quarta-feira, 29 de março de 2023

A Primeira Comunhão: Terror Clássico com Final Demodê

 por Eddie Van Feu

Quatro jovens cruzam com o fantasma de uma menina e uma das moças resolve levar uma boneca velha pra casa, acreditando que poderia haver uma menina perdida nas imediações. A partir daí, todos começam a vivenciar terríveis sequestros mentais que os levam para um local escuro com um fantasma medonho e precisam desvendar o mistério por trás dessa aparição. A Primeira Comunhão chega aos cinemas brasileiros dia 30 de março.

 


O filme dirigido por Victor Garcia e com roteiro de Guillem Clua e Alberto Marini aponta para a nova tendência de investimento em filmes de terror do cinema espanhol e o trailer investe numa antiga lenda que praticamente todo o lugar tem: a mulher de branco.

Por vezes é uma noiva que surge em estradas desertas no meio da noite. Outras vezes é uma mulher misteriosa vestida de branco. Dessa vez, temos uma menina com roupas de primeira comunhão, carregando uma boneca medonha e levando a maldição a quem cruza seu caminho.

O elenco é muito bem escolhido. Todos são convincentes e lindos de se ver. A ambientação nos anos 80 sempre funciona, embora aqui seja apenas um recurso para se escapar dos celulares que tornam qualquer comunicação imediata. Não, meus amigos! Nos anos 80 a gente tinha que andar quilômetros atrás de um orelhão que funcionasse, ou ir com suas perninhas até o lugar pra ajudar alguém. Também não tinha aplicativo, então quem não tinha carro – quase todo mundo – dependia de caronas suspeitas. Quem nunca ficou refém de carona pra voltar pra casa levanta a mão aí!



E é justamente numa dessas aventuras que só fazemos quando somos jovens e burros que as amigas Sara (Carla Campra) e Rebe (Aina Quiñones) vão, de carona, para uma festa longe da pequena Tarragona, cidadezinha aonde Sara e família acabaram de chegar. Na volta, perdem a carona da ida e acabam tendo que aceitar a carona de Chivo (Carlos Oviedo), um pra lá de suspeito vendedor de drogas local e o bonitinho demais da conta Pedro (Marc Soler). E é aí que cruzam o caminho de uma menina vestida de branco e encontram uma boneca sinistra. Sara resolve levar a boneca pra casa, porque ela nunca viu um filme de terror na vida, e a partir daí todos começam a ser perseguidos por um fantasma que sequestra seus espíritos e os leva a lugares úmidos e frios, enquanto tenta afogá-los. Os corpos, enquanto isso, ficam em um estado catatônico.




Os jovens precisam lidar com seus pais, Rebe, que tem um estilo rebelde meio Amy Winehouse, tem um pai bêbado e violento, enquanto o diálogo não é prato do dia na casa de Sara. Ao mesmo tempo, eles precisam descobrir o mistério dessa menina para tentar salvar as próprias vidas.



Bem ambientado e com um elenco simpático, o texto é convincente e a história nos prende até o final. Os sustos são garantidos, mais do que o suspense, que não chega a ser tão trabalhado. O vilão possui super poderes exagerados, dando pouca chance para os mocinhos, o que sempre me incomoda por parecer não só uma luta injusta, mas uma preguiça do roteiro. Mas esse não foi o maior problema do filme, que é justamente o final, onde se tenta um ponto de virada, mas sem escopo, sem explicação, apesar de criativo. Se tivesse terminado dois minutos antes, teria sido um filme muito melhor.









quinta-feira, 23 de março de 2023

SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES

Por Ricky Nobre

2023 é um ano estranho para a DC no cinema. Com três lançamentos agendados, os filmes do DCEU encerram esse ano a cronologia iniciada em Homem de Aço em 2013, sem que tivessem sido planejados para serem conclusão de qualquer coisa, uma vez que o reboot (pero no mucho) de James Gunn inicia-se ano que vem. Ainda que isso pareça estranho para quem analisa a franquia como um todo e, principalmente, para os fãs mais hardcore do gênero, essa ausência de consequências futuras não faz diferença alguma para quem realmente paga a conta de produções tão caras: o público comum. E este parece não estar muito satisfeito.

