Por Ricky Nobre
Com o enorme sucesso da franquia cinematográfica de Jogos Vorazes, era inevitável que a prequela escrita pela autora Suzanne Collins chegasse às telas. A partir de um ponto de vista inesperado, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes se concentra na juventude do tirânico Presidente Snow, numa época em que ele luta, através dos estudos, para ganhar uma bolsa que pode salvar sua família que, de origem rica, encontra-se falida. Ele performa os clichês do elitismo para manter sua imagem junto aos colegas, mas simpatiza mais com o amigo que é o único a ser mais vocalmente contra os jogos vorazes e à opressão do regime como um todo. Quando sua chance à bolsa fica atrelada a servir de mentor à participante Lucy do Distrito 12 nos próximos jogos, ele passa ficar entre sentimentos conflitantes que incluem a urgência em salvar a família da ruína, seus sentimentos por Lucy e sua opinião pessoal quanto aos jogos e ao regime, esses conflitantes por si só.
É curiosa a forma como os jogos e a elite da Capital são retratados nesse período que se passa 60 anos antes dos filmes anteriores. Em seu décimo ano, os jogos estão em declínio pelo crescente desinteresse da audiência, onde Snow vê a oportunidade de sugerir ideias que tornem os jogos mais atraentes para o público. Em vez de uma mera demonstração de poder, ele imagina os jogos como um evento midiático que faça os espectadores se identificarem com os participantes, escolherem seus preferidos e torcerem, iniciando o perfil no estilo de reality show e “sociedade do espetáculo” que irá moldando os jogos como conhecemos na franquia. Esse desenvolvimento ao longo do filme dá margem a momentos muito interessantes, que contrariam um pouco a noção da absoluta harmonia entre esses dois aspectos da dominação através da mídia, sendo eles a imposição da ordem dominante e o espetáculo popularesco que a corrobora. Em momentos específicos, o espetáculo torna-se mais importante do que a demonstração de força, caso isso se traduza em lucro, da mesma forma que a simpatia pelos participantes pode, ocasionalmente (como já visto na franquia antes) gerar ligeiros e momentâneos recuos no poder, que podem parecer derrotas da elite, mas são meras concessões estratégicas.
A personagem Lucy inevitavelmente rouba um pouco do protagonismo de Snow, principalmente pelo carisma que Rachel Zegler empresta ao personagem, sustentando com perfeição não apenas sua personalidade desafiadora, mas também os números musicais que, admita-se, arriscavam-se muito de caírem num estranhamento meio bizarro, dando ares de musical a uma distopia futurista. A dinâmica dos jogos assume uma abordagem totalmente diferente por serem realizados nos limites de uma arena, longe da dimensão expansiva da franquia. Existe, portanto, uma maior exploração da claustrofobia das lutas e, principalmente, das perseguições.
O diretor Francis Lawrence, que assumiu a franquia a partir do segundo filme, arrependeu-se de ter dividido o terceiro livro em duas partes, e quis evitar isso neste filme. Desta forma, dos três atos (explicitamente nomeados com títulos próprios), o terceiro é o mais “alienígena”, com uma ambientação, ritmo e trama próprios, quase um segundo filme, e não seria absurdo imaginar que em algum momento foi cogitado dividir Cantiga também em duas produções. Felizmente, optaram por um filme mais longo, de 157 minutos, mas que dá conta da trajetória do personagem, ainda que a brusca mudança seja, de alguma forma, sentida.
O que talvez se constitua num problema para o filme seja a forma como Snow se desenvolve de um jovem estudante tentando reascender à elite a uma personalidade fria, capaz das crueldades durante seus tempos de governo no futuro. Pode ser nebuloso perceber se as mudanças são apenas sutis ou se são, de fato, insuficientemente desenvolvidas. A maior parte do que torna Snow o que ele será no futuro se desenrola justamente no terceiro ato e, por vezes, pode parecer mais uma sequência de decisões atrapalhadas do que necessariamente de uma pessoa cruel e egoísta. Simbolicamente, é bem interessante a forma como ele parece viver entre o espírito rebelde e livre de Lucy e a figura diabólica da Dra Gaul (Viola Davis, despudoradamente superlativa), como dois caminhos a seguir.
Lawrence demonstra porque permanece do comando da franquia desde o segundo filme, criando sempre um visual atraente, tendo um ótimo domínio da ação, aqui com o desafio adicional dos jogos se passarem nas ruínas de uma arena, e não no extenso campo dos demais filmes. O design permanece totalmente entregue ao conceito de fantasia e, neste período de Panem, todo o visual retrô se baseia nos anos 1950, com gigantescos telões de tubo arredondados e “videofones” que parecem saídos de alguma HQ steampunk. Esse design que desafia a lógica “realista”, principalmente de uma continuidade do desenvolvimento tecnológico, mantém o filme no domino da fantasia e o liberta de amarras desnecessárias.
Por fim, esse quarto filme cai, inevitavelmente, na mesma armadilha dos demais da franquia quanto à relação entre os personagens atirados à arena dos Jogos. Ao separar os jogadores em basicamente dois “tipos”, os que perseguem e os que se escondem, acaba criando um maniqueísmo entre os jogadores “bons” e “maus”, os que matam e os que se defendem, induzindo o público à mesma lógica de escolher seus heróis para torcerem, que é justamente o cerne da estratégia dominadora da capital, que é dividir as classes “inferiores” e as fazerem matar-se entre si. Em algum momento, um personagem diz algo como ser preciso colocar esses “selvagens”, esses “terroristas” em seu devido lugar, numa desumanização assustadoramente atual. Nações distópicas como Panem ou Gilead estão apenas a algumas normalizações de horrores de distância.
COTAÇÃO:
JOGOS VORAZES: A CANTIGA DOS PÁSSAROS E DAS SERPENTES (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds & Snakes, EUA – 2023)
Com: Tom Blyth, Rachel Zegler, Hunter Schafer, Josh Andrés Rivera, Peter Dinklage e Viola Davis
Direção: Francis Lawrence
Roteiro: Michael Lesslie e Michael Arndt, baseado no livro de Suzanne Collins
Fotografia: Jo Willems
Montagem: Mark Yoshikawa
Música: James Newton Howard
Design de produção: Uli Hanisch