quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

AQUAMAN 2: O REINO PERDIDO

Por Ricky Nobre

É triste ver como a DC agonizou em praça pública durante este ano. Seja merecidamente (Shazam 2 errou em absolutamente tudo em que o primeiro acertou) ou não (filmes bem piores que The Flash e Besouro Azul deram muito lucro), o fato é que as quatro produções da DC foram muito caras e três delas amargaram péssimas bilheterias, e esta segunda aventura de Aquaman parece seguir o mesmo caminho. Da saturação do público em geral, passando por produções muito pouco inspiradas, até filmes potencialmente bons que acabaram destruídos após sucessivas mudanças de rumo, o resultado são quatro filmes de um universo sem futuro, entregues em um único ano e que apresentam o resultado de nada menos que três administrações diferentes na Warner, resultando em sucessivas mudanças de roteiro, refilmagens e remontagens, sempre para se adequar a planos que seriam posteriormente descartados. Menos que filmes, são ruínas de um projeto que a Warner nem em seus momentos mais estáveis soube administrar corretamente e, nesta última fase, sofreram numa situação que é o pior exemplo do sistema de grandes estúdios atual: executivos vindos dos mais diferentes tipos de negócios que são incapazes de entender cinema.

 

Sem dúvida, o filme que mais sofreu com esse caos foi The Flash. Mas a “onda de choque” que atingiu Aquaman e O Reino Perdido foi de outra qualidade. Ainda que tenha passado por várias refilmagens (uma participação do Batman foi filmada com Ben Affleck, depois de novo com Michael Keaton e, finalmente, descartada), o que torna assistir Aquaman uma tarefa penosa é o mesmo mal que atingiu o recente filme da concorrente, The Marvels: uma drástica remontagem na tentativa de tornar o filme mais curto, simples e objetivo, já temendo uma má performance nas bilheterias. Se o resultado não é tão terrível quanto em The Marvels, aqui os danos ainda são bastante sentidos, principalmente na apresentação e desenvolvimento dos personagens e, mais que tudo, nas relações entre eles. Momentos pretensamente dramáticos não funcionam, porque nada foi construído para sustentá-los. A única dinâmica que funciona é, de fato, a principal, que é a dos irmãos Arthur e Orm. Ainda que o humor seja, por vezes, bastante duvidoso, as interações entre eles parecem ter, pelo menos, pé e cabeça. Já os demais personagens parecem sempre jogados nas cenas, que começam e terminam do nada e a impressão do espectador é de ter dado uma cochilada e acordado no meio de uma cena. 

 

A personagem que mais sofre disso é Mera que, pela natureza do roteiro, não é protagonista como no filme anterior. Porém, a montagem joga fragmentos de cenas dela, com raros diálogos, parecendo até que ela é uma colega de quarto e não esposa do herói, mãe de seu filho e rainha de Atlântida. A química perfeita dos dois no primeiro filme foi reduzida a zero. Frente à polêmica recente e da repercussão da batalha judicial entre a atriz Amber Heard e o marido Johnny Depp, fica a dúvida do quanto esse efeito vem da tentativa de diminuir o tempo de tela de uma atriz que angariou a antipatia de parte do público e o quanto ela foi vítima do empenho da montagem em acelerar com tudo que não seja os irmãos. De uma forma ou de outra, o resultado é terrível e a escolha lamentável. Desta forma, até ajuda o fato da trama ser extremamente simples e genérica, pois qualquer coisa mais rebuscada teria se tornado incompreensível. 

 

Desta forma, qualquer marca mais pessoal de James Wan, diretor do primeiro filme e com uma carreira muito bem-sucedida no terror, desaparece. Sequer as cenas onde ele poderia exercitar o terror (como ele fez com os monstros abissais no primeiro filme) foram aproveitadas. De sua marca, apenas um maior apuro visual na fotografia, direção de arte e cores, mais na tradição do DCEU de entregar filmes mais bonitos, apesar de, em alguns momentos, o CGI deixar a desejar, principalmente na artificialidade de algumas figuras humanas. 

 

Por fim, mesmo com a montagem condensando muito as cenas, principalmente no primeiro ato, essa histeria tem uma considerável melhora no terceiro ato, que acaba fluindo bem melhor e deixando uma impressão mais agradável no final. Até a participação da Mera melhora ligeiramente, a partir do fato de que, na situação posta no filme, a ausência dela seria impensável. Mesmo assim, uma última luta de Aquaman se resolve de forma bem preguiçosa e, novamente, excessivamente rápida.

