domingo, 19 de novembro de 2023

JOGOS VORAZES: A CANTIGA DOS PÁSSAROS E DAS SERPENTES

 Por Ricky Nobre

Com o enorme sucesso da franquia cinematográfica de Jogos Vorazes, era inevitável que a prequela escrita pela autora Suzanne Collins chegasse às telas. A partir de um ponto de vista inesperado, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes se concentra na juventude do tirânico Presidente Snow, numa época em que ele luta, através dos estudos, para ganhar uma bolsa que pode salvar sua família que, de origem rica, encontra-se falida. Ele performa os clichês do elitismo para manter sua imagem junto aos colegas, mas simpatiza mais com o amigo que é o único a ser mais vocalmente contra os jogos vorazes e à opressão do regime como um todo. Quando sua chance à bolsa fica atrelada a servir de mentor à participante Lucy do Distrito 12 nos próximos jogos, ele passa ficar entre sentimentos conflitantes que incluem a urgência em salvar a família da ruína, seus sentimentos por Lucy e sua opinião pessoal quanto aos jogos e ao regime, esses conflitantes por si só.

 

É curiosa a forma como os jogos e a elite da Capital são retratados nesse período que se passa 60 anos antes dos filmes anteriores. Em seu décimo ano, os jogos estão em declínio pelo crescente desinteresse da audiência, onde Snow vê a oportunidade de sugerir ideias que tornem os jogos mais atraentes para o público. Em vez de uma mera demonstração de poder, ele imagina os jogos como um evento midiático que faça os espectadores se identificarem com os participantes, escolherem seus preferidos e torcerem, iniciando o perfil no estilo de reality show e “sociedade do espetáculo” que irá moldando os jogos como conhecemos na franquia. Esse desenvolvimento ao longo do filme dá margem a momentos muito interessantes, que contrariam um pouco a noção da absoluta harmonia entre esses dois aspectos da dominação através da mídia, sendo eles a imposição da ordem dominante e o espetáculo popularesco que a corrobora. Em momentos específicos, o espetáculo torna-se mais importante do que a demonstração de força, caso isso se traduza em lucro, da mesma forma que a simpatia pelos participantes pode, ocasionalmente (como já visto na franquia antes) gerar ligeiros e momentâneos recuos no poder, que podem parecer derrotas da elite, mas são meras concessões estratégicas.

A personagem Lucy inevitavelmente rouba um pouco do protagonismo de Snow, principalmente pelo carisma que Rachel Zegler empresta ao personagem, sustentando com perfeição não apenas sua personalidade desafiadora, mas também os números musicais que, admita-se, arriscavam-se muito de caírem num estranhamento meio bizarro, dando ares de musical a uma distopia futurista. A dinâmica dos jogos assume uma abordagem totalmente diferente por serem realizados nos limites de uma arena, longe da dimensão expansiva da franquia. Existe, portanto, uma maior exploração da claustrofobia das lutas e, principalmente, das perseguições. 

 

O diretor Francis Lawrence, que assumiu a franquia a partir do segundo filme, arrependeu-se de ter dividido o terceiro livro em duas partes, e quis evitar isso neste filme. Desta forma, dos três atos (explicitamente nomeados com títulos próprios), o terceiro é o mais “alienígena”, com uma ambientação, ritmo e trama próprios, quase um segundo filme, e não seria absurdo imaginar que em algum momento foi cogitado dividir Cantiga também em duas produções. Felizmente, optaram por um filme mais longo, de 157 minutos, mas que dá conta da trajetória do personagem, ainda que a brusca mudança seja, de alguma forma, sentida. 

 

O que talvez se constitua num problema para o filme seja a forma como Snow se desenvolve de um jovem estudante tentando reascender à elite a uma personalidade fria, capaz das crueldades durante seus tempos de governo no futuro. Pode ser nebuloso perceber se as mudanças são apenas sutis ou se são, de fato, insuficientemente desenvolvidas. A maior parte do que torna Snow o que ele será no futuro se desenrola justamente no terceiro ato e, por vezes, pode parecer mais uma sequência de decisões atrapalhadas do que necessariamente de uma pessoa cruel e egoísta. Simbolicamente, é bem interessante a forma como ele parece viver entre o espírito rebelde e livre de Lucy e a figura diabólica da Dra Gaul (Viola Davis, despudoradamente superlativa), como dois caminhos a seguir.

 

Lawrence demonstra porque permanece do comando da franquia desde o segundo filme, criando sempre um visual atraente, tendo um ótimo domínio da ação, aqui com o desafio adicional dos jogos se passarem nas ruínas de uma arena, e não no extenso campo dos demais filmes. O design permanece totalmente entregue ao conceito de fantasia e, neste período de Panem, todo o visual retrô se baseia nos anos 1950, com gigantescos telões de tubo arredondados e “videofones” que parecem saídos de alguma HQ steampunk. Esse design que desafia a lógica “realista”, principalmente de uma continuidade do desenvolvimento tecnológico, mantém o filme no domino da fantasia e o liberta de amarras desnecessárias. 

 

Por fim, esse quarto filme cai, inevitavelmente, na mesma armadilha dos demais da franquia quanto à relação entre os personagens atirados à arena dos Jogos. Ao separar os jogadores em basicamente dois “tipos”, os que perseguem e os que se escondem, acaba criando um maniqueísmo entre os jogadores “bons” e “maus”, os que matam e os que se defendem, induzindo o público à mesma lógica de escolher seus heróis para torcerem, que é justamente o cerne da estratégia dominadora da capital, que é dividir as classes “inferiores” e as fazerem matar-se entre si. Em algum momento, um personagem diz algo como ser preciso colocar esses “selvagens”, esses “terroristas” em seu devido lugar, numa desumanização assustadoramente atual. Nações distópicas como Panem ou Gilead estão apenas a algumas normalizações de horrores de distância.

COTAÇÃO:


 


JOGOS VORAZES: A CANTIGA DOS PÁSSAROS E DAS SERPENTES (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds & Snakes, EUA – 2023)

Com: Tom Blyth, Rachel Zegler, Hunter Schafer, Josh Andrés Rivera, Peter Dinklage e Viola Davis

Direção: Francis Lawrence

Roteiro: Michael Lesslie e Michael Arndt, baseado no livro de Suzanne Collins

Fotografia: Jo Willems

Montagem: Mark Yoshikawa

Música: James Newton Howard

Design de produção: Uli Hanisch

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

ALCATEIA NO FESTIVAL DO RIO 2023: DIA 15/10

FILME 19: INSHALLAH UM MENINO


É sempre um desafio para cineastas de países de cultura islâmica falarem sobre a condição feminina, mesmo um país menos repressor como a Jordânia. O desafio da protagonista de Inshalah um Menino é transitar através de todas as barreiras impostas às mulheres que, se por vezes não são legais, são culturais. A maternidade de Nawal é o centro de sua luta, seja no perigo de perder a guarda da filha que tem, a expectativa social em vir a ser mãe novamente e, especificamente, de um menino, seu direito à propriedade atrelada à maternidade, e seu papel na escolha de não maternidade de outra mulher.

 

O diretor Amjad Al Rasheed realiza um filme emocionalmente aberto, onde temos contato íntimo com os sentimentos de Nawal, que precisa lidar com o abandono que é ser uma viúva de um marido que não a amparou legalmente, deixando-a à mercê de parentes dele. Al Rasheed não se acanha em deixar um certo humor e leveza tomar o filme em alguns momentos, como um alívio ao peso emocional vivido por Nawal. É também curiosa a forma como lida com a realidade das opções às quais a protagonista dispõe: se por um lado ela luta ferozmente pelo que tem direito, com todos os métodos que consegue dispor, por outro existe um limite, que só pode ser transposto por algo semelhante a uma intervenção divina, ou um milagre, sendo sua luta também um exercício de fé.

COTAÇÂO:


 

INSHALLAH UM MENINO (Inshallah Walad – 2023)

Com: Mouna Hawa, Hitham Omari, Yumna Marwan, Salwa Nakkara, Mohammed Al Jizawi, Eslam Al-Awadi e Celina Rabab'a

Direção: Amjad Al Rasheed

Roteiro: Amjad Al Rasheed, Delphine Agut e Rula Nasser

Fotografia: Kanamé Onoyama

Montagem: Ahmed Hafez

Música: Andrew Lancaster e Jerry Lane

 

FILME 20: UM FARDO

 

Se Inshalah Um Menino oferecia a possibilidade de alguma leveza na discussão sobre realidade feminina na cultura islâmica, em Um Fardo a realidade é muito mais dura e desoladora. Num Yemen tomado pela guerra civil não há água corrente, há constantes falhas de energia, salários atrasam por meses e não há segurança nas ruas com diversos grupos armados. Nessa realidade, Ahmed, pai de três, não quer que a esposa Isra'a leve a quarta gravidez adiante, tentando convencer sua cunhada obstetra a realizar um aborto clandestino, baseado na interpretação do Alcorão de que não seria pecado até 120 dias de gestação.

