sexta-feira, 24 de maio de 2024

FURIOSA

Por Ricky Nobre

Furiosa não é Estrada da Fúria. Assim como este não era Thunderdome, que não era Road Warrior, que não era Mad Max. Em todas as vezes em que George Miller visitou esse mundo de barbárie e loucura onde toda a estrutura social e econômica colapsou, ele sempre o fez em abordagens muito distintas. Desta forma, Miller não tentou repetir a orgia de insanidade visceral de seu filme anterior. E a principal diferença entre Furiosa e o filme ao qual ele é diretamente ligado está na forma como Miller diferencia os dois protagonistas, e esta diferença está em como Furiosa percebe, lida e sobrevive na loucura daquele mundo de uma forma totalmente diferente de Max.

 

Max não nasceu no caos, ele viu o mundo colapsar e consegue sobreviver nos escombros às custas de sua sanidade. O Louco Max. Já Furiosa nasceu nesse novo mundo, mas em uma terra de abundância e de estrutura matriarcal, porém, ciente de todos os perigos à volta. Quando é arrancada de lá, ela demonstra a dureza de quem era filha de uma guerreira. Para sobreviver em um mundo no qual ela é prisioneira, ela cria formas de se tornar, ao mesmo tempo, útil e invisível. E, como é tema comum na franquia, com um ardente desejo de vingança. Essa forma tão focada e pragmática de Furiosa de ver e lidar com esse mundo dá o tom da narrativa de Miller neste filme que diverge da loucura incessante do antecessor, e que agora se detém em um maior detalhamento de como funciona o delicado equilíbrio de poder entre as três grandes fortalezas, esmiuçando “comos” e “porquês” que antes não lhe interessavam. Se Estrada Fúria é uma grande alegoria do poder capitalista e do feminismo como força motriz para derrubá-lo, Furiosa se desenrola de uma forma bem mais individual, mas que, ao mesmo tempo, estabelece nesta origem da personagem de onde veio essa força que foi tão determinante no filme anterior.

 

Se Estrada da Fúria nos alimentava com fragmentos de informação, nos deixando com a tarefa de montar o quebra-cabeças daquela realidade para, desta forma, evidenciar a insanidade de tudo e nos pondo em sintonia com a mente de Max, neste existe espaço para uma visão mais racional daquele mundo insano, dando-lhe mais sentido e sintonizando com a mente de Furiosa que, se tem um constante fogo no olhar, possui também a frieza da paciência de quem observa, planeja, espera e, acima de tudo, sobrevive. Destacando esse papel da protagonista de observadora silenciosa, sempre atenta e planejando em segredo, Miller mantém os enormes e maravilhosos olhos de Anya Taylor-Joy intensamente iluminados, como dois faróis brilhando na escuridão do caos. Esse tom mais contido dita todo o tom do filme, inclusive nas perseguições, lutas e tiroteios que, ainda que se mantenham dentro da excelência do que Miller sempre fez na franquia, evidenciam planos e estratégias. Furiosa é precisa em tudo que faz, sua fúria fica contida, transparecendo apenas no olhar e na determinação de se vingar e voltar para casa. É bem interessante a forma como ela fica um tanto desconcertada ao encontrar afeto e alguém em quem ela pode confiar na figura do Pretorian Jack que, embora não conheça sua história, confia nela também.

 

É bastante simbólico que quando ela deixa seu braço para trás, ela deixa também uma esperança tatuada nele. A prioridade é a sobrevivência e a sede de vingança se intensifica. Por isso, é especialmente curioso como o embate final com cruel bufão Dementus dá lugar à palavra, numa sequência para a qual parecem terem sido reservadas metade das meras 30 falas da atriz, num tom surpreendentemente teatral, com reflexões sobre o sentido da vingança, onde Miller não tem qualquer pudor em parecer melodramático. O desfecho, que mistura luz e trevas de maneira assombrosa, evidencia o quanto a menina que veio de um paraíso natural se tornou uma autêntica criatura daquele mundo de areia, gasolina e metal, enquanto conseguiu, de seu modo furioso, resgatar seu lar através de uma pequena esperança em forma de semente. Miller ainda faz questão de unir o final de Furiosa com o início de Estrada da Fúria, dando a sensação de fechamento de ciclo.

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FURIOSA (Austrália / EUA – 2024)

Com: Anya Taylor-Joy, Tom Burke, Alyla Browne, George Shevtsov, Lachy Hulme, John Howard e Charlee Fraser

Direção: George Miller

Roteiro: George Miller e Nick Lathouris

Fotografia: Simon Duggan

Montagem: Eliot Knapman e Margaret Sixel

Música: Tom Holkenborg

Design de produção: Colin Gibson

domingo, 10 de março de 2024

Os filmes do Oscar: OPPENHEIMER – 13 indicações

  Por Ricky Nobre

Christopher Nolan nunca foi conhecido pela sutileza em suas criações como cineasta. Porém, sempre nutriu certa fascinação por protagonistas problemáticos, com ética duvidosa ou, pelo menos, conflitante, como podemos ver em Amnésia, Insônia ou mesmo Batman. O Oppenheimer de Nolan é seu estudo mais aprofundado desse tipo de personagem. Com seu estilo grandiloquente e bombástico, Nolan até ensaia alguma sugestão, em meio a seus tão característicos diálogos expositivos intermináveis. Mas o que mais impressiona aqui é como ele parece ter refinado todas suas características, alvos tanto de louvores quanto de escárnios, em sua forma mais bem lapidada. Se Nolan é obsessivo com método, ordem e complexificação, aqui ele atinge seu nirvana.

