o início dos anos 70, mas que passou a ser evitado como uma praga, tornando a busca por realismo a regra na indústria.
Desta forma, o West Side Story de Spielberg busca se distanciar de tudo de ruim que o deixou datado, seja as representações raciais e culturais, seja atores dublados, ou mesmo a superficialidade dos personagens. Porém, se agarra, celebra e potencializa de forma até apoteótica não apenas a estupenda música de Leonard Bernstein e as letras de Stephen Sondheim, mas o próprio cinema musical hollywoodiano. Porém, isso não é feito meramente referenciando ou copiando musicais clássicos, ou mesmo o filme original. Spielberg é talvez o mais habilidoso narrador da história do cinema. Cada cena é um exemplo de seu total domínio da câmera e rigorosa precisão da montagem, que sempre dá a impressão que é feito sem nenhum esforço, e o que pode ser reconhecido facilmente como típicos maneirismos spielberguianos dão a impressão de que não havia outra forma de fazer senão aquela.
A presença de Rita Moreno, a Anita da versão de 1961 e primeira atriz latina a ganhar um Oscar, não em uma mera participação especial, mas em um novo e importante personagem, eleva o filme em diversos níveis, seja na metalinguagem, seja aprofundando o tema racial, seja como uma importante referência ao personagem Tony. Ao tirar a música Somewhere do casal e dar para sua personagem Valentina, Spielberg altera o significado na letra, que deixa de ser um hino de esperança do casal por tempos melhores e vira o lamento de uma velha latina que vê as mesmas tragédias que viu na juventude se repetindo. É um inesperado e doloroso toque de amargura numa história de amor que já sabemos que ganha contornos trágicos.
Mas há problemas, e eles, infelizmente, estão no casal central. Ainda que a escolha de Rachel Zegler como Maria seja simplesmente perfeita, Ansel Elgort como Tony puxa o filme pra baixo sempre que aparece. O jovem ator que se saiu tão bem em Baby Driver, por exemplo, aqui apresenta o carisma de uma empada, formando uma química quase zero com sua parceira de cena. Essa química melhora um pouco mais adiante, a partir da cena da igreja, mas não dá conta da paixão avassaladora que o casal diz ter, e Zegler tem que carregar a emoção das cenas nas costas sem ajuda alguma. Além disso, Elgort não convence como um ex-líder de gangue que quase matou alguém a soco, não parece que está nele, que seja algo que ele precise conter ou superar. Sendo honesto, Richard Beymer na versão original não era muito melhor, mas de alguma forma funcionava, não só por ter química melhor com Natalie Wood mas porque era um roteiro bem menos exigente com seus atores.
Mas quem corresponde a todas as exigências e excede todas as expectativas é Ariana DeBose como Anita. Se Rita Moreno brilhou no papel há 60 anos, DeBose entrega absolutamente tudo nesta versão, cantando, dançando e interpretando com perfeição, criando a personagem mais fascinante e concreta do filme.
Outro problema é um aspecto muito elementar da história original que não podia ser mudado. É muito difícil para o público de hoje aceitar que o casal vá para a cama após um evento trágico muito particularmente devastador. A obra original se apoiava na lógica de Romeu e Julieta, sua inspiração principal, e confiava que o público aceitaria um como sempre aceitou o outro. Sempre foi um tópico polêmico na obra, e Spielberg parece ter decido não fazer nada para justificar, amenizar ou contornar, apenas deixa a música A Boy Like That fazer seu trabalho, potencializado pelas excelentes interpretações de Zegler e DeBose (a contraposição com a Somewhere de Moreno também age nesse sentido). Mas ainda é algo que tira muita gente do sério. A fraqueza de Elgort como Tony não ajuda um casal que tem uma dinâmica bem problemática para as sensibilidades atuais e acaba expondo a fragilidade do texto nesse ponto. E isso que meio que resume o que é este West Side Story de Spielberg.
Como dito no início. Spielberg realizou seu sonho de filmar um musical sem estar preocupado com expectativas alheias. O público mais jovem cresceu com musicais mais modernos musicalmente, dos filmes de High School Musical aos espetáculos de Lynn Manuel Miranda. Em 1957, West Side Story era, em forma e conteúdo, algo totalmente inovador, porém hoje é uma relíquia, que soa antigo aos ouvidos jovens. As melodias e orquestrações de Bernstein embalando atores em belíssimos figurinos dos anos 50, com coreografias vigorosas em um cenário de estúdio, com toda atmosfera de uma Hollywood que não existe mais, é algo que parece não pertencer a esse século. Ainda que o texto tenha atualizado com muito sucesso boa parte do que envelheceu mal e a linguagem cinematográfica de Spielberg permaneça absolutamente atual, West Side Story continua parecendo um filme que é difícil de entender por que foi feito, por que existe. Steven Spielberg quis, durante toda sua vida, filmar um musical. Aos 75 anos, ele decidiu que já era a hora. Lançado em tempos de pandemia, se saiu mal nas bilheterias.
West Side Story sempre terá problemas inerentes vindos do quão alheios os criadores originais eram do universo abordado. Se este filme tem uma razão de ser, foi ter eternizado para a tela uma visão bem mais atualizada desta história, tornando-a mais fiel aos seus temas e personagens. Com um ator mais adequado como protagonista, ganharia a força que era imperativa ao casal central, mas que se perdeu. Talvez seja por isso que este seja um filme tão divisivo, não para a crítica em geral, mas para o público. Quem compra a lógica problemática do casal central e toda a estética de musical clássico, abraça o filme em sua totalidade. Os que repelem a dinâmica dos dois, acaba repudiando o filme, ainda que admirem o triunfo técnico que ele é. Spielberg fez o que artistas fazem: apresentar ao mundo uma obra sem concessões e que saia do fundo do seu coração e o represente como artista. Cabe aos corações e mentes do público recebê-lo ou não.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Diretor: Steven Spielberg
Atriz coadjuvante: Ariana DeBose
Fotografia: Janusz Kaminski
Direção de arte: Adam Stockhausen e Rena DeAngelo
Figurino: Paul Tazewell
Som: Brian Chumney, Tod A. Maitland, Andy Nelson e Gary Rydstrom
AMOR, SUBLIME AMOR (West Side Story, EUA – 2021)
Com: Ansel Elgort, Rachel Zegler, Ariana DeBose, David Alvarez, Rita Moreno, Corey Stoll, Mike Faist, Josh Andrés Rivera e Iris Menas.
Diretor: Steven Spielberg
Fotografia: Janusz Kaminski
Montagem: Sarah Broshar e Michael Kahn
Design de produção: Adam Stockhausen
Música: Leonard Bernstein
Letras: Stephen Sondheim
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