Por Ricky Nobre
O francês Luc Besson já era um nome de destaque nas rodinhas
cult lá pelos anos 80, principalmente pelos seus primeiros filmes como Subway e
Imensidão Azul. Mas foi com Nikita em 1990 (posteriormente refilmado à
exaustão) que Besson começou a abrir seu caminho para o grande público. De lá
pra cá, sua filmografia, repleta de grandes sucessos e fracassos, deu a Besson
a fama de cineasta que você “ama ou odeia”. Sendo, sem dúvida, o cineasta
francês mais popular do mundo, seus filmes costumam ser uma bizarra mistura de
sua personalidade, linguagem e visão de mundo tipicamente francesas e uma
habilidade e gosto pela grandiosidade hollywoodiana como poucos têm. Com a
honrosa exceção de León – O Profissional (1994), um filme rigorosamente
perfeito sob qualquer ponto de vista concebível, os filmes de Besson costumam
reunir em si mesmos os piores defeitos e as melhores qualidades. Seu recente
Lucy (2014), com Scarlett Johansson, consegue momentos do mais absoluto
brilhantismo e da mais profunda imbecilidade, e talvez seja sua obra que melhor
simboliza esses extremos. A maioria escolhe um lado: ou ama as qualidades ou
odeia os defeitos. Poucos são os que percebem que, para assistir Besson, é
preciso saber amá-lo e odiá-lo ao mesmo tempo e aprender a sair do cinema com
essa sensação de esquizofrenia emocional.
Vinte anos depois daquele que foi seu maior sucesso, o
clássico O Quinto Elemento (1997), Besson volta não só à ficção científica mas
também à estética quadrinística. O Quinto Elemento reproduziu à perfeição o
visual e a atmosfera dos quadrinhos de ficção científica franceses,
especialmente os da revista Metal Hurlant, que posteriormente ganhou o mundo
como a famosa Heavy Metal. Agora, Valerian e A Cidade dos Mil Planetas adapta a
história em quadrinhos Valerian: Agente Espaço-Temporal, lançada a exatos 50
anos na França, que causou um impacto tão grande a ponto de inspirar a criação
da própria Metal Hurlant, muito do visual e ambientação de Star Wars e o próprio
Quinto Elemento de Besson, que chamou seu criador e desenhista Jean-Claude
Mézières para, junto com Moebius, criar o visual do clássico de 1997.
Como fã dos quadrinhos desde garoto, Besson realiza seu
sonho de juventude ao realizar uma livre adaptação do sexto álbum da série, O
Embaixador das Sombras. Nele, acompanhamos os agentes especiais Valerian (Dane
Dehaan) e Laureline (Cara Delevigne) que precisam desvendar o desaparecimento
de tropas federais num setor específico de Alpha, uma estação espacial gigante
onde convivem espécies inteligentes de toda a galáxia. O caso parece ligado a
um “artefato” roubado que os dois recuperaram, e a ânsia do comandante Arun
Filitt (Clive Owen) em resolver a questão de forma violenta os coloca em
alerta. Quando o comandante é sequestrado, eles precisam se embrenhar nos
recantos mais sombrios de Alpha para resolver o mistério.
As duas primeiras sequências de Valerian são deslumbrantes.
Sim, DESLUMBRANTES, sem qualquer utilização leviana da palavra. De início, ao
som de Space Oddity de David Bowie, vemos o nascimento da estação espacial
Alpha na órbita da Terra na década de 1960, até ela sair de órbita, habitada
por seres de diversos planetas, numa mensagem de profundo otimismo na união,
entendimento e cooperação entre os povos. Em seguida, passamos para uma
belíssima paisagem alienígena, onde nativos vivem em total comunhão com a
natureza, sem saber que um trágico destino se aproxima. Cada fotograma dessa
sequência parece painéis de quadrinhos que ganham vida! Logo em seguida, porém,
os problemas começam e eles são, tragicamente, os personagens principais.
Originalmente nos quadrinhos, Laureline não foi concebida como
personagem fixa, mas sua participação na primeira saga do herói Valerian foi
tão bem recebida que Pierre Christin e Jean-Claude Mézières decidiram mantê-la
como “sidekick”. Com o tempo, sua importância nas histórias foi crescendo, até
que em 2007 o título da publicação mudou para Valerian e Laureline. Aliás, foi uma
oportunidade perdida por Besson ao dar título ao filme e incluir o nome da
heroína. Mas esse é o menor dos problemas. Nos quadrinhos, a dupla é uma
mistura de parceiros, melhores amigos e amantes intermitentes, com uma certa
tensão hierárquica por ele ser um major e ela sargento. No filme, tentou-se
forjar uma relação de amizade e intimidade já estabelecida a partir de anos de
aventuras pregressas, as quais, obviamente, não vemos. Porém, qualquer leveza
ou profundidade no relacionamento dos dois são imediatamente pulverizadas por
insistentes avanços sexuais de Valerian sobre Laureline, que o recusa
sistematicamente, não porque ele não a interessa, mas por ele manter uma
gigantesca “playlist” (?????) de mulheres com as quais ele já se relacionou e
ela não quer ser apenas mais uma de uma imensa lista que já passou por sua cama.
