Por Ricky Nobre
Christopher Nolan nunca foi conhecido pela sutileza em suas criações como cineasta. Porém, sempre nutriu certa fascinação por protagonistas problemáticos, com ética duvidosa ou, pelo menos, conflitante, como podemos ver em Amnésia, Insônia ou mesmo Batman. O Oppenheimer de Nolan é seu estudo mais aprofundado desse tipo de personagem. Com seu estilo grandiloquente e bombástico, Nolan até ensaia alguma sugestão, em meio a seus tão característicos diálogos expositivos intermináveis. Mas o que mais impressiona aqui é como ele parece ter refinado todas suas características, alvos tanto de louvores quanto de escárnios, em sua forma mais bem lapidada. Se Nolan é obsessivo com método, ordem e complexificação, aqui ele atinge seu nirvana.
Por mais que o filme trate sobre o Projeto Manhattan, ele não é sobre a bomba nem sobre seus efeitos no mundo, na guerra e na política, mas sobre seu criador e como tudo isso é visto através dele. No tradicional estilo do diretor que segue linhas de tempo distintas, acompanhamos o início da carreira acadêmica de Oppenheimer e o desenvolvimento da bomba. Paralelamente, Oppenheimer responde em intermináveis sessões de um comité sobre suas acusações de “atividades antiamericanas”, e em ainda outra linha futura, o secretário Strauss enfrenta no Senado uma audiência que, de alguma forma, se relaciona com as demais linhas de tempo. O que é inegável é que nada impedia do filme ter sido concebido e montado em ordem cronológica, mas o que Nolan consegue com sua obsessão em complexificar coisas simples é um fascinante exercício de estilo que toma uma história que poderia ser contada de forma totalmente direta e dá a ela uma forma rebuscada, quase um enigma, que se relaciona com a complexidade do tema, que são os dilemas morais do protagonista e dos cientistas que colaboraram com ele e, mais ainda, com o enigma que era a mente de Oppenheimer.
Oppenheimer é mostrado como uma figura atormentada pelo seu legado, mas que, durante sua trajetória, parecia sempre escolher o desafio científico em detrimento de questões humanitárias. O consenso na urgência em desenvolver a bomba atômica antes dos nazistas vai se dissipando entre os cientistas após a rendição da Alemanha, mas Oppenheimer vê motivos para continuar, imaginando que a própria existência da bomba tornaria o mundo mais seguro. Sua consciência, porém, permanece bombardeada pela culpa, mas ele nunca decide por uma ação contrária, desafiadora, e vários personagens apontam que não conseguem entender no que, de fato, ele acredita. Por vezes, parece uma paralisia, outras, apenas covardia. Por fim, temos a sensação de que era um homem que não sabia lidar com o fato de que ele sempre escolhia exploração científica, o desafio, que não sabia arcar com a culpa de suas escolhas egoístas.
Nolan ilustra essa mente atormentada de diversas formas, desde apenas a expressão torturada de Cillian Murphy (num trabalho excepcional) pela morte da amante pela qual ele se culpa, ou assistindo a um documentário sobre as mortes no Japão graças à radiação dos bombardeios, até uma sequência surpreendente para o cinema tão “realista” do diretor, onde uma tensa cena de interrogatório é iluminada como se estivesse prestes a entrar em fissão nuclear. Aliás, é nesse espaço confinado do comité que o investiga que temos as cenas mais “simbólicas” do cinema de Nolan, como quando Oppenheimer se sente tão exposto pelas perguntas sobre sua amante que ele se sente nu ali, com ela ao seu colo.
Além disso, belas imagens abstratas representam os processos e fenômenos atômicos narrados pelos cientistas, numa ilustração mais lúdica do que realista, e podemos perceber, então, uma identidade visual que não só tira (pelo menos um pouco) o cinema de Nolan de sua obsessão pelo realismo, mas de fato se utiliza de processos fotográficos analógicos para criar esses dois mundos: o exterior e o dentro da mente de Oppenheimer. Nesse sentido, é verdadeiramente impressionante o quanto a aposta de Nolan nos grandes formatos analógicos, no caso o 70mm e IMAX 70, são capazes de verdadeiramente nos sugar para dentro desse mundo, junto com um sound design extraordinário. Toda a sequência do teste de Trinity é o perfeito exemplo disso.
Nolan continua em Oppenheimer com seu cinema que é grande, rebuscado além da conta, barulhento e meio opressivo, mas que aqui está em total harmonia com o tamanho do evento histórico, do dilema ético e do personagem, e é uma celebração de um tipo de cinema que cresce ao ser visto nas grandes salas. Nolan orquestra essa sinfonia gigante, que pega algo simples como um átomo e transforma em uma explosão monumental.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Direção: Christopher Nolan
Ator: Cillian Murphy
Ator coadjuvante: Robert Downey Jr.
Atriz coadjuvante: Emily Blunt
Roteiro adaptado: Christopher Nolan, baseado no livro de Kai Bird e Martin J. Sherwin
Música original: Ludwig Göransson
Fotografia: Hoyte van Hoytema
Montagem: Jennifer Lame
Design de produção: Ruth De Jong e Claire Kaufman
Som: Willie Burton, Richard King, Kevin O’Connell e Gary A. Rizzo
Maquiagem: Luisa Abel
Figurinos: Ellen Mirojnick
OPPENHEIMER (EUA, 2023)
Com: Cillian Murphy, Robert Downey Jr., Emily Blunt, Florence Pugh, Matt Damon, Kenneth Branagh, Tom Conti, Tom Jenkins, Matthew Modine, Benny Safdie, Casey Affleck e Rami Malek