 

Aquaman e O Reino Perdido, da forma como ele foi efetivamente finalizado, não dá margem a imaginar que um eventual corte do diretor revelaria um grande filme, nem mesmo do nível do primeiro, um dos melhores do DCEU. Mas, com certeza, daria a sensação de um filme mais íntegro, com dramas mais sólidos, ainda que em uma aventura bem juvenil, e não a de um resumão do Tiktok, principalmente no primeiro ato. Infelizmente, o DCEU não tem nenhuma tradição de permitir cortes de diretor em home vídeo, sendo Zack Snyder o único que teve essa oportunidade em BvS e Liga de Justiça. Com o reboot comandado por James Gunn no horizonte, Aquaman 2 faz a despedida do DCEU em um filme que, além de não fazer qualquer menção ao universo onde está inserido, termina referenciando, pasmem, dois filmes da Marvel, com um humor de fim de festa.

COTAÇÃO:


 

AQUAMAN E O REIO PERDIDO (Aquaman and The Lost Kindom, EUA – 2023)

Com: Jason Momoa, Patrick Wilson, Yahya Abdul-Mateen II, Nicole Kidman, Amber Heard, Randall Park, Temuera Morrison, Dolph Lundgren e Jani Zhao.

Direção: James Wan

Roteiro: David Leslie e Johnson-McGoldrick

Fotografia: Don Burgess

Montagem: Kirk M. Morri

Música: Rupert Gregson-Williams

Design de produção: Bill Brzeski e Sahby Mehalla

 

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

FESTIVAL DO RIO 2023: DIA 18/10

Por Ricky Nobre


MAL VIVER e VIVER MAL             

Os dípticos (obras irmãs que se complementam) são raros no cinema, sendo o mais lembrado talvez o Smoking/No Smoking do Resnais, sendo que o Brasil teve recentemente o lançamento simultâneo de dois filmes sobre o caso Richthofen. O cineasta português João Canijo trouxe este ano seu díptico Mal Viver/Viver Mal, que se passa em um hotel que já viu dias melhores. Enquanto o primeiro retrata as mulheres de uma mesma família que administram e cuidam do lugar, o segundo acompanha três grupos de hóspedes, todos acontecendo em um mesmo espaço de tempo.

 

MAL VIVER

Existe algo de opressivo, de claustrofóbico em Mal Viver. Canijo se utiliza do ambiente de um negócio familiar, onde relações de trabalho e familiares se misturam de forma geralmente inadequada, para destacar os conflitos e a toxidade destas relações. É curioso como não é um filme de excessos dramáticos e, mesmo assim, mostra-se um pouco difícil de assistir depois de um tempo, dada a sensação de acúmulo da rispidez, da incompreensão, da impressão do quanto que aquelas mulheres parecem fartas do trabalho e umas das outras. Meio que no centro de tudo, a depressiva Piedade (a ótima Anabela Moreira) torna-se o foco de uma discussão proposta pelo diretor sobre saúde mental, especialmente no ambiente onde ela está imersa, e não deixa de ter um certo humor sombrio, ainda que angustiante, quando ela procura por sua cadela perdida, chamada Alma, gritando por seu nome por minutos seguidos. 

 

A fotografia parece diminuir todos os espaços internos do hotel, quase sempre sombrios, enquanto a área externa de lazer, onde se encontra a piscina, quase não é vista sob a luz do sol, mas na luz mais sutil do alvorecer e do crepúsculo. É curioso como o som é tratado, principalmente em relação aos diálogos que, em família, possuem uma dinâmica de conversa “atropelada”, onde diálogos se sobrepõem, onde uma personagem fala enquanto outra ainda não terminou. E, em outra camada abaixo, ficam diálogos soltos dos hóspedes, mais audíveis do que seria esperado em certas cenas, e são justamente diálogos que ouviremos por inteiro no outro filme, Viver Mal. 

 

Apesar de todo o excelente trabalho de todo o elenco e do cuidado da direção, parece um certo desperdício que outras personagens pareçam subaproveitadas, ficando meio que soterradas por baixo da intensidade e do foco dado à Piedade. 


COTAÇÃO:


 

VIVER MAL

Existe um grande contraste entre Viver Mal e seu filme-irmão. Aqui, o tom é leve, cômico, até ligeiramente farsesco. Acompanhamos cada um dos três grupos de hóspedes que, em comum, tratam em maior ou menor grau de toxidade materna, o que, tematicamente, liga o filme diretamente a Mal Viver e à relação de Piedade com a mãe. Junto ao humor, por vezes ácido, dos diálogos e das situações, o tom também é definido pela fotografia, muito mais colorida e luminosa, aproveitando-se das cenas externas à beira da piscina e sob o sol e, mesmo em espaços mais confinados, evita a sensação de opressão. 