 

Infelizmente, esta segunda aventura de Shazam! erra em quase tudo que a primeira acertou. Se o filme de origem do personagem era um perfeito exemplar de um filme familiar, uma comédia de aventura divertida, uma Sessão da Tarde em sua melhor versão, aqui tudo parece desleixado. Se o Dr. Silvana era um vilão perfeito, os monstros assustadores na medida para o público infanto-juvenil, e o humor e o senso de aventura eram inspirados, Fúria dos Deuses tem o mesmo diretor David F. Sandberg realizando um trabalho burocrático e sem criatividade. O roteiro trata especialmente mal suas vilãs, e é quase inacreditável que desperdiçaram a grande Helen Mirren, ou mesmo Lucy Liu, com personagens tão mal escritas, onde os diálogos são tão genéricos quanto a forma como Sandberg as filma, assim como também são genéricos e nada assustadores os monstros do terceiro ato.

 

Os únicos momentos razoavelmente criativos são os da dinâmica familiar, onde cada um da família Shazam pode ser minimamente caracterizado, mas sem espaço para muita coisa. Tem alguns momentos engraçados, alguma ação ok, e um ou dois diálogos perfeitos ("taste the rainbow, motherfu..."). O tema da insegurança de Billy frente a sua responsabilidade que começa a bater mais forte nele é bem interessante, mas não tem um roteiro que sustente bem, e o personagem de Freddy acaba sendo melhor desenvolvido.

 

Shazam! A Fúria dos Deuses não é nada inassistível, mas é tudo muito burocrático e medíocre, e até tira o impacto da surpresa do final. E as duas cenas pós créditos acabam sendo só um tanto constrangedoras.

COTAÇÃO:

 

SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES

Com: Zachary Levi, Asher Angel, Jack Dylan Grazer, Rachel Zegler, Grace Caroline Currey, Lucy Liu, Djimon Hounsou e Helen Mirren

Direção: David F. Sandberg

Roteiro: Henry Gayden e Chris Morgan

Fotografia: Gyula Pados

Montagem: Michel Aller

Música: Christophe Beck

Design de produção: Paul Kirby

domingo, 12 de março de 2023

Os filmes do Oscar: OS FABELMANS – 7 indicações

Por Ricky Nobre

Filmes como 8 ½ de Fellini ou A Noite Americana de Truffaut costumavam ser casos raros de cineastas refletindo sobre sua própria arte e como isso ressoa em suas vidas. Wes Craven chegou a fazer isso em certo aspecto no subestimado O Novo Pesadelo, onde Freddy Krueger vem para o mundo real. Neste último ano, porém, Iñárritu lançou Bardo, e até mesmo Kevin Smith mergulhou nas origens de sua peculiar carreira em O Balconista 3. E, é claro, teve Spielberg. “Apenas aos 74 anos eu me senti capaz de contar essa história”, declarou ele na divulgação do filme. Mas o que poderia ser tão delicado em um filme onde um cineasta septuagenário recorda a época onde ele fazia filmes em super8 com os amigos da escola? O que havia de tão difícil em mostrar como ele era apenas um menino que não largava a câmera e sonhava em fazer grandes filmes? Mas o filme não se chama “Sammy e sua Câmera”, mas sim Os Fabelmans. É um filme sobre sua família e sobre coisas que ele jamais contou. É sobre seu pai e, principalmente, sua mãe. Em sua carreira, Spielberg muito raramente recorreu a violência extrema. Mas aqui ele espalha suas tripas pela tela. Ele se abre completamente em muitos sentidos e nos convida a viver isso com ele.

 

Na primeira vez que os pais do pequeno Sammy (o alter ego do diretor) o levam ao cinema, o pai explica com todos os pormenores a ciência por trás das imagens em movimento, sobre persistência retiniana, até que a mãe interrompe dizendo: “filmes são sonhos”. Spielberg era filho de um engenheiro pioneiro em grandes avanços na informática e de uma pianista clássica, e sempre foi algo comentado na imprensa como seus filmes, a partir desta origem, eram uma junção de tecnologia de ponta e sensibilidade artística, e Spielberg não se acanha em salientar essas influências em diversos momentos. O que torna o filme tão fascinante e emocionante é como os primeiros passos do protagonista como cineasta amador e o relacionamento familiar são elementos indissociáveis.

