Por Ricky Nobre
Tanto o cinema de Todd Haynes como a literatura de Brian Selznick
estão fortemente enraizadas no passado. Não é fácil catar na filmografia de
Haynes algum trabalho que não seja de época e que seja ambientado em tempos
contemporâneos. Já Selznick teve enorme sucesso com seu livro A Invenção de
Hugo Cabret, belissimamente adaptado mais tarde por Scorcese. Esses dois
autores com os olhos voltados para o passado estão agora em Sem Fôlego. A Edições
SM e a H2O Films nos presentearam graciosamente na sessão para a imprensa com
uma bela edição do livro de Selznick, dando a possibilidade de uma visão mais
próxima entre a obra original e a adaptação. E, apesar das diferenças
incontornáveis livro X filme, os dois estão bem próximos em conteúdo e na
sensação que deixa no público.
Em 1977, Ben é um menino de 12 anos, fascinado por lobos e
por colecionar coisas aleatórias, que perdeu a mãe recentemente e vive com os
tios. Numa noite, descobre indícios sobre a identidade de seu pai, sobre o qual
a mãe nunca falou e, após um acidente que o deixa surdo, resolve partir sozinho
em busca de seu passado. Já em 1927, Rose é uma menina surda de 13 anos que,
vivendo com o pai autoritário, foge de casa em busca da grande estrela do
cinema Lilian Mayhew. As duas histórias são contadas em paralelo, e suas
semelhanças vão ficando mais claras e entrelaçadas conforme vão se desenrolando.
No filme de Haynes, a história de Ben é contada com narrativa cinematográfica
contemporânea e a de Rose é um filme mudo em preto e branco (uma ideia que,
apesar de óbvia, é perfeita demais para não levar adiante). Já no livro de
Selznick, a história de Ben é narrada em prosa, enquanto a de Rose é através
das belíssimas ilustrações do próprio autor.
Haynes nunca fez um cinema “leve”, como Velvet Goldmine,
Longe do Paraíso e Carol nos mostram. Sem Fôlego vem dar um tom diferente em
sua trajetória. Com ares de fábula infanto-juvenil, o filme chega até mesmo a
ser mais leve do que o próprio livro. O início da história de Rose tem uma
carga bem mais dramática e triste no livro, e talvez tenha sido suavizada por
Haynes na tentativa de deixar o filme menos denso para um público mais jovem,
algo com o que Selznick, com longa carreira escrevendo livros infantis, não se
importou. Quando, por exemplo, o cinema que Rose frequenta é fechado para a instalação
de um sistema de som para os novíssimos filmes falados, isso pesa como uma
grande tragédia para a jovem menina surda. É como se até o cinema a estivesse
rejeitando. No filme, isso não passa de um breve comentário. Da mesma forma, a
experiência de Ben quando chega em Nova Iorque, vindo de uma pequena cidade próxima
ao Canadá, é descrita no livro com assustadora, com seu calor e caos urbano,
enquanto Haynes a filma como um mundo novo, fascinante e cool.
Fora esses detalhes (assim como papel das ilustrações de
Selznick no último quarto do livro e outros pequenas coisas), o filme pode ser
considerado muito mais fiel ao livro do que a maioria das adaptações, e o fato
do roteiro ter sido escrito pelo próprio Selznick pode ter muito a ver com
isso. A maior diferença talvez seja num certo tom de “feel-good-movie” com
toques de auto ajuda que não casa muito bem nem com o livro original nem com o
cinema de Haynes (Selznick, no livro, lida bem melhor com a frase breguinha do
filme: “Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão observando as
estrelas”). A ótima trilha musical de Carter Burwell poderia ter um tom
diferente para as cenas de Rose, para casar melhor com a estética do cinema
mudo. Burwell efetivamente o fez na cena do almoço, com resultados cômicos
muito bons. Poderia ser algo nessa linha, suavizada, menos literal. Seria
melhor do que exatamente a mesma assinatura musical que a história de Ben. A
forma como a montagem alterna as narrativas de Ben e Rose pode por vezes
parecer excessivamente entrecortadas, o que, de certa forma, é herdada do livro
(que chega ao ponto de interromper uma frase no meio para uma sequência de ilustrações).
Nos dois casos, às vezes funciona, às vezes não.
O grande trunfo é o elenco, especialmente as crianças, com Oakes
Fegley, já com uma carreira longa mesmo tão jovem, Jaden Michael que faz o
amigo nova-iorquino de Ben, e Millicent Simmonds, interprete de Rose, uma jovem
estreante que é de fato surda e que ganhou o papel mandando um vídeo para a
produção. Eles são a alma do filme, ainda que as aparições, mesmo que breves,
de Julianne Moore e Michelle Williams sejam sempre bem vindas.
O que Sem Fôlego nos traz é uma história de duas crianças,
separadas por 50 anos, onde elas procuram seu passado, sua identidade e seu
lugar no mundo. O filme de Haynes acaba sendo excessivamente polido, até mesmo higienizados
de emoções mais cruas. Os envolvidos na produção talvez estejam surpresos com a
forma com que foram totalmente ignorados no Oscar este ano. Sem Fôlego é um
filme bonito, por vezes encantador. Mas não é Carol. Nem Hugo Cabret. Quem sabe
da próxima vez.
SEM FÔLEGO (WONDERSTRUCK, 2017)
Com: Oakes
Fegley, Jaden Michael, Millicent Simmonds, Julianne Moore e Michelle Williams.
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Brian Selznick, baseado em seu livro
Fotografia: Edward Lachman
Montagem: Affonso Gonçalves
Música: Carter Burwell
COTAÇÃO: