Por Ricky Nobre
Adam McKay parece ser o novo amado da Academia. Desde o excelente A Grande Aposta, seus filmes são presença obrigatória na lista de indicados. Seu novo filme parece que pegou a tempestade perfeita. Originalmente concebido como uma metáfora dos tempos atuais de negacionismo, manipulação da opinião pública e fake news em geral e do aquecimento global em particular, Não Olhe Para Cima é uma sátira um tanto desconfortável e absurda (como é próprio das sátiras) que conjectura como um evento catastrófico global seria absorvido em uma conjuntura social e cultural como a atual. Provavelmente seria um filme de pouco alcance e impacto no público. Talvez sua sátira fosse compreendida de forma diferente, não se sabe. Mas algo aconteceu que alterou completamente o perfil da obra em comparação à sua concepção: o filme foi lançado durante um evento catastrófico global.
A pandemia de Covid-19 surgiu como um cometa no início de 2020 trazendo, quem diria, fake news, negacionismo e manipulação da opinião pública, além de um longo adiamento no início das filmagens, que aconteceriam em abril e passaram para novembro. Não é possível mensurar o impacto da pandemia e de que forma os artistas envolvidos absorveram as semelhanças entre o roteiro e o que de fato aconteceu nos EUA e no mundo no que se refere ao enfrentamento da doença. Mas com certeza foi significativo, e adicionou mais camadas à sátira.
No filme, dois astrônomos descobrem um cometa de 9 quilômetros de diâmetro (um “assassino de planetas”) rumando diretamente para a Terra. Ao se encontrarem com a Presidente dos EUA e outras autoridades, descobrem que a prioridade são as eleições e a imagem do governo. O filme acompanha o desespero dos cientistas em alertar a população, a letargia alegre da mídia, polarização política e a ganância do capitalismo.
Com os cinemas pouco frequentados por causa da Covid, o filme teve um lançamento limitado nas salas por três semanas, sendo lançado depois na plataforma da Netflix, que havia comprado o projeto da Paramount ainda em fevereiro de 2020. Lançado no final de dezembro de 2021 no streaming, o filme caiu como uma bomba, tornando-se o conteúdo recordista de visualização da Netflix. O público em sua maioria enxergou uma metáfora da pandemia e tornou o filme assunto onipresente nas redes sociais.
Não dá pra fingir que Não Olhe Para Cima não foi lançado num mundo completamente diferente daquele em que o roteiro foi escrito. Ou melhor, não tão diferente assim. Diferente, mas igual. E esse é o segredo do sucesso do filme. Ao se relacionar a posteriori e muito diretamente à pandemia, o filme expandiu drasticamente seu público alvo, tornando a sátira muito mais evidente, mas também mais incômoda e perturbadora. Uma sátira não deve necessariamente ser engraçada. Ser perspicaz ou mordaz é, em diversas ocasiões, mais importante do que a busca do riso. Mas não é tarefa fácil apontar o quanto que esse incômodo vem da forma como o filme foi escrito e dirigido e o quanto vem do fato de que a proximidade do público com o assunto em questão faz a mensagem descer rasgando.
O filme tem um excelente elenco, mas o brilho de fato está com DiCaprio e Lawrence. O primeiro constrói um cientista inseguro, esmagado pela máquina estatal e midiática, que, ao tentar contornar sua inabilidade de comunicação com o público em geral, acaba por se tornar mais uma peça das engrenagens do poder. Já Lawrence representa a visão do público e sua vontade de xingar e socar todos os demais personagens do filme. Os dois dão a impressão de carregarem o filme nas costas, mas de fato eles nos carregam através de um emaranhado de absurdos muito bem armado por McKay e pela montagem de Hank Corwin. A piada aparentemente tola do general que cobra por água e amendoins que seriam de graça é uma versão micro da ganância capitalista, que surge bem mais adiante no filme, e que é apresentada como o grande carrasco da Humanidade no fim das contas. O filme até que poderia tem alguns minutos a menos (a relação entre os personagens de DiCaprio de Blanchet não é muito bem escrita e poderia ser encurtada), mas o tempo dispendido nas relações entre personagens não é perdido, pois essas relações são essências para se contrapor à loucura e à desonestidade (e desumanidade) que os protagonistas enfrentam.
Qualquer argumento que aponte como um problema os absurdos do roteiro, como a quase exclusiva (quando acontece) ação estadunidense na crise, a reação popular e governamental diante de uma ameaça tão extrema, ou qualquer coisa do gênero, colide frontalmente com o perfil satírico com o qual o filme foi concebido, onde o exagero de situações bizarras evidencia questões do mundo real. O absurdo é um dos principais instrumentos da sátira. E muito da agonia que venha a ser sentida pelo espectador vem de percepções pontuais de que os absurdos na tela se apequenam diante dos absurdos da realidade. “Não Olhe Para Cima”, que é o contra slogan do governo ao “Olhe Para Cima” dos cientistas, é o resumo do negacionismo e da política que mata, trazendo por trás sempre algum grande interesse econômico e político. O filme pode não possuir o brilhantismo de A Grande Aposta. Mas Adam McKay conseguiu, ainda que inadvertidamente, realizar um filme símbolo de seu tempo, que poderá ser usado como exemplo de sua época daqui a décadas.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Roteiro original: (argumento: Adam McKay e David Sirota)
Montagem: Hank Corwin
Música original: Nicholas Britell
NÃO OLHE PARA CIMA (Don’t Look Up, EUA – 2021)
Com: Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Cate Blanchett, Rob Morgan, Jonah Hill, Mark Rylance, Tyler Perry, Timothée Chalamet, Ron Perlman, Ariana Grande, Himesh Patel e Melanie Lynskey.
Direção: Adam McKay
Roteiro original: (argumento: Adam McKay e David Sirota)
Fotografia: Linus Sandgren
Montagem: Hank Corwin
Música original: Nicholas Britell
Design de produção: Clayton Hartley
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