 

Por mais que o filme trate sobre o Projeto Manhattan, ele não é sobre a bomba nem sobre seus efeitos no mundo, na guerra e na política, mas sobre seu criador e como tudo isso é visto através dele. No tradicional estilo do diretor que segue linhas de tempo distintas, acompanhamos o início da carreira acadêmica de Oppenheimer e o desenvolvimento da bomba. Paralelamente, Oppenheimer responde em intermináveis sessões de um comité sobre suas acusações de “atividades antiamericanas”, e em ainda outra linha futura, o secretário Strauss enfrenta no Senado uma audiência que, de alguma forma, se relaciona com as demais linhas de tempo. O que é inegável é que nada impedia do filme ter sido concebido e montado em ordem cronológica, mas o que Nolan consegue com sua obsessão em complexificar coisas simples é um fascinante exercício de estilo que toma uma história que poderia ser contada de forma totalmente direta e dá a ela uma forma rebuscada, quase um enigma, que se relaciona com a complexidade do tema, que são os dilemas morais do protagonista e dos cientistas que colaboraram com ele e, mais ainda, com o enigma que era a mente de Oppenheimer.

 

Oppenheimer é mostrado como uma figura atormentada pelo seu legado, mas que, durante sua trajetória, parecia sempre escolher o desafio científico em detrimento de questões humanitárias. O consenso na urgência em desenvolver a bomba atômica antes dos nazistas vai se dissipando entre os cientistas após a rendição da Alemanha, mas Oppenheimer vê motivos para continuar, imaginando que a própria existência da bomba tornaria o mundo mais seguro. Sua consciência, porém, permanece bombardeada pela culpa, mas ele nunca decide por uma ação contrária, desafiadora, e vários personagens apontam que não conseguem entender no que, de fato, ele acredita. Por vezes, parece uma paralisia, outras, apenas covardia. Por fim, temos a sensação de que era um homem que não sabia lidar com o fato de que ele sempre escolhia exploração científica, o desafio, que não sabia arcar com a culpa de suas escolhas egoístas.

 

Nolan ilustra essa mente atormentada de diversas formas, desde apenas a expressão torturada de Cillian Murphy (num trabalho excepcional) pela morte da amante pela qual ele se culpa, ou assistindo a um documentário sobre as mortes no Japão graças à radiação dos bombardeios, até uma sequência surpreendente para o cinema tão “realista” do diretor, onde uma tensa cena de interrogatório é iluminada como se estivesse prestes a entrar em fissão nuclear. Aliás, é nesse espaço confinado do comité que o investiga que temos as cenas mais “simbólicas” do cinema de Nolan, como quando Oppenheimer se sente tão exposto pelas perguntas sobre sua amante que ele se sente nu ali, com ela ao seu colo. 

 

Além disso, belas imagens abstratas representam os processos e fenômenos atômicos narrados pelos cientistas, numa ilustração mais lúdica do que realista, e podemos perceber, então, uma identidade visual que não só tira (pelo menos um pouco) o cinema de Nolan de sua obsessão pelo realismo, mas de fato se utiliza de processos fotográficos analógicos para criar esses dois mundos: o exterior e o dentro da mente de Oppenheimer. Nesse sentido, é verdadeiramente impressionante o quanto a aposta de Nolan nos grandes formatos analógicos, no caso o 70mm e IMAX 70, são capazes de verdadeiramente nos sugar para dentro desse mundo, junto com um sound design extraordinário. Toda a sequência do teste de Trinity é o perfeito exemplo disso.

 

Nolan continua em Oppenheimer com seu cinema que é grande, rebuscado além da conta, barulhento e meio opressivo, mas que aqui está em total harmonia com o tamanho do evento histórico, do dilema ético e do personagem, e é uma celebração de um tipo de cinema que cresce ao ser visto nas grandes salas. Nolan orquestra essa sinfonia gigante, que pega algo simples como um átomo e transforma em uma explosão monumental.

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INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Christopher Nolan        

Ator: Cillian Murphy

Ator coadjuvante: Robert Downey Jr.

