Por Ricky Nobre
Furiosa não é Estrada da Fúria. Assim como este não era Thunderdome, que não era Road Warrior, que não era Mad Max. Em todas as vezes em que George Miller visitou esse mundo de barbárie e loucura onde toda a estrutura social e econômica colapsou, ele sempre o fez em abordagens muito distintas. Desta forma, Miller não tentou repetir a orgia de insanidade visceral de seu filme anterior. E a principal diferença entre Furiosa e o filme ao qual ele é diretamente ligado está na forma como Miller diferencia os dois protagonistas, e esta diferença está em como Furiosa percebe, lida e sobrevive na loucura daquele mundo de uma forma totalmente diferente de Max.
Max não nasceu no caos, ele viu o mundo colapsar e consegue sobreviver nos escombros às custas de sua sanidade. O Louco Max. Já Furiosa nasceu nesse novo mundo, mas em uma terra de abundância e de estrutura matriarcal, porém, ciente de todos os perigos à volta. Quando é arrancada de lá, ela demonstra a dureza de quem era filha de uma guerreira. Para sobreviver em um mundo no qual ela é prisioneira, ela cria formas de se tornar, ao mesmo tempo, útil e invisível. E, como é tema comum na franquia, com um ardente desejo de vingança. Essa forma tão focada e pragmática de Furiosa de ver e lidar com esse mundo dá o tom da narrativa de Miller neste filme que diverge da loucura incessante do antecessor, e que agora se detém em um maior detalhamento de como funciona o delicado equilíbrio de poder entre as três grandes fortalezas, esmiuçando “comos” e “porquês” que antes não lhe interessavam. Se Estrada Fúria é uma grande alegoria do poder capitalista e do feminismo como força motriz para derrubá-lo, Furiosa se desenrola de uma forma bem mais individual, mas que, ao mesmo tempo, estabelece nesta origem da personagem de onde veio essa força que foi tão determinante no filme anterior.
Se Estrada da Fúria nos alimentava com fragmentos de informação, nos deixando com a tarefa de montar o quebra-cabeças daquela realidade para, desta forma, evidenciar a insanidade de tudo e nos pondo em sintonia com a mente de Max, neste existe espaço para uma visão mais racional daquele mundo insano, dando-lhe mais sentido e sintonizando com a mente de Furiosa que, se tem um constante fogo no olhar, possui também a frieza da paciência de quem observa, planeja, espera e, acima de tudo, sobrevive. Destacando esse papel da protagonista de observadora silenciosa, sempre atenta e planejando em segredo, Miller mantém os enormes e maravilhosos olhos de Anya Taylor-Joy intensamente iluminados, como dois faróis brilhando na escuridão do caos. Esse tom mais contido dita todo o tom do filme, inclusive nas perseguições, lutas e tiroteios que, ainda que se mantenham dentro da excelência do que Miller sempre fez na franquia, evidenciam planos e estratégias. Furiosa é precisa em tudo que faz, sua fúria fica contida, transparecendo apenas no olhar e na determinação de se vingar e voltar para casa. É bem interessante a forma como ela fica um tanto desconcertada ao encontrar afeto e alguém em quem ela pode confiar na figura do Pretorian Jack que, embora não conheça sua história, confia nela também.
É bastante simbólico que quando ela deixa seu braço para trás, ela deixa também uma esperança tatuada nele. A prioridade é a sobrevivência e a sede de vingança se intensifica. Por isso, é especialmente curioso como o embate final com cruel bufão Dementus dá lugar à palavra, numa sequência para a qual parecem terem sido reservadas metade das meras 30 falas da atriz, num tom surpreendentemente teatral, com reflexões sobre o sentido da vingança, onde Miller não tem qualquer pudor em parecer melodramático. O desfecho, que mistura luz e trevas de maneira assombrosa, evidencia o quanto a menina que veio de um paraíso natural se tornou uma autêntica criatura daquele mundo de areia, gasolina e metal, enquanto conseguiu, de seu modo furioso, resgatar seu lar através de uma pequena esperança em forma de semente. Miller ainda faz questão de unir o final de Furiosa com o início de Estrada da Fúria, dando a sensação de fechamento de ciclo.
COTAÇÃO:
FURIOSA (Austrália / EUA – 2024)
Com: Anya Taylor-Joy, Tom Burke, Alyla Browne, George Shevtsov, Lachy Hulme, John Howard e Charlee Fraser
Direção: George Miller
Roteiro: George Miller e Nick Lathouris
Fotografia: Simon Duggan
Montagem: Eliot Knapman e Margaret Sixel
Música: Tom Holkenborg
Design de produção: Colin Gibson