Por Ricky Nobre
Aparentemente, é comum o equívoco de que Tár trata-se de uma cinebiografia. Mas a compositora e maestrina (ou simplesmente “maestro”, como ela prefere) Lydia Tár é uma personagem de ficção. O diretor e ator Todd Field, em seu terceiro longa-metragem após 16 anos de hiato, criou uma conjuntura muito bem executada que favorece esse fenômeno. Logo de início, o espectador é imerso em uma grossa fatia de “cinema falado”, pois conhecemos a protagonista através de uma longa e detalhada entrevista, onde seu histórico acadêmico e profissional é esmiuçado, assim como suas motivações artísticas e métodos de trabalho (que tem, inclusive, certa função didática para aqueles do público sem nenhum conhecimento prévio sobre o mundo da música clássica) e, pouco mais adiante, trechos de uma entrevista em um podcast e imagens de sua página no Wikipedia sendo editada por sua assistente. Essas sequências compõem com muita precisão a imagem de uma pessoa pública de enorme projeção, um dos maiores nomes da música clássica de sua época.
Essa imersão, que nos dá a impressão que estamos diante de um personagem da vida real, se dá tanto pela precisão do texto, que mescla realismo técnico e naturalidade do discurso, quanto do esmero de todo o ambiente que cerca a personagem. Quem faz a entrevista no início é Adam Gopnik, interpretando ele mesmo; a entrevista em áudio é para o podcast de Alec Baldwin. Quem aparece cortando o terno de Lydia no início é o famoso Egon Brandstetter, que também interpreta a ele mesmo; suas gravações são feitas pela Deutsche Grammophon, o maior selo de música clássica do mundo, e o livro da personagem também é anunciado por uma editora real, a Nan A. Talese. Chega ao ponto de citar, como sua pupila, a compositora e violoncelista Hildur Guðnadóttir, vencedora do Oscar pela trilha de Coringa e autora da música original de Tár. Todo um universo de “realidade” cerca Lydia Tár, que suga o espectador, mesmo que ele não tenha noção de todos os elementos citados. Mas o que une tudo e faz todos esses elementos serem solidamente reais é Cate Blanchett. Field chegou a dizer que escreveu o roteiro para ela e que se ela não aceitasse ou não pudesse fazer, ele simplesmente não tinha interesse em fazer o filme. E a sensação que fica é a de que, de fato, Tár é inviável sem Blanchett. Numa carreira brilhante, esse é provavelmente seu melhor momento.
Em contraponto a sua imagem pública, a figura pessoal é construída por fragmentos, diversos deles que só podem ser desvendados ao fim da projeção, sendo que algumas peças só poderão ser encaixadas numa segunda assistida, dada a sutileza de alguns elementos. Porém, três momentos são primordiais na primeira parte. A primeira é a aula onde ela confronta um aluno que diz que não se interessa pelo trabalho de compositores brancos e heteronormativos. Em um discurso que de início agrada muito ao público, Lydia questiona a noção atual de que as obras dos artistas devam ser julgadas por suas condutas, sugerindo ser isso uma questão de ego que, segundo ela, deveria ser suprimido diante das grandes obras. Mais adiante, ela resolve um problema de bullyng que sua filha sofria na escola intimidando pessoalmente a criança que a perturbava. Por fim, descobre sobre o suicídio de uma antiga pupila, momento que desencadeia sua espiral de decadência, pois Lydia teria destruído a carreira da moça usando sua influência.
O que define Lydia Tár e o que eventualmente leva à sua queda é a segurança sobre seu poder. Ela não parece se sensibilizar verdadeiramente com ninguém que não seja a filha ou com nada que não seja a música. Sua relação com a esposa e com a assistente, suas ações que levaram ao suicídio da pupila, a forma como manipula toda uma situação na orquestra para que uma determinada solista seja escolhida, são fatos que vão erodindo a mítica do personagem aos olhos do público, ao mesmo tempo em que o amor pela filha e a genuína paixão e entrega à música a eleva na mesma medida. Além disso, conforme o filme progride, a confiança pétrea de Lydia vai rachando aos poucos com a insegurança e a culpa, sob a forma de pesadelos, gritos no parque que ela não consegue localizar, um metrônomo que, inexplicavelmente, dispara à noite, uma composição que ela não consegue desenvolver.
É particularmente curioso como o discurso “anti cancelamento” se torna um fantasma para Lydia. Se os que rechaçam a obra de homens falhos são, para ela, “robôs” criados pelas redes sociais, sua nova paixonite é uma jovem russa com referências feministas e de revolucionárias soviéticas e que aprendeu um concerto de Elgar pelo Youtube. Por outro lado, seu discurso na universidade acerta involuntariamente no momento em que, através de suas próprias ações Lydia mostra que uma mulher lésbica é capaz dos mesmos abusos de um homem hétero. Mais curioso é quando Field sugere que a dedicação e amor de Lydia à música está acima de todas as suas prioridades ou defeitos. Se inegavelmente houve flerte e favorecimento de Lydia em relação à jovem violencelista, nos parece claro que ela o fez por genuinamente apreciar seu talento e, de fato, não vemos Lydia sexual ou romanticamente envolvida com ninguém fora de seu casamento, e suas decisões tem seu trabalho e sua orquestra como prioridades sempre. Em seu pior momento, ela desmorona emocionalmente diante de uma velha fita VHS onde Leonard Bernstein esmiúça o que é música em um programa de TV para jovens. Para Bernstein, música é efetivamente o que nós sentimos, não o que nós entendemos, o que parece ecoar as decisões de direção de Field, onde diversos fatos são pincelados de forma vaga e rápida, e outros são simplesmente inexplicáveis. Mas Lydia sente, e nós também.
Não existe cena sem a presença da protagonista. Tudo que conhecemos é através dela, de seu ponto de vista, de seu pedestal que, aos poucos, se despedaça. Se as personagens da esposa e da assistente, com tanto potencial e tão bem defendidas por suas atrizes, são pouco aproveitados e subitamente descartadas do nada, isso se dá porque, no momento que elas saem da vida de Lydia, elas não têm mais sentido, pois o mundo gira em torno dela, ainda que gire progressivamente em direção ao descontrole.
Nesse profundo estudo de personagem, Field não julga sua protagonista levianamente. Ele deixa o julgamento para seu público. Sem em momento algum subestimar seus abusos de poder e suas terríveis consequências, o diretor contrapõe essas ações com o que há de melhor na personagem. A temática proposta na cena da universidade é esmiuçada ao longo de todo o filme. O destino de Tár, inclusive, pode ter uma dupla leitura. Se a cena final sugere uma decadência vergonhosa para sua carreira, pode também sugerir um novo começo, “uma nova história” como sugere um consultor em Nova Iorque. Se o filme começa, ao longo dos créditos quase completos do filme, com uma gravação de cantos indígenas que Lydia fez na Amazônia durante sua formação acadêmica, e a partir da qual ela forjou a grande personagem mítica da música que ostentava, uma nova personagem pode estar sendo construída a partir de sua leitura de uma cyber cultura que ela tão veementemente rejeitava. Pode exigir humildade, mas não é seu fim.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Diretor: Todd Field
Atriz: Cate Blanchett
Roteiro original: Todd Field
Fotografia: Florian Hoffmeister
Montagem: Monika Willi
TÁR (EUA, 2023)
Com: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Mark Strong, Nina Hoss, Julian Glover e Sophie Kauer.