Ele então insiste, mesmo que eles não tenham trocado sequer um beijo, que ela
se case com ele, para provar que ele a ama de verdade. Esse mote tosto, ainda
mais toscamente escrito, é repetido ao longo do filme, tornando o
relacionamento dos dois, um dos pontos mais importantes dos quadrinhos originais,
uma piada ruim. Aliás, a suposta “mulhereguice” de Valerian é apenas uma
informação dada, já que em momento algum vemos nada sobre isso em suas ações
(em dado momento, ele até meio que baba por Rihanna, mas, afinal, quem nunca?).
Como heróis, os dois se saem muito melhor e não fazem feio
nas ótimas cenas de ação. Mesmo assim, há algo de excessivamente superficial na
construção dos dois, por mais que a “síndrome-do-personagem-de-papelão” seja
algo já previsível no filme. O “casting” não ajuda nem um pouco. Delavigne não
lembra muito Laureline, originalmente ruiva de cabelos curtos, mas é uma
representante digna das tradicionais mulheres fortes e “kickass” de Besson,
ainda que seja provavelmente a menos memorável de uma longa linhagem que inclui
as inesquecíveis Nikita, Mathilda e Leeloo. O caso de Valerian é bem mais
sério. Ainda que o personagem dos quadrinhos tenha certo histórico de insubordinação
e descontrole, ele é, na maior parte do tempo, disciplinado e tende a cumprir
as ordens que recebe, mesmo que elas sejam contrárias ao seu senso ético,
enquanto Laureline é mais rebelde e tende a insistir que Valerian faça o que é
certo, independente das ordens. Essa diferença, aliás, é surpreendentemente bem
representada em determinada altura do filme. Mas, em sua maior parte, o
Valerian de Dane Dehaan se assemelha mais a um garoto fanfarrão e arrogante,
com pouca o nenhuma empatia com o público (fanfarronice da qual Laureline, em
certa medida, também não escapa). O fato do ator já ter 31 anos mas parecer ter
19 não ajuda em nada, sendo seu “physique du role” a cereja do bolo formado por
um roteiro, direção e interpretação que foram incapazes de tornar o personagem-título
alguém com quem o público realmente se importasse. Ainda que bastante falha em
sua composição, Laureline acaba sendo a âncora que segura o pouco interesse do
público na dupla de heróis.
A grande surpresa acaba sendo a Bubble, encarnada por
Rihanna. O que esperava-se ser meramente uma personagem decorativa, acaba sendo
uma das coisas mais legais e bem pensadas do filme, a ponto de conseguir gerar
uma mínima faísca que seja de simpatia e humanidade de Valerian. Aliás, não
apenas Bubble, mas todos os alienígenas da raça tribal mostrada no início do
filme, o trio de fofoqueiros espaciais que negocia informações com qualquer um
que pague, tudo parece mais legal que a dupla central, principalmente quando o
papo pseudo romântico dos dois volta à tona, em momentos que são uma verdadeira
tortura mental.
Ao longo de Valerian e A Cidade dos Mil Planetas, o que não
falta são boas ideias. Muitas, aos borbotões, muito mais do que seria
humanamente possível desenvolver ao longo de 137 minutos. Tantas que Besson
preferiu simplesmente ignorar completamente as viagens no tempo, um dos
elementos centrais da série nos quadrinhos. Mas muito fica apenas sugerido,
como uma certa distopia no fato de que o lindo sonho de prosperidade e união
representado pela estação Alpha não foi capaz de afastar as guerra, a
mentalidade bélica destrutiva, atividades criminosas e uma grave crise
econômica, além de um interessante comentário sobre consumo como forma de
turismo (a sequência do mercado é, à propósito, sensacional!). Em sua
totalidade, o filme é abundante em ideias e mensagens, na melhor tradição de
Star Trek, sobre humanidade, sobre amor, cooperação e união. Você até vê isso
sugerido na dupla central de heróis, mais você não SENTE. A grande e
devastadora falha de Valerian é ter protagonistas que não representam a alma do
filme.
Valerian e A Cidade dos Mil Planetas chegou com a
incumbência quase natural de ser o Quinto Elemento dessa geração. Em
determinada medida, tem tudo para conseguir e, até certo ponto, superar o
clássico colorido dos anos 90, principalmente pela utilização constante porém
mais contida do humor, cujo excesso deu a O Quinto Elemento uma sensação mais
de paródia ou mesmo de comédia rasgada. O que faltou a Valerian e sobrou em
Quinto Elemento foi uma dupla central carismática e irresistível, como foram
Korben e Leeloo. O filme francês mais caro de todos os tempos (177 milhões de
dólares), que Besson escolheu rodar em inglês visando melhor penetração no
mercado americano, não vai bem nas bilheterias dos EUA e segue apenas razoável
ao redor do mundo, tendo arrecadado, após três semanas, apenas metade do seu
custo, pondo em cheque os planos de Besson para uma trilogia. É fácil amar ou
odiar Luc Besson e seu novo filme. Difícil é segurar essa barra que é amá-lo e
odiá-lo ao mesmo tempo.
VALERIAN E A CIDADE DOS MIL PLANETAS (Valérian et la Cité
des Mille Planètes, 2017)
Com: Dane DeHaan, Cara Delevingne, Clive Owen, Rihanna, Ethan
Hawke e Herbie Hancock.
Roteiro e direção: Luc Besson
Fotografia: Thierry Arbogast
Montagem: Julien Rey
Música: Alexandre Desplat
COTAÇÃO: