quinta-feira, 28 de setembro de 2023

ELIS & TOM: SÓ TINHA QUE SER COM VOCÊ

por Ricky Nobre

Os diretores cometem um erro na concepção visual de Elis & Tom que reflete o principal problema estrutural do filme. Sendo formado basicamente de imagens recém recuperadas em 16mm e algum material histórico em vídeo SD, o filme carrega a proporção de tela scope (2,35:1), o que exigiu que todo o material originalmente em 1,33:1 fosse reenquadrado, o que levou tanto a imagem a ter sua baixa resolução esgarçada para além do limite, quanto também gerou reenquadramentos incrívelmente feios, chegando até mesmo a ter rostos cortados pela metade em alguns takes. E da mesma forma que os diretores não souberam lidar com o material visualmente, eles também não souberam o que fazer com ele para desenvolver o que, aparentemente, era seu principal conceito: como um processo de gravação caótico e repleto de conflitos gerou uma obra prima. 

 

Após uma longa introdução sobre os dois artistas (que soa mais como um MPB for dummies), o filme parte para o início do projeto e os conflitos iniciais, parcialmente ilustrados pelas filmagens recuperadas, onde é possível ver uma Elis incrivelmente tensa. Rapidamente o filme vira para uma fase onde os conflitos parecem ter sido superados do nada, e todo o processo passa a ser só harmonia. O arranjador do álbum Cesar Camargo Mariano, principal alvo de Tom durante a produção, tem muito pouco a dizer no filme, apesar de, numa produção recente para a TV sobre o mesmo álbum, ter concedido uma longa entrevista onde ele detalha todo o processo e todos os problemas, particularmente o quanto Jobim era capaz de ser insuportável no estúdio. 

 

É possível que as filmagens dos ensaios e gravações não dessem conta de ilustrar todos os problemas dos bastidores, mas, em vez de lançar mão de depoimentos que representassem esses conflitos, o filme aposta em entrevistas que têm muito pouco a dizer, tendo nos depoimentos de João Marcelo Bôscoli uma espécie de fundo do poço. Mas sem dúvida o mais ofensivo no filme é a forma como alguns depoimentos supõem de forma irresponsável questões sobre a vida e principalmente, a morte de Elis, tendo um longo take do rosto da cantora em seu caixão como o símbolo máximo dessa insensibilidade. 

 

O que sobrevive em meio a tudo isso é a arte em si. As performances, a voz e a afinação sublime de Elis durante os ensaios mais simples. Uma performance impecável de Jobim ao violão durante ensaios em sua casa. A emoção de Elis ao fim de um take de gravação. O álbum é, de fato, uma obra prima, e quando ele protagoniza o filme, tudo se ilumina.

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ELIS E TOM: SÓ TINHA QUE SER COM VOCÊ (Brasil - 2023)

Direção: Roberto de Oliveira  e Jom Tob Azulay 

Roteiro: Nelson Motta  e Roberto de Oliveira 

Direção de fotografia: Fernando Duarte e João Wainer 

Montagem: João Wainer

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

RESISTÊNCIA

 Por Ricky Nobre

Numa época de cinema feio que estamos vivendo, principalmente no âmbito das grandes produções, o novo filme de Gareth Edwards sucede de forma digna o recente fenômeno Barbieheimer, onde duas obras de apurado esmero visual tomaram as bilheterias de assalto. Resistência mostra um mundo onde as inteligências artificiais começaram a ser desenvolvidas ainda nos anos 1950, chegando a um desenvolvimento tal de tornarem-se indivíduos. Porém, uma bomba nuclear destrói Los Angeles a as IA são apontadas como responsáveis. Tendo a Ásia como refúgio, elas tentam se proteger da campanha militar internacional dos EUA para erradicar as inteligências artificiais do planeta. Isso é apresentado em um prólogo rápido e engenhoso que em uns dois minutos já estabelece tudo o que o público precisa saber. 

 

A partir daí conhecemos a história de Joshua, um militar americano infiltrado na resistência das IAs com o objetivo de localizar e eliminar seu criador, que é referenciado como um deus por elas. Uma falha na operação custa seu disfarce e a vida de sua esposa grávida, e ele volta para os EUA e desiste do exército. Anos depois, os militares o procuram afirmando que sua esposa está viva e pedindo que volte para concluir a missão. A partir daí o filme segue com excelentes sequências de ação que levam o protagonista a proteger uma IA em forma de criança, cuja origem é um mistério. Na jornada, o público vai tomando conhecimento de como a comunidade de IAs se integra à população asiática, tanto rural quanto urbana, onde Edwards estabelece claros paralelos entre a presença militar norte americana ali e sua forma brutal de lidar com a população humana local que protege os androides, com o padrão já conhecido das campanhas do país pelo mundo através da História, e o diretor não poupa ecos visuais com a guerra do Vietnam. 

 

Com boas interpretações e personagens bem delineados e ótimos diálogos, é fácil o espectador se deixar levar pela história e pela jornada torturada do protagonista, que vive o dilema do agente infiltrado, sempre entre o dever e a ética. O que vai incomodando crescentemente e vai se acumulando ao longo da projeção é que o filme sugere um grande número de ideias e sugestões de abordagens e discussões de forte teor político, que enriqueceriam imensamente a obra. De forma quase inacreditável, Edwards consegue a proeza de não desenvolver rigorosamente nenhuma dessas ideias que, muitas vezes, são citadas por poucos segundos e abandonadas. Só a título de exemplo, a região onde as IAs buscam refúgio é chamada de Nova Ásia. Por que é nova e qual a relevância dessa configuração geopolítica aparentemente não interessa, parece ser apenas uma sacadinha com a situação atual onde a China se contrapõe fortemente aos EUA na esfera econômica. Uma revelação sobre o que realmente teria acontecido no bombardeio de Los Angeles se resume a uma única frase de um personagem para ser imediatamente abandonada. A ideologia “oficial” que sustenta o ódio dos humanos às IAs é resumida a dois ou três momentos muito rápidos, como a frase recorrente “eles não são vivos” e um comentário como “vi um vídeo que diz que eles querem nossos empregos”. 

 

É quase como se Edwards achasse que a premissa essencialmente política do filme fosse um estorvo ao seu espetáculo de ação e à jornada individual do protagonista. Mas simplesmente não dá para criar um mundo dividido por uma guerra de cunho xenófobo e evitar se aprofundar na questão em todas as oportunidades que tem. Essa superficialidade acaba dando espaço para um maniqueísmo simplista que, embora se sustente no princípio razoável dos EUA como vilões e as IAs como vítimas, mantém tudo num desenvolvimento muito raso.

 

 Infelizmente, mesmo no âmbito estrito da aventura de ação, o terceiro ato deixa a desejar, sendo a missão final um pouco confusa e com um grande momento final que acaba não sendo tão emocionante quanto Edwards parece ter pretendido, com algumas situações um pouco forçadas para chegar até determinado ponto. Resistência tem claras pretensões de se tornar uma franquia e caso consiga seria uma ótima oportunidade de explorar tudo o que aqui foi evitado. O filme não deixa de empolgar por sua história, ritmo e bela concepção visual, até bastante impressionantes pelo orçamento de 80 milhões, bem abaixo das grandes produções recentes (incrível como a câmera usada foi a baratíssima FX3 da Sony), e vários de seus problemas podem passar despercebidos num primeiro momento. Mas é um desperdício ver justamente na ficção científica, um gênero com longa reputação em discutir questões humanitárias, políticas e sociais, um filme com tanto potencial entregar algo tão raso. Mesmo assim, é uma experiência válida, nem que seja para refletir sobre tudo o que o filme evita e admirar uma produção refinada feita com um orçamento realista para o cinema de hoje.

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RESISTÊNCIA (The Creator, EUA – 2023)

Com: John David Washington, Madeleine Yuna Voyles, Gemma Chan, Allison Janney e Ken Watanabe

Direção: Gareth Edwards             

Roteiro: Gareth Edwards e Chris Weitz

Direção de fotografia: Greig Fraser e Oren Soffer

Montagem: Hank Corwin, Scott Morris e Joe Walker

Música: Hans Zimmer

Design de produção: James Clyne

 

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

RETRATOS FANTASMAS


Por Ricky Nobre

Dizer que Retratos Fantasmas é o filme mais pessoal de Kleber Mendonça é até um eufemismo. O filme é concebido e estruturado como uma coleção de memórias resgatadas e definidas a partir dos lugares, sendo a primeira parte na casa onde ele viveu a maior parte de sua vida e rodou seus primeiros filmes experimentais e seu primeiro longa-metragem (O Som ao Redor), das ruas e prédios de sua vizinhança e do centro de Recife e de seus cinemas. 

 

A narração feita pelo próprio Kleber pode ao mesmo tempo passar uma sensação de frieza, principalmente por ser claramente lida, mas também uma intimidade única, onde uma certa insegurança do diretor no papel de narrador dá uma impressão de timidez e de alguém que está, num tom baixo de voz, contando coisas muito íntimas. E esse tom de quase confissão torna a jornada que Kleber nos apresenta uma experiência para o espectador, às vezes doce, às vezes angustiante, às vezes amarga.

 

A conexão entre a mãe historiadora e a reconstrução do passado feita pelo diretor dão o tom do filme desde o início, principalmente a partir do trecho de entrevista onde ela fala da História a partir da tradição oral. Sua impressionante coleção de imagens, boa parte feita pelo próprio Kleber quando jovem, é um amálgama de uma História documentada e uma História narrada a partir de uma perspectiva muito pessoal. Toda essa tapeçaria muito bem montada cria uma ressonância clara, lúcida, mas também poética, onde a constante mudança de sua casa e seus entornos ecoam nas mudanças no centro de Recife e nos cinemas que foram desaparecendo. É muito curiosa a forma como Kleber costura cenas de diversas épocas de Recife, seus prédios e seus cinemas com trilhas sonoras bem antigas, que dão um tom que vai do épico ao sinistro, como algo grandioso que vai se deteriorando, em sua decadência nas sombras.

 

Essas duas partes muito ricas são seguidas de uma terceira bem mais curta e menos interessante, onde se fala especificamente (e superficialmente) de quantos cinemas viraram igrejas e sobre o grande sobrevivente de Recife, o cinema São Luiz. A conclusão no único segmento ficcional do filme meio que tenta criar uma simbologia de tudo que estava já absolutamente claro durante todo o filme, e termina num tom de estranheza, não no bom sentido. A recriação ficcional do "homem do povo" chega a ser constrangedora diante, por exemplo, da doce e emocionante realidade das imagens do projecionista do cinema Art Palácio, Seu Alexandre. 

 

Indo agora para uma abordagem muito mais pessoal, acredito que o documentário ressoe de forma diferente entre cinéfilos de diversas idades. Pelo fato de eu regular de idade com Kleber, muita coisa ressoou muito forte em mim. Essa identificação de quem cresceu nos cinemas de rua intensifica muito a experiência de Retratos Fantasmas e sua relação com o tempo, a memória, os lugares e a arte. 

 

Apesar de ser do Rio de Janeiro, muitas das experiências narradas e das percepções compartilhadas me pareceram as mesmas, não só os filmes vistos, mas as experiências, as descobertas, como quando ele diz que começou a prestar atenção ao som dos filmes no cinema Veneza, ou que o longo muro de cartazes e fotos era como uma exposição de arte a céu aberto e também o primeiro contato com a existência de novos filmes, e também a amargura em ver essas salas fechando uma a uma. Quando ele cita que muitos falam de seus cinemas favoritos como "templos", lembro que eu chamava o Metro Boavista na Cinelândia de "catedral", sendo o cinema com a melhor e mais majestosa projeção do Rio de Janeiro. Lembro que fui me despedir dele em seus últimos dias, com o filme O Inferno de Dante, já largado, imagem escura e som fraco. Foi desolador. Ao final, lembro de beijar a cadeira à frente de mim e sair. Como Seu Alexandre, era como se eu também tivesse fechado aquele cinema com uma "chave de lágrimas".

 COTAÇÃO:


 


RETRATOS FANTASMAS (Brasil, 2023)

Direção, roteiro e narração: Kleber Mendonça Filho

Montagem: Matheus Farias

Música original: Tomaz Alves Souza