 

A mãe é apresentada como a grande incentivadora e, conforme o menino vai fazendo seus filmes, se mostra algo como sua fã número 1, a que mais se emociona. Ele também recebe apoio do pai, mas é um apoio limitado, pois ele constantemente o lembra de que é um hobby, não é algo sério, não é um futuro, enquanto Sammy tem total clareza de que quer fazer aquilo para o resto da vida. Mas o pai insiste que ele faça “algo real, não imaginário, algo que as pessoas possam usar”, onde Spielberg faz um inesperado aceno ao conceito da inutilidade da arte de Heidegger. Mais adiante, em uma visita inesperada, seu tio lhe abre os olhos: arte te consome. Seu tempo, sua vida, sua alma. E arte é uma escolha, e é uma escolha difícil. Sua mãe tinha o talento de ser uma pianista aclamada, mas ela escolheu a família (quando o marido sugere que ela volte a tocar na TV ela diz que isso foi “há duas filhas atrás”). O tio lhe apresenta uma realidade onde se dedicar à arte e satisfazer a família são realidades inconciliáveis, e ele levaria um tempo até compreender aquilo.

 

Desde que o pequeno Sammy viu um acidente de trem no cinema e tentou reproduzir em casa, numa obsessão de controlar o que o assustava, ele se acostumou a usar o cinema como esse instrumento de controle do seu ambiente. Porém ele descobre que esse controle não é absoluto. Ao editar um filme de acampamento familiar, ele percebe por suas filmagens que a mãe está apaixonada pelo melhor amigo do pai. Ele mesmo filmou as cenas, mas ele não viu na hora, mesmo testemunhando ao vivo. Não é um grande flagrante de um caso tórrido. São toques de mãos, um sorriso, um olhar. São verdades que só se relevam através do filme, pois é através do registro dessas imagens em movimento que ele consegue interagir com a vida. Todo o seu mundo passa necessariamente pelo cinema. Esse controle que ele tenta manter de tudo se mostra mais uma vez fugaz quando, após a exibição de um filme de praia, o rapaz que o perseguia na escola fica profundamente incomodado com a forma que foi retratado no filme, apesar de ter sido de forma muito elogiosa. Sam diz que não tinha a intenção de perturbá-lo, ao que o rapaz responde “quem liga pra sua intenção?”. Ali ele começa a descobrir que pode controlar o filme, mas não a forma que ele é visto, numa alusão à “morte do autor” de Barthes. 

 

É belíssima a delicadeza do olhar de Spielberg com sua família, principalmente seus pais. Em como ele acolhe a mãe e jamais a julga, embora, no filme, o Sam rapaz o faça inicialmente. Em como ele mostra uma família onde, mesmo nos momentos mais difíceis, o amor é sempre intenso, e nisso, a forma com que ele mostra o pai é muito doce. No momento familiar mais dramático, todos interagem, questionam, choram, brigam, gritam. Ele assiste, sentado na escada, enquanto um Sam imaginário passa pelo espelho filmando tudo, mais uma vez pontuando sua dificuldade em se relacionar com a vida diretamente. Sua realidade é através da câmera. Para quem está familiarizado com sua filmografia, é impossível desassociar essas cenas de momentos específicos de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, ou E.T., ou mesmo o terceiro Indiana Jones. Spielberg começou a contar essa história há muito tempo. 

 

Os Fablemans é amor do primeiro ao último frame. À arte, à família, aos sonhos de juventude. Amor que resiste e vence sempre, mesmo que a vida não saia como imaginamos, pois é justamente nesses momentos que o amor nos salva. Com uma sinceridade profunda, Spielberg consegue fazer um trabalho absolutamente íntimo sem em momento algum soar egoico ou autoindulgente. O final, onde ele conhece um John Ford maravilhosamente interpretado por David Lynch, é o perfeito toque final nessa preciosidade que ele escolheu compartilhar conosco. Porém, mesmo ali, permanece o questionamento: “Por que quer fazer filmes? Esse negócio vai te destroçar”, alerta Ford. Mas é assim que ele lida com a vida. Os Fabelmans é um filme absolutamente emocionante, delicado e encantador. E ainda tem o melhor take final da história do cinema.

COTAÇÃO:


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Diretor: Steven Spielberg

Atriz: Michelle Williams

Ator coadjuvante: Judd Hirsch

Roteiro original: Steven Spielberg e Tony Kushner

Música original: John Williams

Design de produção: Rick Carter e Karen O'Hara

 

sábado, 11 de março de 2023

Os filmes do Oscar: TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO – 11 indicações

Por Ricky Nobre

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo varreu a paisagem cinematográfica de 2022 como um tornado. Seja a maioria que idolatra, a minoria que odeia ou a razoável parcela que considera apenas um bom filme, ninguém ficou indiferente ao que é um dos maiores fenômenos de popularidade do cinema recente, que abarcou tanto o público quanto a crítica. Tudo o que o filme é em sua essência, forma e conteúdo, causa um fascínio profundo ou intensa repulsa. Repulsa essa que seria leviano argumentar que seria uma mera reação ao status de revolucionário que o filme vem recebendo. Mas o filme de fato revoluciona alguma coisa? De onde vem todo esse poder que o filme emana para causar tanto impacto?

 

O filme apareceu num momento em que o público já estava preparado para o conceito de multiverso. O que antes era conhecido apenas pelos leitores de quadrinhos e ficção científica, começou a ganhar mais espaço no universo cinematográfico da Marvel e na animação Rick and Morty, o que já deixou uma parcela do público mais familiar com o conceito de universos paralelos que abrigariam versões diferentes de nós mesmos. A dupla de cineastas Daniel Kwan e Daniel Scheinert (ou Os Daniels) desenvolveu sua história de multiverso de forma bem peculiar. Uma das formas de definir o filme seria como uma comédia dramática de fantasia com uma casca de ficção científica bem fininha. Ao estabelecer Evelyn (Michelle Yeoh no papel de sua vida) como sua heroína, os Daniels procuram passar ao espectador toda a sensação de absurdo que ela sente diante de tudo que lhe é proposto. Se o conceito de infinitos universos paralelos soa como algo absurdo, eles escolhem escancará-lo exatamente através de um humor absurdista.

 

A partir daí, é preciso reconhecer uma grande qualidade da direção que é a de não ter medo do ridículo, o que é algo sempre muito arriscado. Existir um universo onde as pessoas têm mãos de salsicha ou ter que sentar num troféu em formato de plugue anal para acessar uma habilidade de outro universo são coisas que o filme apresenta sem um pingo de constrangimento, sob o mote de que “não faz sentido, mas funciona”. O grande risco é a possibilidade desse besteirol de inviabilizar o potencial dramático do filme, que é considerável e no qual os diretores também mergulham.

 

Este é um filme cujo tom não é fácil sequer de conceber, que dirá construir, pois é formado de elementos a princípio inconciliáveis, como emoções genuínas de um drama familiar, quase à beira do melodrama, humor escrachado, dilemas filosóficos e artes marciais, tudo isso entremeado por um vai e vem cada vez mais histérico entre os universos. A montagem faz um malabarismo gigantesco ao costurar todos esses elementos, e faz isso muitíssimo bem na maior parte do tempo, e seu papel em conseguir construir esse tom é crucial. Toda a produção é muito inventiva também em criar uma identidade visual, através do design de produção, figurinos e fotografia, considerando não só o baixíssimo orçamento para um filme desse porte (apenas 25 milhões de dólares), mas principalmente a natureza da história que pede uma mudança drástica de visual a cada mudança de universo. São particularmente fascinantes o grande salão branco da vilã, o universo em que Evelyn é uma estrela, onde é tudo muito cool e refinado (onde os diretores se inspiraram no cinema de Wong Kar-Wai) e a já famosa cena onde as personagens são pedras. Em contrapartida, algumas sequências não funcionam muito bem. O trabalho de câmera da primeira luta não é muito bom, e a manipulação da velocidade e do framerate dá um aspecto meio amador, principalmente em comparação com as lutas posteriores, muito melhor realizadas.

