Por Ricky Nobre
Soa medieval que seja possível que um homem como Harvey Weinstein conseguisse manter um comportamento tão criminoso durante tanto tempo, saindo não apenas impune, mas com a conivência da própria estrutura da indústria de entretenimento. Ele e o irmão comandaram a Miramax com mão de ferro, e muitos de seus críticos sustentavam que eles conduziam os negócios com lógica de máfia. Isso pode parcialmente explicar como ele conseguiu abusar de tantas mulheres por tantos anos impunemente, com ações que iam do assédio ao estupro. O novo filme da cineasta e atriz alemã Maria Schrader chega adaptando o livro das jornalistas do New York Times responsáveis pela primeira grande reportagem que denunciou os crimes do poderoso chefão de Hollywood.
Ela Disse não escapa da fórmula dos filmes de reportagem, da longa tradição de Todos os Homens do Presidente (1974) e sofre de suas limitações, como pouco espaço para desenvolvimento de personagens, ou mesmo tempo hábil para cobrir nuances paralelos de todo um sistema que é claramente muito maior do que a figura isolada de Weinstein. Esteticamente, Schrader parece confortável em seguir seus antecessores, com fotografia dessaturada e uma paleta monocromática ditada pelo próprio ambiente dos escritórios dos jornais e dos figurinos. A montagem, principalmente no primeiro ato, se atém ao mínimo necessário para compreender o início da investigação, o que a torna um tanto picotada. Mas o que tira o filme, ainda que de forma tímida, porém efetiva, de uma certa frieza típica dos filmes investigativos é a forma como a direção torna toda a questão abordada como algo próximo das jornalistas.
O olhar feminino da direção é fundamental na humanização de todas as envolvidas. Detalhes familiares e íntimos das duas protagonistas, como a rotina doméstica, as longas horas de trabalho ou mesmo a depressão pós-parto de uma delas salvam a narrativa de se tornar uma mera sequência de fatos e evidências e torna todo o trabalho um grande esforço feito por pessoas reais. Nisso, o elenco tem especial contribuição, sendo Carey Mulligan e Samantha Morton as mais notáveis. O filme não se intimida em tornar alguns momentos abertamente emocionais, o que é feito sem grandes manipulações melodramáticas, mas dentro da realidade emocional das personagens. Adicionando veracidade ao filme, uma das principais testemunhas, a atriz Ashley Judd aparece como ela mesma em duas cenas importantes, enquanto Gwyneth Paltrow e Judith Godrèche participam apenas em voz em conversas telefônicas. Rose McGowan também é retratada em conversas telefônicas, mas preferiu não participar.
Ela Disse será inevitavelmente comparado com o recente Spotlight, por este ter tido uma grande projeção por ter levado o Oscar de melhor filme e também tratar de um grande escândalo de crimes sexuais. Na comparação, o filme de Schrader ganha e perde. Ganha por, mesmo não sendo exatamente notável, é bem melhor cinematograficamente que Spolitght, que é um filme muito competente em narrar os fatos do caso mas foi dirigido de forma tão burocrática que lembra apenas um bom filme para a TV da década de 90. Mas também perde por apenas citar o fato de que Weinstein tinha uma ampla rede de apoio dentro da indústria cinematográfica, sem jamais mergulhar nela em momento algum, atendo-se a escrutinar quase exclusivamente a figura do produtor. Obviamente, um maior detalhamento de toda essa estrutura demanda tempo de tela e uma metragem bem mais longa, e esses recortes do que deve ou não entrar dentro dos limites de um roteiro cinematográfico são necessários. Mas talvez seja cedo demais para um estúdio como a Universal dar nomes a bois ainda importantes e ativos no mercado.
Ela Disse se diferencia principalmente pela humanização das envolvidas, de jornalistas a testemunhas e vítimas. É um filme que vale a pena ser conferido. Mas a própria limitação de sua abrangência já é um indicativo que ainda há muito trabalho a ser feito.
COTAÇÃO:
ELA DISSE (She Said, EUA – 2022)
Com: Carey Mulligan, Zoe Kazan, Patricia Clarkson, Andre Braugher, Jennifer Ehle, Angela Yeoh, Anastasia Barzee, Samantha Morton e Ashley Judd.
Direção: Maria Schrader
Roteiro: Rebecca Lenkiewicz, baseado no livro de Jodi Kantor e Megan Twohey
Fotografia: Natasha Braier
Montagem: Hansjörg Weißbrich
Música: Nicholas Britell
Design de produção: Meredith Lippincott
Direção de arte: Tommy Love e Rosy Thomas