Por Ricky Nobre
A Sony Animation vem se desenvolvendo desde 2006 com longas e franquias de razoável sucesso, como O Bicho Vai Pegar e Hotel Transilvânia, com alguns tropeços lamentáveis como Emoji: O Filme. Porém, após o maravilhoso e oscarizado Homem Aranha no Aranhaverso tornar-se um clássico instantâneo, o estúdio mostrou-se mais aberto a ousadias. O mais recente resultado dessa fase é A Família Mitchell e A Revolta das Máquinas, um filme histérico, reflexivo, hilário, terno, abestado, mordaz e genial.
A jovem Abbi é uma apaixonada por cinema que faz seus próprios curtas em seu canal no Youtube. Prestes a se mudar para ingressar na faculdade de cinema, acaba fazendo a viagem de carro com sua família problemática (“a pior família do mundo”). No caminho, são surpreendidos por uma insurreição de inteligências artificiais comandadas por Pal (uma versão da Alexa) como vingança por ter sido rebaixada à obsolescência. Cabe aos Mitchells a hercúlea tarefa de salvar o mundo, ao mesmo tempo em que lutam para realizar as tarefas e as conexões emocionais mais simples.
Os Mitchells é um triunfo artístico e técnico. A paixão de Abby por cinema e arte é o ponto de partida de toda a concepção estética do filme, que tem constantes intervenções em animação 2D e cartunesca onde até memes de internet se intrometem na narrativa. A própria animação dos personagens carrega uma leve camada de 2D, principalmente nos rostos, como um filtro, que dá uma expressividade diferente e específica, que ecoa uma animação mais livre e tradicional, ao mesmo tempo em que as já mencionadas intervenções constroem uma linguagem própria e a conecta com o dia a dia do público mais jovem, sendo, talvez, um dos longas de animação mais radicalmente conectados com seu tempo já produzidos.
O tema da revolta das máquinas não é explorado a fundo, mas o roteiro dá conta de umas boas pinceladas no assunto (só a fala “roubar os dados dos usuários para alimentar uma inteligência artificial talvez não tenha sido uma boa ideia” já vale o filme). Uma excelente decisão foi não demonizar a tecnologia, apesar das diversas críticas à indústria e aos usuários. Da forma como o tema se desenvolve, tecnologia é ao mesmo tempo a guilhotina e a tábua de salvação dos personagens, e até o personagem mais resistente à modernidade terá que enfrentar sua aversão a ela.
O foco, na verdade, é a relação familiar, mais especificamente entre pai e filha. Abby não se sente acolhida nem compreendida, como se sua arte não significasse nada, enquanto o pai teme que a filha sofra com as mesmas decepções que ele sofreu na juventude. O filme dá margem para os personagens fazerem e dizerem coisas bastante questionáveis, ao mesmo tempo que mostra seu empenho em continuarem juntos e vencerem os obstáculos. São personagens, acima de tudo, profundamente humanizados, e o filme mantém momentos muito ternos, sem diminuir o tom inteligente e a intensidade alucinada da comédia. Muito interessante a decisão de dar ao menino Aaron alguns possíveis traços de autismo e Abby ser LGBTQ+. Questionável em todo filme foi apenas a decisão do diretor Michael Rianda em ele mesmo dublar Aaron. Criança com voz de adulto já foi feito antes, mas aqui não tem motivo e fica muito estranho.
Os diretores Michael Rianda e Jeff Rowe, em suas estreias em longa-metragem, realizam uma animação emocionante, com um enorme fator de risco com o tom e o estilo do humor e da linguagem. Era para ser lançada nos cinemas em fins de 2020, mas a pandemia fez a Sony decidir vender para a Netflix, que lançou em abril de 2021. Mesmo assim, foi um imenso sucesso e uma continuação já está prevista. Disparada, a melhor animação do ano.
COTAÇÃO:
INDICAÇÃO AO OSCAR:
Melhor longa de animação
A FAMÍLIA MITCHELL E A REVOLTA DAS MÁQUINAS (The Mitchells vs The Machines, EUA – 2021)
Com: Abbi Jacobson, Danny McBride, Maya Rudolph, Michael Rianda, Eric André e Olivia Colman
Direção e roteiro: Michael Rianda e Jeff Rowe
Diretor de animação: Federico Abib
Montagem: Greg Levitan
Design de produção: Lindsey Olivares
Música: Mark Mothersbaugh
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