 

Mas o que talvez seja o principal elemento que vem capturando tanto os corações do público seja o relacionamento familiar, o drama entre Evelyn e o marido e, principalmente, ela e a filha. Um drama que parte principalmente da entrega ou não dos personagens ao niilismo, advindo da percepção das personagens da vastidão do multiverso e de suas múltiplas possibilidades pessoais, em direção a uma conclusão de que nada faz sentido e nada, de fato, importa. Se a filha se entregou a esse niilismo, a partir das pressões e expectativas da mãe, cabe justamente a essa mãe, passando pela mesma experiência, não seguir pelo mesmo caminho. E essas reflexões sobre os caminhos que escolhemos, como nossas decisões moldam nossa vida e que sentido tudo isso tem afinal, ressoou de forma impressionante junto ao público. E o fato de que tudo isso venha nesse pacote inesperado que é esse delírio estético, um caos controlado, mas que parece sempre à beira do descontrole e, quase sempre, descaradamente divertido, tornou Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo um fenômeno.

 

Um problema que o filme enfrenta é sua característica hiper expositiva, que é algo que incomoda (ou não) cada pessoa em níveis diferentes. A princípio, o roteiro é bem hábil em administrar todo o texto necessário para explicar o que está acontecendo, pois a protagonista e o público precisam saber qual é o histórico e a lógica de tudo aquilo, e isso é muito bem entremeado com toda a ação do filme, e não se tem a sensação que o filme empaca para que explicações sejam dadas. Porém, em seu terceiro ato, parece haver uma certa overdose de reafirmação do que os personagens estão tirando de tudo aquilo. Talvez ao fragmentar essa jornada das personagens ao abismo niilista e de que forma elas tentam sair, picotando essas reflexões entre as diversas versões das personagens em cada universo, essa exposição se torna excessivamente repetida e não dando muita margem a outras interpretações e, até certo ponto, limitando essas discussões a uma superfície específica, apesar da aparência de profundidade, ainda que o potencial dessas questões seja, de fato, profundo. 

 

Se esse filme é revolucionário, como tanto vem sendo dito, ou não, é provável que não seja algo a ser respondido agora. Obras verdadeiramente disruptivas nunca foram reconhecidas como tal em suas épocas. Isso é obra do tempo. O que os Daniel fizeram foi pegar muitas ideias, propostas narrativas e estéticas, que já estavam por aí e reorganizá-las de um jeito particular e que o público não está muito acostumado a ver, a exemplo de como Tarantino construiu sua filmografia quase que exclusivamente partindo das produções B e exploitation e as retrabalhando a partir de suas incríveis sensibilidades estética e narrativa, dando origem a algo novo que foi imensamente influente em outras obras. Não quer dizer que Tarantino tenha sido revolucionário ou disruptivo, mas que ele criou algo que gerou uma marca e uma onda de influências a partir dele.

 

A forma como esse filme está verdadeiramente emocionando as pessoas não pode ser ignorada. Se a temática do filme e a jornada dos personagens têm uma aparência de profundidade maior do que elas são de fato desenvolvidas, elas ainda assim ressoam fortemente junto ao público que, sob os ecos de suas experiências pessoais, adicionam a profundidade que o filme ensaia, mas não mergulha. O que salva o filme de soar como uma metralhadora de filosofismo vazio é justamente essa forma tão despojada, esse espírito de não ter medo do caos nem do ridículo. Se o terceiro ato se perde em constantes reafirmações de sua “mensagem”, isso faz parte justamente dessa estética barroca, dessa onipresença do excesso, de tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Esse filme é um pacote que é preciso comprar inteiro. E se ele é um clássico revolucionário ou uma modinha a ser esquecida em breve, o tempo, como sempre, é quem decide.

 

COTAÇÃO:


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Diretor:  Daniel Kwan e Daniel Scheinert

Atriz: Michelle Yeoh

Ator coadjuvante: Ke Huy Quan

Atriz coadjuvante: Jamie Lee Curtis

Atriz coadjuvante: Stephanie Hsu

Roteiro original: Daniel Kwan e Daniel Scheinert

Montagem: Paul Rogers

Música original: Son Lux

Canção original: "This is a Life" de Ryan Lott, David Byrne e Mitski

Figurino: Shirley Jurata


sexta-feira, 10 de março de 2023

Os filmes do Oscar: TOP GUN: MAVERICK – 6 indicações

Por Ricky Nobre

Existe algo de muito astuto na forma como Top Gun: Maverick foi concebido. O filme original de 1986, que lançou Tom Cruise definitivamente ao estrelato e consolidou a carreira do diretor Tony Scott em seu segundo longa-metragem, era uma obra muito simples, consistindo basicamente nas dificuldades e rivalidades dos alunos de uma escola de pilotos de elite, com uma bela estética que Scott trouxe da publicidade. A ação desses pilotos em combate só acontece no último ato e é bastante genérica, sendo apenas uma espécie de “batismo” dos recém-formados. O roteiro desta continuação, escrito a dez mãos sob a grande mão de ferro de Cruise como produtor, cria toda uma nova estrutura. Após estabelecer onde o protagonista está em sua carreira, com 15 minutos de projeção o filme já define sua missão, seus riscos, os desafios que os personagens enfrentarão e o que isso pode lhes custar. É um foco preciso desde o início e é o principal elemento que o torna tão diferente do primeiro. Mas o que isso realmente significa na prática é que essa foi a forma de Cruise aplicar neste filme a grande fórmula de sucesso de sua principal franquia. Top Gun: Maverick é basicamente um Missão Impossível de guerra.

 

Esta é uma das continuações com maior distância temporal de seu filme original: 36 anos. O diretor Joseph Kosinski já havia feito algo semelhante quando rodou Tron: Legacy 28 anos depois do original. Nesta onda de continuações tardias, é muito traiçoeira a corda bamba onde se equilibram a nostalgia das obras originais e a construção de identidades próprias, e os tombos são mais frequentes do que deveriam. Mas aqui, Kosinski maneja tudo isso com muita habilidade. Não se enganem: há muita nostalgia, muita referência ao Top Gun original, sejam citações, fotos, músicas, cenas e personagens. Mas o filme não se apoia nem depende deles, pois sua força vem dos obstáculos da missão e da relação de Maverick com os novos personagens. Inclusive, o filme funciona perfeitamente bem para quem não viu o primeiro, pois tudo o que o público precisa saber (o que não é muito), é recapitulado. 

 

O filme mantém uma tênue, mas constante tensão, pois sempre é relembrada a dificuldade da missão. Nesse ponto, é adicionado um elemento importante em relação ao primeiro. Em Top Gun de 1986, o Departamento de Defesa Americano solicitou mudanças no roteiro para que ele fosse (ainda) mais simpático às forças armadas. Desta vez, porém, não houve interferência e existe um mínimo de perspectiva. Assim, o roteiro conseguiu inserir o fato de que Maverick é o único que realmente se preocupa que os pilotos voltem vivos da missão, o que não parece ser uma prioridade dos comandantes. Isso adiciona tensão às cenas de um protagonista que já tem o perfil de rebelde, mas, principalmente, humanidade. 

 

Enquanto o filme original era basicamente uma glorificação do poder militar dos EUA com um lindo filtro dourado, porém bastante vazio dramaticamente, aqui ele pega o que o anterior teve de mais dramático e constrói boa parte da tensão entre personagens a partir daí, no caso, a relação de Maverick e Rooster, filho de seu amigo Goose, morto no filme anterior numa fatalidade cuja responsabilidade Maverick carrega mesmo sem ter tido a culpa. Ainda que a resolução desses conflitos sejam também um eco dos personagens de Maverick e Ice no original, aqui tudo é dramaticamente mais intenso e com uma ligação mais profunda entre os personagens. 

 

Enquanto que Top Gun foi um dos filmes fundadores de toda a estética dos blockbusters dos anos 80 e 90 vindos do produtor Jerry Bruckheimer, neste novo filme, ainda que Bruckheimer retorne como produtor e a direção de Kosinski tenha ótimo domínio do filme, é o estilo do produtor Tom Cruise quem domina o show. Todos os atores tiveram que aprender a pilotar, pois quase todas as suas cenas nos cockpits dos caças são reais, onde o elenco teve que, por estarem totalmente sozinhos nas filmagens, aprender a operar as câmeras e ajustar a luz, o que impôs uma imensa dificuldade e extensa preparação do diretor de fotografia Claudio Miranda. Esse estilo que privilegia efeitos práticos e filmagens reais em detrimento do CGI vem sendo uma característica dos filmes produzidos por Cruise, e o resultado é uma estética bem menos plastificada e uma ação mais visceral. Porém, ainda que a ação seja mais intensa e o conteúdo dramático seja mais aprofundado, o filme mantém uma leveza de blockbuster de verão extremamente simpática.