 

Assim como em Mal Viver, situações e diálogos do outro filme tornam-se pano de fundo neste e, quando sobrepostos, os dois filmes parecem questionar o quanto não sabemos da realidade que se passa ao nosso redor. Talvez um melhor símbolo disso seja Piedade gritando em busca da cadelinha Alma, que passa uma sensação angustiante em Mal Viver, mas que assume tons cômicos pela constante repetição, como algo que insiste em acontecer ao fundo, em Viver Mal. Assim como Mal Viver carece de uma maior exploração de várias personagens, em Viver Mal saímos com uma sensação mais agradável dado seu humor e leveza, mas com uma certa falta de substância. Mas é justamente onde reside a força do díptico, pois nos contrastes dos dois filmes sobrepostos e na forma como se complementam e ecoam um no outro é que sentimos mais a relevância de seus temas e sua força dramática. Ou seja, juntos os filmes deixam uma experiência melhor do que separados.

 

COTAÇÃO:

 

 

COTAÇÃO CONJUNTA:

 

MAL VIVER/VIVER MAL (Portugal – 2023)

Elenco Mal Viver: Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida e Vera Barreto

Elenco Viver Mal: Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral e Leonor Vasconcelos

Direção e roteiro: João Canijo

Fotografia: Leonor Teles

Montagem: João Braz

 

 

sábado, 2 de dezembro de 2023

FESTIVAL DO RIO 2023: DIA 17/10

Por Ricky Nobre

POBRES CRIATURAS

O desconforto é uma constante na filmografia de Yorgos Lanthimos. O que muda é a intensidade, que pode fazer você só se ajeitar na cadeira ou sair correndo do cinema. Dito isso, Pobres Criaturas é provavelmente seu filme mais "confortável", ou melhor, aquele cujo desconforto é mais sutil, principalmente para os que embarcarem com facilidade na proposta do filme. Lanthimos leva a sério a expressão "conto de fadas para adultos". Em um magnífico mundo de fantasia meio gótico, meio steampunk, acompanhamos o crescimento de Bella, criada pelo frankensteiniano Dr Baxter ao reviver o corpo de uma jovem suicida implantando nela o cérebro de sua bebê morta no ventre. O cérebro desenvolve rápido no corpo da adulta e vemos Bella passar por todas as fases do amadurecimento, descobrir o mundo, o sexo, o amor, o mal e seu lugar como mulher no mundo. 

 

É fascinante como vemos Bella partir de uma condição onde mal consegue pronunciar palavras básicas e ir seguindo num crescente de aprendizado de pensamento lógico que, em muitas ocasiões, colide com as etiquetas e os moralismos sociais. Nesse quesito, sua descoberta do sexo é o principal motor desta jornada, e é também, durante todo o filme, a principal fonte de potência e liberdade para ela mas, também, o principal motivo pelo qual o mundo exterior tenta detê-la. E é justamente a colisão desse ímpeto de liberdade com essa força castradora da sociedade que inspiram e moldam o pensamento de Bella sobre o mundo. Pensamento este que vai bem além do sexo (apesar de ser, em grande parte de sua essência, sobre ele) como quando Bella descobre, horrorizada, a capacidade humana para o mal.

 

Em sua jornada feminina, uma de suas principais batalhas é pelo direito de ser dona de si mesma. Cercada de homens que acreditam terem direitos sobre ela pelos mais variados motivos, é particularmente intrigante, como também irônico, que Bella mais aprenda a desenvolver isso durante o período em que realiza trabalho sexual, muito a partir da relação que ela tem com outras mulheres e como ela lida com as contradições da variedade de experiências com os homens que a procuram.

 

O cinema de Yorgos Lanthimos sempre se diferenciou dos de outros cineastas que buscam o choque, o desconforto e o bizarro pela dimensão verdadeiramente humana de seus personagens e seus temas. O que há de mais fascinante e irresistível em Pobres Criaturas é o brilho no olhar de Bella, a vida nele e por ele. Um maravilhamento por tudo, pelo sexo, pela arte, pelas pessoas, pelas cidades, tão contagiante e intenso que sentimos profundamente sua queda quando ela se desilude com o mundo. Bella sente e pensa intensamente e constantemente transforma seus sentimentos em ideias. E Lanthimos cria belissimamente esse mundo para que nós possamos nos maravilhar com ela. O design de produção e os figurinos sublimes nos mantém constantemente imersos nesse mundo que o diretor faz questão de manter na esfera da fantasia, do absurdo e do belo. A lente grande angular, sempre uma favorita de Lanthimos, parece sempre dar absoluto protagonismo à suntuosidade e à estranheza dos entornos e como os personagens, Bella em específico, estão inseridos neles, ainda que o uso de lente 10mm (conhecida como “olho de peixe”) pareça buscar apenas incômodo sensorial.