Atriz coadjuvante: Emily Blunt

Roteiro adaptado: Christopher Nolan, baseado no livro de Kai Bird e Martin J. Sherwin

Música original: Ludwig Göransson

Fotografia: Hoyte van Hoytema

Montagem: Jennifer Lame

Design de produção: Ruth De Jong e Claire Kaufman

Som: Willie Burton, Richard King, Kevin O’Connell e Gary A. Rizzo

Maquiagem: Luisa Abel

Figurinos: Ellen Mirojnick

 

OPPENHEIMER (EUA, 2023)

Com: Cillian Murphy, Robert Downey Jr., Emily Blunt, Florence Pugh, Matt Damon, Kenneth Branagh, Tom Conti, Tom Jenkins, Matthew Modine, Benny Safdie, Casey Affleck e Rami Malek

sábado, 9 de março de 2024

Os filmes do Oscar: ANATOMIA DE UMA QUEDA – 5 indicações

  Por Ricky Nobre

Hitchcock detestava os “whodunits”, que era o apelido para os filmes de mistério que se resumiam à questão sobre “quem matou”, uma vez que todo o apelo do filme poderia desaparecer caso alguém contasse de antemão quem era o culpado. É bastante irônico que sua obra máxima Psicose seja um whodunit disfarçado, pois o público passa o tempo inteiro pensando que sabe quem é o culpado. Seria muito interessante se Hitchcock pudesse ver hoje Anatomia de Uma Queda, um whodunit que ousa deixar essa pergunta em segundo plano. Esclarecer o que de fato aconteceu ao personagem caído na neve não é do interesse da cineasta Justine Triet, que se concentra em um exercício de controle de narrativas: a da acusada, do promotor, do menino em meio a uma tragédia familiar, e o de sua própria como diretora. 

 

É muito curioso como Triet, na capacidade de roteirista e diretora, articula movimentos aparentemente antagônicos, porém complementares: o roteiro é uma busca pela verdade, enquanto a câmera é um instrumento da dúvida. Por vezes, a câmera apresenta uma possível verdade, ilustrando as teorias, tanto da acusação quanto da defesa. Porém, por outras parece mais eloquente quando Triet decide por sua ausência. Durante a apresentação de um áudio no tribunal, a montagem rapidamente nos transporta no tempo para que possamos ver o casal discutindo, para, subitamente, voltar para o tribunal quando o áudio sugere sons de violência, deixando a nós e a todos na audiência na dúvida sobre o que de fato aconteceu, ficando a palavra da acusada como o único elemento esclarecedor. 

 

Triet instiga nossa dúvida sobre a culpa ou não de Sandra, especialmente quando a câmera se retira em momentos estratégicos, nos deixando apenas com sua palavra, ou quando muda sua postura diante da personagem, como quando ela está treinando um depoimento com seu advogado e, diante de uma determinada pergunta, a câmera passa de uma posição de simples observadora para um close em plongée, numa proximidade desconfortável, como que tentando nos revelar algo para além da capacidade da personagem em mentir ou omitir. Da mesma forma, Triet brinca com esse jogo não apenas de ocultar, mas da câmera mostrar fatos ou versões, deixando momentos como a lembrança do menino no carro com o pai algo a ser ou não digno de confiança. 

 

É muito interessante o papel da música no filme. Quase toda a música apresentada é diegética, seja o hip hop tocado obcessivamente pelo marido, seja a música do menino ao piano. Essas passagens ao piano, que soam com todas as imperfeições de uma criança talentosa, apesar de diegéticas, também funcionam não diegeticamente a partir da forma como a montagem as apresenta e, desta forma, servindo também como pontuamento dramático. A única passagem musical totalmente não diegética é na última cena, onde uma das músicas tocadas anteriormente pelo menino retorna em uma gravação profissional, perfeita, quando o bravo Snoop se junta a Sandra no sofá. Ali, Triet dá o último laço que amarra sua coleção de dúvidas, especialmente sobre um menino, que pode ter ou não descoberto e lembrado de fatos importantes, e sobre uma mãe, que pode ou não ter matado o pai de seu filho. 

 

Desta forma, Triet explora na narrativa fílmica as fragilidades e os dilemas das narrativas do próprio ambiente do tribunal, e estabelece em seu espaço dramático um paralelo com o sistema de justiça, onde o objetivo é provar a culpa, não a inocência. Se a encenação do roteiro busca os fatos e a verdade, a encenação proposta pela câmera e pela montagem estabelece a dúvida razoável. E se ela é suficiente para a justiça, também é para Triet que forja em Anatomia de Uma Queda um filme de tribunal que será referência absoluta no gênero pelas próximas décadas.

COTAÇÃO:


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Justine Triet

Atriz: Sandra Hüller

Roteiro original: Justine Triet e Arthur Harari

Montagem: Laurent Sénéchal

 

ANATOMIA DE UMA QUEDA (Anatomie d'une Chute, França – 2023)

Com: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado-Graner, Antoine Reinartz, Jehnny Beth, Anne Rotger, Camille Rutherfor e Messi.

Direção: Justine Triet

Roteiro: Justine Triet e Arthur Harari

Fotografia: Simon Beaufils

Montagem: Laurent Sénéchal