 

Top Gun: Maverick é o maior abismo (ascendente) que já existiu entre um original e sua continuação. Mais que modernizar sua linguagem de cinema de ação, trazendo-a para este século, adiciona-lhe alma. Ainda é uma propaganda descarada do poderio bélico norte americano, com sua superioridade moral e seus inimigos sem nome e sem rosto, mas isso é um padrão de Hollywood desde sempre. O que é revigorante é que o filme resgata essa potência hollywoodiana em ser uma usina de diversão, com o ápice da tecnologia, criatividade e domínio da linguagem do gênero. Top Gun: Maverick é cinemão pipoca de primeira qualidade.


COTAÇÃO:



INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Roteiro adaptado: Ehren Kruger, Eric Warren Singer e Christopher McQuarrie

Montagem: Eddie Hamilton

Som: Mark Weingarten, James H. Mather, Al Nelson, Chris Burdon e Mark Taylor

Efeitos visuais: Ryan Tudhope, Seth Hill, Bryan Litson e Scott R. Fisher

Canção original: "Hold My Hand" – Lady Gaga e BloodPop

 

TOP GUN: MAVERICK (EUA – 2022)

Com: Tom Cruise, Miles Teller, Jennifer Connelly, Jon Hamm, Charles Parnell, Glen Powell, Monica Barbaro, Ed Harris e Val Kilmer.

Direção: Joseph Kosinski              

História: Peter Craig e Justin Marks

Roteiro: Ehren Kruger, Eric Warren Singer e Christopher McQuarrie

Fotografia: Claudio Miranda

Montagem: Eddie Hamilton

Música: Harold Faltermeyer, Hans Zimmer e Lady Gaga

Design de produção: Jeremy Hindle

quinta-feira, 9 de março de 2023

Os filmes do Oscar: PANTERA NEGRA: WAKANDA PARA SEMPRE - 5 indicações

Por Ricky Nobre

O novo filme do Universo Marvel chega com muitas responsabilidades em suas costas. É o 30º filme da franquia e também o que fecha a Fase 4, fase esta marcada pela mediocridade, com apenas um filme acima da média (o ótimo Homem Aranha) e outro muito abaixo (o inacreditável Thor 4). Mas seu grande desafio era sobreviver a todos os percalços. O roteiro já estava pronto quando ocorreu a trágica morte do protagonista Chadwick Boseman e, numa decisão ousada, a Marvel preferiu matar o personagem do que reescalar o ator, o que indicava que o manto do Pantera Negra seria passado a outro personagem. Mais adiamentos vieram com a pandemia e mais outro depois que a atriz Letitia Wright atrasou as filmagens ao se recusar a se vacinar, além de rumores de que espalhava ideias conspiracionistas e negacionistas no set, gerando conflitos com seus colegas, o que ela negou. O fato do filme ter sido concluído era uma vitória por si só, mas ele ainda precisava estar à altura da expectativa de ser a continuação do que muitos consideram um dos melhores filmes da Marvel.

 

Ryan Coogler realizou um filme bastante diferenciado dos recentes da Marvel em vários aspectos. Ele investe muito na emoção e no drama, e o humor, embora continuamente presente, é perfeitamente regulado com todo o tom do filme. Esse talvez seja o acerto primordial de Coogler: o tom. Há uma unidade narrativa, dramática e estética que torna o filme sólido e com uma identidade própria. Visualmente, é quase tão impressionante quanto o primeiro, com destaque para os figurinos que trazem uma beleza fora do comum, sendo um instrumento de forte cristalização cultural das duas grandes nações representadas na história. A música também tem um papel muito proeminente não apenas na narrativa, mas na construção da identidade étnica dos povos do filme. 

 

Muito bem cuidados também estão os personagens. Sendo a emoção e o drama os principais elementos, são nos personagens que o roteiro mais investe. Eles são sólidos, bem escritos, e muito bem defendidos pelo elenco. Letitia Wright mostra porque a Marvel teve tanta paciência com seu comportamento durante a produção, entregando uma Suri forte, decidida, mas também quebrada, amargurada e vingativa, e seu arco é bem construído. Angela Basset está majestosa como sempre, com sua emoção e realeza sempre à flor da pele. Danai Gurira tem seu melhor momento como Okoye até o agora e Dominique Thorn introduz bem a jovem Riri, a Coração de Ferro, mas que não tem tanto destaque como talvez muitos estavam esperando. Por outro lado, M'Baku tem participação bem limitada e com certeza poderia ter sido melhor aproveitado.

É um filme primordialmente feminino, e Coogler trabalha com isso tão organicamente, sem tentar chamar atenção para isso com momentos artificiais, que o público pode até demorar a perceber que existem apenas três personagens masculinos relevantes, sendo o mais importante o de Namor, o Príncipe Submarino em sua estreia no MCU. Seguindo suas origens nos quadrinhos, ele começa como o vilão, sendo o grande antagonista de Wakanda. Assim como o Killmonger do primeiro filme, sua “vilania” não é banal ou clichê, mas de um líder capaz de qualquer coisa para proteger sua nação secreta, inclusive aniquilar Wakanda ou qualquer outra nação da superfície. Sua origem foi repensada para o filme, baseando-se nas culturas Asteca e Maia, o que pode irritar os mais puristas, mas que está longe de ser um problema. O filme debate o colonialismo contemporâneo, onde nações poderosas ainda buscam pilhar outras à procura de valiosos recursos naturais, e o vibranium é o grande tesouro deste universo. Não é um debate que avance muito ao longo da história, mas é posto como um motor para diversas forças que se movem no filme.

 

O roteiro, infelizmente, peca em detalhes mais concretos da história. Existem várias facilitações para que a história avance, como um cativeiro excessivamente vulnerável, ou um abuso com a boa vontade do público em aceitar a “tecnologia mágica” de Wakanda, algo comum em ficção científica, mas que aqui permite o aparecimento de máquinas extraordinárias literalmente da noite pro dia, podendo gerar até confusões sobre o real tempo transcorrido entre uma cena e outra. O grande ápice dramático da conclusão é razoavelmente bem trabalhado, mas deixa a sensação de que algo falta, o que é parcialmente explicado em uma cena posterior, abrindo um caminho possível para os acontecimentos do próximo filme. Ao fim, consegue manter um ótimo ritmo, com boa fluidez, excelentes lutas, e seus 161 minutos nunca se arrastam. Os efeitos, muito bons no geral, pecam nas cenas de voo de Namor, que se move parecendo um videogame.

 

Wakanda Forever é uma obra que confia no seu poder emocional junto ao público. É tão bem resolvido nesse aspecto, que alguns problemas e fragilidades podem passar completamente despercebidos até uma análise posterior mais atenta. Até mesmo os créditos principais que rolam ao final seguem um padrão totalmente diferente de todos os demais filmes da Marvel, buscando uma sensibilidade única, o que é seguido também pela impactante cena pós créditos. Ainda que não atinja a excelência do primeiro, é facilmente o melhor filme da Fase 4 e com real potencial de dar fôlego a um projeto que começa a demonstrar sinais de desgaste. É um filme fiel aos seus temas, seus personagens e aos sentimentos destes, e que respeita as emoções do público. O legado do Pantera Negra segue invicto.

 

 COTAÇÃO:

 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Atriz coadjuvante: Angela Bassett

Canção original:  "Lift Me Up" de Tems, Rihanna, Ryan Coogler e Ludwig Göransson

Maquiagem: Camille Friend e Joel Harlow

Figurino: Ruth E. Carter

Efeitos Visuais: Geoffrey Baumann, Craig Hammack, R. Christopher White e Dan Sudick

 

PANTERA NEGRA: WAKANDA PARA SEMPRE (Black Panther: Wakanda Forever, 2022 – EUA)

Com: Letitia Wright, Angela Bassett, Tenoch Huerta, Lupita Nyong'o, Danai Gurira, Winston Duke, Martin Freeman, Michaela Coel, Dominique Thorne e Julia Louis-Dreyfus.

Direção: Ryan Coogler

Roteiro: Ryan Coogler e Joe Robert Cole

Fotografia: Autumn Durald Arkapaw

Montagem: Kelley Dixon, Jennifer Lame e Michael P. Shawver

Música: Ludwig Göransson         

Design de produção: Hannah Beachler

Figurinos: Ruth E. Carter