Por Ricky Nobre
A carreira de M. Night Shyamalan tem um “que” de bizarra. O
Sexto Sentido (1999), seu terceiro filme que todos pensam que foi o primeiro,
foi um estrondoso sucesso e uma unanimidade de público e crítica que o tornou a
grande sensação de Hollywood na virada do milênio. Daí por diante, seguiu um
fase de sucessos que já não eram tão unânimes mas que consolidaram seu
prestígio, principalmente sua marca registrada da “virada final inesperada”. De
fato, é difícil encontrar em sua trajetória obras que, ainda de alta qualidade,
tão exatas e perfeitas como Sexto Sentido e Corpo Fechado (2000), sendo este
talvez seu mais magistral trabalho de direção. Suas obras posteriores tinham o
perfil de obras primas falhas, como o sensacional suspense de Sinais (2002) que
esbarra de falhas lógicas elementares do roteiro, ou a temática social
absolutamente genial de A Vila (2004), mas que possui cenas supostamente
aterrorizantes que não assustam nem o Cão Coragem.
Controverso, permaneceu provocando fascínio em público e
crítica até o inacreditavelmente ruim Fim dos Tempos (2008), um absoluto
fracasso artístico e comercial. Daí foi ladeira abaixo, com O Último Mestre do
Ar (2010), adaptação da famosa animação Avatar, que é até bastante decente na
primeira metade (para quem não conhece a série), mas que se torna um desastre
da metade em diante, e também Depois da Terra (2013), talvez não tão ruim
quanto sua fama, mas absolutamente medíocre. Chegou um ponto em que se tornou
um mistério como os estúdios ainda apostavam em seus projetos em frente à sequência
de fracassos. Mas foi o próprio Shyamalan que desistiu de Hollywood primeiro,
dizendo-se farto da interferência dos produtores em seu últimos trabalhos. Com um
baixíssimo orçamento, voltou ao sucesso de público com um suspense estilo found
footage com A Visita (2015), que custou 5 milhões de dólares e rendeu 98
milhões. Em seguida, Shyamalan se voltou a um projeto que era muito mais a sua
cara. Fragmentado (2016) trazia um deslumbrante James McAvoy como um psicopata
de múltiplas personalidades e o desespero de três meninas tentando fugir de seu
cativeiro, enquanto conhecemos detalhes de sua história e dos indivíduos dentro
dele em seus encontros com sua psiquiatra. Custou meros 9 milhões a arrecadou 278
milhões. Aos olhos de todos, Shyamalan estava de volta.
Rapidamente, Shyamalan tratou de anunciar seu filme seguinte.
Seguindo a última cena do filme, em que descobrimos que tudo ocorre no mesmo
universo do filme Corpo Fechado, ele releva que faria um crossover entre os
filmes, no capítulo final de uma trilogia que, de fato, ninguém sabia que
existia. Seu prestígio estava renovado a tal ponto que ele conseguiu rigorosamente sem esforço algum convencer a Disney e a Universal, cada uma detentora dos direitos de um filme, a juntarem as forças numa parceria inédita. Vidro chega carregado de expectativa, uma vez que seria o encontro de
dois de seus melhores filmes. Como é de seu estilo, Shyamalan subverte expectativas
logo de início, ao apressar o encontro entre o herói Dunn (Bruce Willis) e o
vilão Kevin (McAvoy), para logo em seguida trancafiá-los numa instituição psiquiátrica
sob os cuidados da Dra. Staple (Sarah Paulson), que acredita que eles sofram,
junto com Elijah (Samuel L. Jackson), preso ali há 19 anos, de uma condição
psiquiátrica que os fazem acreditar ter superpoderes.
Vidro segue, a exemplo de Corpo Fechado, dissertando sobre
os rudimentos das HQs de heróis, obsessão de Ellijah, que pretende se
aproveitar da força bruta da Besta presente em Kevin para confrontar Dunn. Diversos
aspectos do texto de Shyamalan são fascinantes, como a forma com que cada um
dos três aprisionados tem um familiar que tenta agir em favor deles. Além dos
óbvios (a mãe de Elijah e o filho de Dunn), a grande surpresa é Casey, a
sobrevivente em Fragmentado que nutre imensa simpatia por Kevin, não apenas por
ter sido poupada, mas pelo motivo dessa decisão de Kevin: são ambos vítimas da
dor, sofrimento e abuso. A forma como os dois interagem ao longo do filme
mostra grande sensibilidade de Shyamalan e é um de seus pontos altos.
Igualmente instigantes são os esforços da Dra. Staple em
convencer os três personagens de que seus superpoderes são uma ilusão, uma
junção de pequenas coincidências com os traumas que sofreram em determinados
momentos de suas vidas. Aqui, ele sugere um embate entre fé e ceticismo, mas
também entre a arte dos quadrinhos e a sisudez engessada de quem a considera
uma arte menor. A dúvida sobre seus argumentos, porém, é plantada com sucesso
não só nos personagens mas também no público, e cabe justamente aos entes
queridos (mãe, filho e vítima) manter viva a fé nos seus.
Shyamalan, próximo ao fim, sente-se novamente à vontade em
construir suas viradas de trama, e aqui pode-se até considerar uma certa “overdose”,
com a virada da virada da virada. Essas revelações da trama, embora de
qualidade, podem trazer um sabor insosso ao deixar o público órfão de um clímax
prometido mas não concretizado. Mas isso é Shyamalan subvertendo expectativas,
e para tirar o melhor da experiência é preciso embarcar no seu estilo. Numa das
surpresas finais, porém, um determinado fato se mostra excessivamente bruto e
frio, e provavelmente é a pior coisa do filme, principalmente em comparação com
a forma com que outros personagens são tratados. Ao fim, percebemos que o filme
não se chama Vidro a toa: é de fato o filme do Mr. Glass, assim como o primeiro
foi de Dunn e o segundo de Kevin. O preço, porém, é alto. Relações e sentimentos preciosos entre os personagens são forjados e redenções são alcançadas e tudo parece ir por terra de forma violenta e impiedosa, para, no momento final, tudo mostrar-se como necessário para um objetivo mais elevado. Pode ser belo para alguns e descer quadrado para outros.
Vidro está sendo injustamente massacrado pela crítica
internacional. Ainda que tenha alguns problemas, ele consolida um Shyamalan
novamente à vontade com seu cinema que, reiterando, nunca foi de fato uma
unanimidade após Sexto Sentido. Apesar de alguns momentos brilhantes, em sua
totalidade ele fica abaixo dos dois anteriores, mas não de forma vergonhosa,
pelo contrário. É possível que parte do público realmente deteste os rumos que Shyamalan
escolheu para a história, e isso é bem compreensível. Mas está longe da fase
nefasta iniciada com Fim dos Tempos. Esperamos que Shyamalan tenha voltado de
fato, e pra ficar.
COTAÇÃO:
VIDRO
(Glass, 2019)
Com: Bruce
Willis, Samuel L. Jackson, James McAvoy, Sarah Paulson, Anya Taylor-Joy, Spencer
Treat Clark e Charlayne Woodard.
Roteiro e direção: M. Night Shyamalan
Fotografia: Mike Gioulakis
Montagem: Luke Ciarrocchi e Blu Murray
Música: West Dylan Thordson