Por Ricky Nobre
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo varreu a paisagem
cinematográfica de 2022 como um tornado. Seja a maioria que idolatra, a minoria
que odeia ou a razoável parcela que considera apenas um bom filme, ninguém
ficou indiferente ao que é um dos maiores fenômenos de popularidade do cinema recente,
que abarcou tanto o público quanto a crítica. Tudo o que o filme é em sua essência,
forma e conteúdo, causa um fascínio profundo ou intensa repulsa. Repulsa essa
que seria leviano argumentar que seria uma mera reação ao status de revolucionário
que o filme vem recebendo. Mas o filme de fato revoluciona alguma coisa? De onde
vem todo esse poder que o filme emana para causar tanto impacto?
O filme apareceu num momento em que o público já estava
preparado para o conceito de multiverso. O que antes era conhecido apenas pelos
leitores de quadrinhos e ficção científica, começou a ganhar mais espaço no
universo cinematográfico da Marvel e na animação Rick and Morty, o que já
deixou uma parcela do público mais familiar com o conceito de universos paralelos
que abrigariam versões diferentes de nós mesmos. A dupla de cineastas Daniel
Kwan e Daniel Scheinert (ou Os Daniels) desenvolveu sua história de multiverso
de forma bem peculiar. Uma das formas de definir o filme seria como uma comédia
dramática de fantasia com uma casca de ficção científica bem fininha. Ao estabelecer
Evelyn (Michelle Yeoh no papel de sua vida) como sua heroína, os Daniels procuram
passar ao espectador toda a sensação de absurdo que ela sente diante de tudo
que lhe é proposto. Se o conceito de infinitos universos paralelos soa como
algo absurdo, eles escolhem escancará-lo exatamente através de um humor
absurdista.
A partir daí, é preciso reconhecer uma grande qualidade da direção
que é a de não ter medo do ridículo, o que é algo sempre muito arriscado. Existir
um universo onde as pessoas têm mãos de salsicha ou ter que sentar num troféu
em formato de plugue anal para acessar uma habilidade de outro universo são
coisas que o filme apresenta sem um pingo de constrangimento, sob o mote de que
“não faz sentido, mas funciona”. O grande risco é a possibilidade desse
besteirol de inviabilizar o potencial dramático do filme, que é considerável e
no qual os diretores também mergulham.
Este é um filme cujo tom não é fácil sequer de conceber, que
dirá construir, pois é formado de elementos a princípio inconciliáveis, como
emoções genuínas de um drama familiar, quase à beira do melodrama, humor
escrachado, dilemas filosóficos e artes marciais, tudo isso entremeado por um
vai e vem cada vez mais histérico entre os universos. A montagem faz um
malabarismo gigantesco ao costurar todos esses elementos, e faz isso muitíssimo
bem na maior parte do tempo, e seu papel em conseguir construir esse tom é
crucial. Toda a produção é muito inventiva também em criar uma identidade
visual, através do design de produção, figurinos e fotografia, considerando não
só o baixíssimo orçamento para um filme desse porte (apenas 25 milhões de
dólares), mas principalmente a natureza da história que pede uma mudança
drástica de visual a cada mudança de universo. São particularmente fascinantes
o grande salão branco da vilã, o universo em que Evelyn é uma estrela, onde é
tudo muito cool e refinado (onde os diretores se inspiraram no cinema de Wong Kar-Wai)
e a já famosa cena onde as personagens são pedras. Em contrapartida, algumas
sequências não funcionam muito bem. O trabalho de câmera da primeira luta não é
muito bom, e a manipulação da velocidade e do framerate dá um aspecto meio
amador, principalmente em comparação com as lutas posteriores, muito melhor
realizadas.
Mas o que talvez seja o principal elemento que vem
capturando tanto os corações do público seja o relacionamento familiar, o drama
entre Evelyn e o marido e, principalmente, ela e a filha. Um drama que parte
principalmente da entrega ou não dos personagens ao niilismo, advindo da
percepção das personagens da vastidão do multiverso e de suas múltiplas
possibilidades pessoais, em direção a uma conclusão de que nada faz sentido e
nada, de fato, importa. Se a filha se entregou a esse niilismo, a partir das pressões
e expectativas da mãe, cabe justamente a essa mãe, passando pela mesma
experiência, não seguir pelo mesmo caminho. E essas reflexões sobre os caminhos
que escolhemos, como nossas decisões moldam nossa vida e que sentido tudo isso
tem afinal, ressoou de forma impressionante junto ao público. E o fato de que
tudo isso venha nesse pacote inesperado que é esse delírio estético, um caos controlado,
mas que parece sempre à beira do descontrole e, quase sempre, descaradamente divertido,
tornou Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo um fenômeno.
Um problema que o filme enfrenta é sua característica hiper expositiva,
que é algo que incomoda (ou não) cada pessoa em níveis diferentes. A princípio,
o roteiro é bem hábil em administrar todo o texto necessário para explicar o
que está acontecendo, pois a protagonista e o público precisam saber qual é o
histórico e a lógica de tudo aquilo, e isso é muito bem entremeado com toda a
ação do filme, e não se tem a sensação que o filme empaca para que explicações
sejam dadas. Porém, em seu terceiro ato, parece haver uma certa overdose de
reafirmação do que os personagens estão tirando de tudo aquilo. Talvez ao
fragmentar essa jornada das personagens ao abismo niilista e de que forma elas
tentam sair, picotando essas reflexões entre as diversas versões das
personagens em cada universo, essa exposição se torna excessivamente repetida e
não dando muita margem a outras interpretações e, até certo ponto, limitando
essas discussões a uma superfície específica, apesar da aparência de
profundidade, ainda que o potencial dessas questões seja, de fato, profundo.
Se esse filme é revolucionário, como tanto vem sendo dito,
ou não, é provável que não seja algo a ser respondido agora. Obras
verdadeiramente disruptivas nunca foram reconhecidas como tal em suas épocas.
Isso é obra do tempo. O que os Daniel fizeram foi pegar muitas ideias,
propostas narrativas e estéticas, que já estavam por aí e reorganizá-las de um
jeito particular e que o público não está muito acostumado a ver, a exemplo de
como Tarantino construiu sua filmografia quase que exclusivamente partindo das
produções B e exploitation e as retrabalhando a partir de suas incríveis
sensibilidades estética e narrativa, dando origem a algo novo que foi
imensamente influente em outras obras. Não quer dizer que Tarantino tenha sido
revolucionário ou disruptivo, mas que ele criou algo que gerou uma marca e uma
onda de influências a partir dele.
A forma como esse filme está verdadeiramente emocionando as
pessoas não pode ser ignorada. Se a temática do filme e a jornada dos
personagens têm uma aparência de profundidade maior do que elas são de fato desenvolvidas,
elas ainda assim ressoam fortemente junto ao público que, sob os ecos de suas experiências
pessoais, adicionam a profundidade que o filme ensaia, mas não mergulha. O que
salva o filme de soar como uma metralhadora de filosofismo vazio é justamente
essa forma tão despojada, esse espírito de não ter medo do caos nem do
ridículo. Se o terceiro ato se perde em constantes reafirmações de sua “mensagem”,
isso faz parte justamente dessa estética barroca, dessa onipresença do excesso,
de tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Esse filme é um pacote que é preciso
comprar inteiro. E se ele é um clássico revolucionário ou uma modinha a ser
esquecida em breve, o tempo, como sempre, é quem decide.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Diretor: Daniel Kwan e Daniel Scheinert
Atriz: Michelle
Yeoh
Ator coadjuvante:
Ke Huy Quan
Atriz coadjuvante:
Jamie Lee Curtis
Atriz coadjuvante:
Stephanie Hsu
Roteiro original:
Daniel Kwan e Daniel Scheinert
Montagem:
Paul Rogers
Música original:
Son Lux
Canção
original: "This is a Life" de Ryan Lott, David Byrne e Mitski
Figurino: Shirley
Jurata