 

Não é possível ignorar não apenas a magnífica interpretação de Emma Stone, mas também sua absoluta entrega à personagem e como ela se expressa na visão de Lanthimos. A evolução de Bella desde às primeiras cenas até a conclusão possui uma coesão e uma expressividade em seu simbolismo do “tornar-se mulher”, como descrito por Beauvoir, mas que, em certos momentos, pode dar a impressão de alguns “saltos”, porém são perfeitamente consistentes na forma como Bella articula seus sentimentos com sua percepção de mundo. Nisso, a entrega de Stone às numerosas cenas de sexo e nudez cristaliza a relação de Bella com esse senso de intensidade máxima com a qual ela percebe e experimenta tudo. Inclusive, Lanthimos faz questão que essas cenas tenham um mínimo de lençóis ou roupas cobrindo os atos, porque é com esse despudoramento, ao mesmo tempo inocente e vulcânico, que Bella exerce sua sexualidade e toda a sua experimentação da vida.

 

Por fim, Pobres Criaturas não é tanto sobre o desconforto que o filme causa ao espectador (levando em conta o conjunto da obra de Lanthimos), mas sobre o desconforto que Bella causa ao seu entorno em sua jornada de descoberta da vida e de si. O desconforto gerado por sua determinação em ser livre. Lanthimos realiza um filme que, mesmo em sua complexidade e peso de seus temas, possui uma leveza que, no fundo, é a leveza contagiante de Bella que, em um deslumbrante mundo de fantasia, nos presenteia com sua ousadia, beleza, humor e, sobretudo, coragem.

COTAÇÃO:



POBRES CRIATURAS (Poor Things, EUA – 2023)

Com: Emma Stone, Willem Dafoe, Vicki Pepperdine, Ramy Youssef, Mark Ruffalo, Hanna Schygulla, Kathryn Hunter, Suzy Bemba, Margaret Qualley e Christopher Abbott

Direção: Yorgos Lanthimos         

Roteiro: Tony McNamara, baseado no livro de Alasdair Gray

Fotografia: Robbie Ryan

Montagem: Yorgos Mavropsaridis           

Música: Jerskin Fendrix

Design de produção: Shona Heath e James Price

 

 

domingo, 19 de novembro de 2023

JOGOS VORAZES: A CANTIGA DOS PÁSSAROS E DAS SERPENTES

 Por Ricky Nobre

Com o enorme sucesso da franquia cinematográfica de Jogos Vorazes, era inevitável que a prequela escrita pela autora Suzanne Collins chegasse às telas. A partir de um ponto de vista inesperado, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes se concentra na juventude do tirânico Presidente Snow, numa época em que ele luta, através dos estudos, para ganhar uma bolsa que pode salvar sua família que, de origem rica, encontra-se falida. Ele performa os clichês do elitismo para manter sua imagem junto aos colegas, mas simpatiza mais com o amigo que é o único a ser mais vocalmente contra os jogos vorazes e à opressão do regime como um todo. Quando sua chance à bolsa fica atrelada a servir de mentor à participante Lucy do Distrito 12 nos próximos jogos, ele passa ficar entre sentimentos conflitantes que incluem a urgência em salvar a família da ruína, seus sentimentos por Lucy e sua opinião pessoal quanto aos jogos e ao regime, esses conflitantes por si só.

 

É curiosa a forma como os jogos e a elite da Capital são retratados nesse período que se passa 60 anos antes dos filmes anteriores. Em seu décimo ano, os jogos estão em declínio pelo crescente desinteresse da audiência, onde Snow vê a oportunidade de sugerir ideias que tornem os jogos mais atraentes para o público. Em vez de uma mera demonstração de poder, ele imagina os jogos como um evento midiático que faça os espectadores se identificarem com os participantes, escolherem seus preferidos e torcerem, iniciando o perfil no estilo de reality show e “sociedade do espetáculo” que irá moldando os jogos como conhecemos na franquia. Esse desenvolvimento ao longo do filme dá margem a momentos muito interessantes, que contrariam um pouco a noção da absoluta harmonia entre esses dois aspectos da dominação através da mídia, sendo eles a imposição da ordem dominante e o espetáculo popularesco que a corrobora. Em momentos específicos, o espetáculo torna-se mais importante do que a demonstração de força, caso isso se traduza em lucro, da mesma forma que a simpatia pelos participantes pode, ocasionalmente (como já visto na franquia antes) gerar ligeiros e momentâneos recuos no poder, que podem parecer derrotas da elite, mas são meras concessões estratégicas.

A personagem Lucy inevitavelmente rouba um pouco do protagonismo de Snow, principalmente pelo carisma que Rachel Zegler empresta ao personagem, sustentando com perfeição não apenas sua personalidade desafiadora, mas também os números musicais que, admita-se, arriscavam-se muito de caírem num estranhamento meio bizarro, dando ares de musical a uma distopia futurista. A dinâmica dos jogos assume uma abordagem totalmente diferente por serem realizados nos limites de uma arena, longe da dimensão expansiva da franquia. Existe, portanto, uma maior exploração da claustrofobia das lutas e, principalmente, das perseguições. 

 

O diretor Francis Lawrence, que assumiu a franquia a partir do segundo filme, arrependeu-se de ter dividido o terceiro livro em duas partes, e quis evitar isso neste filme. Desta forma, dos três atos (explicitamente nomeados com títulos próprios), o terceiro é o mais “alienígena”, com uma ambientação, ritmo e trama próprios, quase um segundo filme, e não seria absurdo imaginar que em algum momento foi cogitado dividir Cantiga também em duas produções. Felizmente, optaram por um filme mais longo, de 157 minutos, mas que dá conta da trajetória do personagem, ainda que a brusca mudança seja, de alguma forma, sentida. 

 

O que talvez se constitua num problema para o filme seja a forma como Snow se desenvolve de um jovem estudante tentando reascender à elite a uma personalidade fria, capaz das crueldades durante seus tempos de governo no futuro. Pode ser nebuloso perceber se as mudanças são apenas sutis ou se são, de fato, insuficientemente desenvolvidas. A maior parte do que torna Snow o que ele será no futuro se desenrola justamente no terceiro ato e, por vezes, pode parecer mais uma sequência de decisões atrapalhadas do que necessariamente de uma pessoa cruel e egoísta. Simbolicamente, é bem interessante a forma como ele parece viver entre o espírito rebelde e livre de Lucy e a figura diabólica da Dra Gaul (Viola Davis, despudoradamente superlativa), como dois caminhos a seguir.

 

Lawrence demonstra porque permanece do comando da franquia desde o segundo filme, criando sempre um visual atraente, tendo um ótimo domínio da ação, aqui com o desafio adicional dos jogos se passarem nas ruínas de uma arena, e não no extenso campo dos demais filmes. O design permanece totalmente entregue ao conceito de fantasia e, neste período de Panem, todo o visual retrô se baseia nos anos 1950, com gigantescos telões de tubo arredondados e “videofones” que parecem saídos de alguma HQ steampunk. Esse design que desafia a lógica “realista”, principalmente de uma continuidade do desenvolvimento tecnológico, mantém o filme no domino da fantasia e o liberta de amarras desnecessárias. 

 

Por fim, esse quarto filme cai, inevitavelmente, na mesma armadilha dos demais da franquia quanto à relação entre os personagens atirados à arena dos Jogos. Ao separar os jogadores em basicamente dois “tipos”, os que perseguem e os que se escondem, acaba criando um maniqueísmo entre os jogadores “bons” e “maus”, os que matam e os que se defendem, induzindo o público à mesma lógica de escolher seus heróis para torcerem, que é justamente o cerne da estratégia dominadora da capital, que é dividir as classes “inferiores” e as fazerem matar-se entre si. Em algum momento, um personagem diz algo como ser preciso colocar esses “selvagens”, esses “terroristas” em seu devido lugar, numa desumanização assustadoramente atual. Nações distópicas como Panem ou Gilead estão apenas a algumas normalizações de horrores de distância.

COTAÇÃO:


 


JOGOS VORAZES: A CANTIGA DOS PÁSSAROS E DAS SERPENTES (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds & Snakes, EUA – 2023)

Com: Tom Blyth, Rachel Zegler, Hunter Schafer, Josh Andrés Rivera, Peter Dinklage e Viola Davis

Direção: Francis Lawrence

Roteiro: Michael Lesslie e Michael Arndt, baseado no livro de Suzanne Collins

Fotografia: Jo Willems

Montagem: Mark Yoshikawa

Música: James Newton Howard

Design de produção: Uli Hanisch