 

Entre a pressão do marido e a recusa da irmã altamente religiosa, Isra'a vive a angústia de quem não quer de fato abortar mas não vê possibilidade de crescimento da família em um país miserável e abandonado. A câmera do diretor Amr Gamal nunca se aproxima de seus personagens para além do plano médio, como que numa tentativa de não individualizar um drama que é coletivo e nacional, ainda que as emoções e dilemas dos personagens sejam intensos. Um Fardo disseca como a interrupção da gravidez é um obstáculo não apenas legal em um pais autoritário e teocrata, mas também moral, cujas vias passam por fraudes, corrupção, mas, também, pela violação de consciências numa cultura onde a religiosidade permeia toda a existência dos indivíduos. Uma batalha onde se perde até quando se ganha.

COTAÇÂO:


UM FARDO (Al Murhaqoon – 2023)

Com: Khaled Hamdan, Abeer Mohammed, Samah Alamrani e Awsam Abdulrahman

Direção: Amr Gamal

Roteiro: Amr Gamal e Mazen Refaat

Fotografia: Mrinal Desai

Montagem: Heba Othman

Música: Ming-chang Chen           

ALCATEIA NO FESTIVAL DO RIO 2023: DIA 14/10

FILME 17: HERE

Do bruto, pesado, artificial ao delicado, minúsculo, natural. É a jornada do protagonista Stefan que, de férias da construção civil, pretende visitar a família na Romênia, de onde ele tem dúvidas se pretende voltar, pois não parece satisfeito com sua vida na Bélgica. Paralelamente, Shuxiu, uma botânica de ascendência chinesa, estuda musgos para seu doutorado. E é no encontro dos dois que o filme de fato acontece.

 

O filme celebra o "aqui" do título, seja no dividir de uma sopa com um amigo, seja no trabalho solitário do estudo de plantas, seja na inesperada divisão desse conhecimento com um estranho. A montagem, por vezes, se detém nesses momentos, onde só há a cidade, a rua e sua paisagem urbana, ou entre a vegetação, as pedras, a chuva, duas pessoas que param uma em frente à outra. Here é de uma simplicidade e delicadeza adoráveis, e a expressão da atriz no último take é uma preciosidade.

COTAÇÃO:

 

HERE (Bélgica – 2023)

Com: Stefan Gota, Liyo Gong e Teodor Corban

Direção e roteiro: Bas Devos

Fotografia: Grimm Vandekerckhove

Montagem: Dieter Diependaele

Música: Brecht Ameel

 

FILME 18: SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO

Todd Heynes olha para o passado de forma menos literal do que em seus filmes anteriores, como Longe do Paraíso, Velvet Goldmine e Carol, mas para uma versão atualizada e meio satirizada de um melodrama sensacionalista "baseado em fatos reais". A história de uma atriz que faz seu estudo de personagem diretamente com sua inspiração serve de base para uma obra que acaba não indo tão fundo nem na sátira, nem na sordidez do tema.

 

O embate entre as excelentes Portman e Moore é o grande trunfo de Heynes, que não esconde que não está, de forma alguma, conduzindo o filme com uma seriedade sisuda, o que fica muito claro na forma como Marcelo Zarvos adapta a música de Michel Legrand originalmente composta para o filme O Mensageiro (1971) que, não coincidentemente, também tratava do relacionamento de um garoto de 13 anos com uma adulta, evidenciando a dramaticidade exacerbada da trilha.

 

Heynes balança nessa corda bamba entre seu olhar satírico ao sensacionalismo de tabloide e a extrema delicadeza do tema, onde o maior desafio é essa discussão sobre a normalidade de subúrbio de um casal composto por abusadora e abusado. A cena onde a personagem Gracie se mostra completamente incapaz de enxergar sua responsabilidade sobre seus atos a partir da confrontação do marido é o mais perto que Heynes chega do desenvolver esse tema em específico. O principal foco é em como a atriz Elizabeth vai se enfiando na vida da família e, especificamente, na de Gracie e as mudanças que o processo causa nas duas. Talvez se Heynes tivesse menos medo do ridículo do melodrama e sentisse menos necessidade de satirizá-lo, talvez conseguisse um maior engajamento do espectador a partir de algo mais honestamente despudorado.

COTAÇÃO:


SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (May December – 2023)

Com: Natalie Portman, Julianne Moore, Charles Melton, Chris Tenzis e Gabriel Chung

Direção: Todd Haynes

Roteiro: Samy Burch

Fotografia: Christopher Blauvelt

Montagem: Affonso Gonçalves

Música original e adaptação: Marcelo Zarvos