terça-feira, 29 de agosto de 2023

Uma reflexão sobre a dublagem no cinema

 Por Ricky Nobre

A treta da semana no Twitter cinéfilo foi um post da crítica de cinema Fabiana Lima sobre sua dificuldade em conseguir sessões legendadas nos cinemas da cidade onde mora, que é São Luís, no Maranhão. Abaixo, reproduzo os prints:

Da perspectiva de um cinéfilo mais velho (faço 52 essa semana): esse é um movimento bastante inesperado pra mim. Na minha época (que frase de velho...) se não fosse filme infantil, cinema era legendado. Já a TV era sempre dublada. Eu, e todos que conheci, convivemos perfeitamente bem com esse arranjo. Gravei muito filme dublado em VHS da TV no início da adolescência, para rever muitas vezes. Quando surgiu a febre das locadoras, os filmes em VHS eram invariavelmente legendados, fora os infantis. A TV a cabo surgiu no início dos anos 90, e com ela uma avalanche de opções legendadas. Com o DVD no final da década, a possibilidade de dublado e legendado na mesma mídia inaugurou uma nova era com opções para todos. Mas os cinemas permaneciam legendados, embora seja nessa época que começaram as opções de legenda em filmes considerados infantis, sendo Alladin (1992) o primeiro a ser exibido assim no cinema. Com o tempo, esse segmento de animações e filmes infanto-juvenis passaram a ter cerca de 70% dublado e 30% legendado.

Mas algo mudou recentemente. Nos últimos 10 anos começaram as opções de filmes não infantis dublados no cinema. Nada mais justo. Mas em pouco tempo, cinemas de determinadas regiões da cidade (só posso falar pelo Rio de Janeiro, onde moro) passaram a abolir sessões legendadas. Da periferia do Rio, os dublados rumaram para a Tijuca, Barra e zona Sul. Atualmente, nessas regiões predomina um equilíbrio, geralmente 50/50%, podendo ser 60/40% pra um lado ou pra outro. No caso das animações, o legendado tornou-se uma raridade em qualquer lugar. O Gato de Botas 2 simplesmente não teve distribuição de cópias legendadas. Recentemente, pela postagem da Fabiana Lima e as respostas que recebeu, percebo que fora do eixo Rio/São Paulo os legendados estão desaparecendo, relegados a sessões tarde da noite, muitas vezes em caras salas VIP, que no Rio chegam a custar quase 90 reais por cabeça no fim de semana.

 

Minha surpresa é que eu sempre imaginei que essa tendência viria de uma maior popularização da sala de cinema. O público acostumado com dublagem na TV não iria querer saber de legendas ao ter mais aceso às salas, através de um processo de barateamento dos ingressos. Mas os ingressos continuam caros e, mesmo assim, o dublado se expande nas salas. Na verdade, quando os preços dos cinemas saíram de controle no final da década de 2000, vínhamos de uma longa tradição de cinema ser uma diversão popular, barata. Minha avó materna vivia no cinema, veio com 12 anos sozinha do interior de Minas pra trabalhar em casa de família. Gostava de Mazzaropi e das chanchadas da Atlântida. Minha avó paterna veio adolescente de Juazeiro do Norte, vendia doce na rua, conjuntos de cama e mesa na favela. Ela amava Hollywood, especialmente Tyrone Powell, Gregory Peck, Janet Gaynor e as operetas com Nelson Eddy e Janet McDonald. Meu pai largou os estudos pra poder trabalhar. Tinha um caderno onde anotava cada filme que viu, em qual cinema e qual sua nota pro filme. Eu me acostumei a ir ao cinema de uma ou duas vezes por semana, às vezes três, com dinheiro de mesada! Ia muito com meus pais também. Hoje os preços dos ingressos tornam isso impossível. Mas mesmo com esses preços o dublado domina as salas. 

É sobre classe, já que nas periferias o legendado praticamente inexiste, mas também não é. É algo mais que eu sinceramente não sei. Talvez as pessoas antigamente compartimentalizavam mais: TV é dublado, cinema é legendado. Funcionava assim e as pessoas meio que aceitavam. Talvez com as opções dubladas do DVD e a TV por assinatura que passou também a ter as duas opções, e o streaming, o dublado passou a ser mais assistido, ao ponto de muita gente simplesmente não assistir mais legendado. E querem a mesma coisa no cinema. A irônica consequência é que está deixando de ser uma opção justamente nas salas de cinema que passaram décadas oferecendo só legendado. Assistir filme com som original no cinema está cada vez mais difícil. Na maioria das cidades do país, já é algo impossível. 

Para mim, a experiência do cinema envolve assistir a um filme nas condições ideais: a melhor imagem, o melhor som, as condições mais próximas da exibição imaginada pelos artistas que criaram os filmes. Obviamente, as interpretações dos atores originais e como elas compõem o som do filme é parte essencial disso. A forma como o post da Fabi foi recebido por muitos resume bem essa rede social. "Precisamos de mais sessões legendadas em horários acessíveis" foi entendido como "dublagem não deveria existir". Nada de novo no Twitter. 


Investir numa boa tela e num bom som doméstico parece ser cada vez mais a solução. Mas tem dois problemas:  

1. É algo ainda mais elitista, para poucos.  

2. Não é a mesma coisa, mesmo com um bom sistema. 

O que me preocupa é que a experiência de ver filmes em salas de cinema esteve ameaçada por um bom tempo pelos altíssimos preços. Depois pelo choque pós pandemia. Agora pelo desaparecimento do som original em filmes estrangeiros. Não só para quem gosta, mas para quem escreve sobre cinema, perder as salas é uma espécie de tragédia. Não vejo mudanças positivas adiante. A não ser, é claro, o fortalecimento do cinema nacional, que é em português por natureza. Mas isso é pra outro texto...

ADENDO: Tenho lido histórias de terror de pessoas falando alto, usando o celular durante o filme inteiro, e outras coisas que eu não tenho visto nada parecido quando tenho ido ao cinema sem ser cabine de imprensa. Depois descobri que eram geralmente em sessões dubladas. Minha hipótese é a de que as pessoas estão levando a experiência doméstica completa para o cinema, não apenas a dublagem, mas o comportamento de quem está na sala de casa, e não num ambiente coletivo. E temo que isso também seja irreversível.

 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A CHAMADA

Por Ricky Nobre

É muito curioso como Liam Neeson saiu de dramas como A Lista de Schindler, Rob Roy e Nell para herói de ação, a partir do grande sucesso de Busca Implacável. Basta observar em sua filmografia recente a quantidade de cartazes onde ele aparece empunhando uma arma, do 38 ao fuzil. A Chamada chega com uma proposta que poderia ser uma quebra interessante desse padrão. Ao voltar à figura do pai que faz tudo para proteger a família, que tanto sucesso fez na trilogia já mencionada, o novo filme de Nimród Antal muda o perfil do protagonista. Apesar da primeira cena onde ele aparece treinando box em casa, sugerindo de antemão um preparo dele para luta corporal, o personagem de Neeson aqui é um corretor de ações sem aptidão alguma para violência. Com seu casal de filhos no carro, ele sofre uma espécie de sequestro remoto, onde uma bomba sob o assento seria acionada caso ele saísse do veículo, sendo obrigado, a partir daí, a seguir as ordens de uma voz misteriosa ao telefone. 

 

A Chamada já é o terceiro remake do filme espanhol El Desconocido (2015), seguido do alemão Direção Explosiva (2018) e do sul coreano Ligação Explosiva (2021). Nesta versão, Antal recicla situações de filmes como Por Um Fio e Celular dentro dos limites de um suspense de confinamento. O protagonista é apresentado como um homem que mente ou omite a verdade com naturalidade, seja no trabalho ou na vida pessoal, e isso é apresentado como um tema que permeia o filme. Essas ideias abrem espaço para que o roteiro desenvolva situações de suspense e de drama familiar bastante interessantes. Infelizmente, o filme perde todas as oportunidades de fazê-lo. O argumento, ou seja, história básica e sequência de acontecimentos, é razoavelmente interessante. Porém, a forma como o roteiro as desenvolve, seja nos diálogos ou no detalhamento da história, é, nos melhores momentos, medíocre. 

 

Antal filma tudo de forma apenas correta, quase nada além do burocrático, e quando precisa elaborar uma cena tensa e essencial, ela não resiste ao ser reelaborada mais adiante (quando, perto do fim, um personagem explica como fez uma coisa parecer outra é quase impossível segurar o riso). Nisso, Neeson contribui enormemente no esforço em manter a atenção do público ao arrancar cada fiapo de substância de seu personagem que se esboça no roteiro. A forma como o protagonista mente não apenas em proveito próprio, mas também para atenuar o máximo possível qualquer situação desagradável, se funde com sua angústia em ter que realizar tarefas ordenadas pelo sequestrador, angústia esta que, estampada constantemente na expressão do ator, é a única conexão sólida que o espectador consegue ter com o filme.

 

Acaba residindo mesmo no elenco a responsabilidade de manter a atenção e a conexão do público com o filme. Mas a inabilidade do roteiro em tornar algumas situações críveis e a incapacidade da direção em elaborar essas situações de forma cinematograficamente empolgante, onde a construção das cenas torne a emoção do momento mais interessante do que a lógica, selam o destino do filme, tornando-o apenas mais um suspense corriqueiro, burocrático e esquecível. Nada além de mais uma máquina pagadora de boletos do Liam Neeson.


 COTAÇÃO:

 


A CHAMADA (Retribution, EUA/França/Alemanha/Espanha – 2023)

Com: Liam Neeson, Noma Dumezweni, Jack Champion, Embeth Davidtz, Lilly Aspell e Matthew Modine

Direção: Nimród Antal

Roteiro: Alberto Marini, baseado no roteiro de El Desconocido" de Christopher Salmanpour

Direção de fotografia: Flavio Martínez Labiano

Montagem: Steve Mirkovich

Música: Harry Gregson-Williams

Design de produção: David Scheunemann            

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

BESOURO AZUL

 Por Ricky Nobre

E a DC volta aos cinemas em 2023 com mais um filme pra cumprir tabela. Uma vez que o novo "dono da bola" James Gunn anunciou um reboot (pero no mucho) do universo, filmes que já haviam iniciado suas produções antes disso ficaram em situação complicada. Por mais que tenha sido mexido e remexido ao longo de anos, The Flash ficou como o filme que encerrou de vez o DCEU. O que vai ser de Aquaman 2, a ser lançado em novembro, só Deus sabe. No meio, ficou Besouro Azul, que Gunn resolveu adotar para sua nova linha de tempo que, podemos dizer, estreia agora.

 

Porém, pela forma como foi escrito, Besouro Azul funciona de forma tão independente que pode se encaixar em qualquer linha de tempo, dependendo do head canon de cada um. E esta parece ser uma qualidade em um momento em que o espectador comum e casual aparenta já estar farto de filmes do gênero onde ele se sente obrigado a assistir a filmes anteriores para compreender o que acontece. Ainda assim, é curioso perceber que o gênero já está tão viciado em ter um "legado" que, mesmo sendo um filme de origem sem nenhum outro anterior que o influencie, o próprio roteiro cria um passado para si, onde o novo herói Jaime Reyes segue, mesmo que inicialmente a contragosto, os passos do Besouro Azul original, que desapareceu 15 anos antes, e que é pai da mocinha Jenny.

 

O grande trunfo de Besouro Azul e sua maior qualidade é sua extrema simpatia. Existe um enorme cuidado com todo o casting da família Reyes, que possui uma dinâmica e entrosamento cativantes e genuinamente engraçado na maioria das vezes. E nessa dinâmica, o filme trabalha a identidade latino-americana, que aqui é verdadeiramente protagonista. De referências musicais a citações à cultura pop, mais especificamente a mexicana, o filme do porto-riquenho Angel Manuel Soto, deixa claro que está dialogando diretamente com essa parcela do público, estabelecendo uma identidade muito bem marcada. Essa latinidade se arrisca, por vezes, principalmente em momentos cômicos, a cair na caricatura da "família latina maluca", e isso provavelmente será percebido de formas diversas pelo público. Além disso, o casal formado por Xolo Maridueña e Bruna Marquezine sugere uma química entre eles que não é tão bem explorada quanto poderia, mas com a possibilidade de se desenvolver muito na eventualidade de uma continuação.          

 

Se o filme acerta tanto nesses aspectos, ele segue razoavelmente correto nos demais, porém é tudo bem genérico, bem padrão. O desespero do protagonista dentro de uma armadura a qual não controla (que talvez se estenda um pouco demais dentro da trama), o rastro de destruição que deixa, a raiva, a aceitação, tudo dentro da cartilha. Onde ele falha terrivelmente é com os vilões, tão genéricos que parecem terem sido escritos por AI. Se Ellen Mirren foi tristemente desperdiçada em Shazam 2, aqui foi a vez de Susan Sarandon, que acaba fazendo tudo meio no automático diante de um texto quase tão ruim quanto. Carapax tem grande potencial, mas é só um brucutu quase sem falas que o filme resolve desenvolver nos últimos 15 minutos, mas apenas porque o protagonista precisa disso.

 

Em sua apresentação mais formal, Besouro Azul segue o padrão da maior parte do DCEU, recuperando sua estética mais apurada e efeitos CGI muito mais bem acabados. Soto, porém, adiciona mais algumas pinceladas de latinidade, como alguns movimentos claramente inspirados nas lutas livres mexicanas, principalmente no último grande embate. Porém talvez a mais interessante seja como Soto permite diversos exageros dramáticos por parte dos atores, que a câmera e a montagem acompanham e completam, em momentos mais trágicos e emocionais, arriscando-se a ser percebido como excessivo ou cafona, porém dialogando diretamente com o melodrama mexicano em específico, e no latino-americano como um todo. Além disso, apesar do núcleo de personagens principal ser mexicano, alguns outros personagens de outros países da América Latina reforçam, em alguns momentos específicos, a ideia de uma unidade cultural e, até mesmo, política, onde suas semelhanças inspiram a união contra os verdadeiros inimigos.

 

Por fim, mesmo sendo muito genérico com vários aspectos e falhando muito com os vilões, Besouro Azul vence pela imensa simpatia e por dialogar muito diretamente com o público latino-americano, numa representatividade que consegue ir além da meramente cosmética, como tem acontecido com algumas produções recentes. Na eventualidade de uma continuação, ou mesmo na participação das personagens no novo universo DC que se forma, seria bom que essas qualidades se alinhassem com alguma criatividade maior nas demais áreas. Ainda assim, é bem previsível que ele terá um carinho especial do público latino, especialmente do mexicano, mas também do brasileiro, que está comemorando a boa participação da Marquezine como se fosse um gol na Copa. Mas a verdade é só uma: quem não amar a vovó revolucionária é um gringo safado.

 

 COTAÇÃO:


 

BESOURO AZUL (Blue Beetle, EUA – 2023)

Com: Xolo Maridueña, Bruna Marquezine, Belissa Escobedo, Susan Sarandon, Raoul Max Trujillo, Damián Alcázar, George Lopez, Adriana Barraza, Elpidia Carrillo, Harvey Guillén e Becky G.

Direção: Angel Manuel Soto

Roteiro: Gareth Dunnet-Alcocer

Direção de fotografia: Pawel Pogorzelski

Montagem: Craig Alpert

Música: Bobby Krlic

Design de produção: Jon Billington

 

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

ASTEROID CITY

 Por Ricky Nobre

Todo cineasta com um estilo muito marcante, seja ele maneirista ou não, mais cedo ou mais tarde corre o risco de parecer uma caricatura de si mesmo em algum momento. Wes Anderson não é exceção, especialmente por sua tendência de, a cada filme, intensificar mais e mais seu estilo que não se atém meramente à estética, mas à própria identidade de sua construção narrativa. Seu filme anterior, Crônica Francesa, meio que já apontava nessa direção, como se ele já estivesse apresentado apenas mais do mesmo. Asteroid City, porém, vem quebrar esse movimento. Radicalizando ao máximo seu estilo, Anderson revigora seu cinema realizando uma obra que não apenas possui uma identidade que nenhum outro conseguiria imprimir, mas principalmente promove, ao mesmo tempo, uma reflexão e uma apoteose de seu maneirismo extremamente particular.

 

Para Anderson, a realidade é em preto e branco numa janela 4 por 3, enquanto a fantasia existe numa tela scope, com cores pasteis altamente saturadas. Mas o diretor, por vezes, pega essas duas concepções estéticas, de aparências diametralmente opostas, e borra seus limites. Anderson poderia perfeitamente se ater à história principal, muito identificada com seu cinema, onde brilhantes jovens e suas famílias visitam uma pequena cidade no meio do deserto (onde existe uma cratera formada pela colisão de um asteroide, que é ponto turístico), onde receberão prêmios por seus projetos de ciência. Ali, dentre as diversas interações entre os moradores da cidade e os visitantes, destaca-se aquela entre o recém viúvo Augie e a famosa atriz Midge Campbell. Um acontecimento extraordinário, porém, força a todos permanecerem na cidade sob quarentena onde, em meio a uma sátira à paranoia americana, jovens começam a conhecer a vida e adultos aprendem a recomeçar. 

 

Mas nada disso é “real”. É uma peça de teatro do autor Conrad Earp, e conhecemos seu processo criativo e sua relação com os atores, numa estrutura semelhante a um documentário de TV. Inicialmente, dá a impressão de que a história principal se bastava, e toda essa parte sobre o autor da peça apenas puxa o filme pra baixo. Mas logo fica claro como as narrativas são entrelaçadas tematicamente, conforme conhecemos as relações entre autor, diretor e atores e entre os personagens da obra. É fascinante como Anderson escolhe que essa obra de ficção dentro da ficção seja uma peça teatral e não um filme, sendo o cinema a sua mídia e, mais ainda, como ele sinaliza essa teatralidade com o exagero de seu próprio estilo artificial, evitando completamente o “teatro filmado” e entregando 100% de cinema. 

 

Desta forma, a história que se passa em Asteroid City tem toda a artificialidade do ambiente de estúdio, mesmo que tenha sido filmada em locações externas, indo mais além ao não esconder que as montanhas rochosas ao fundo não passam de cenário esculpido (e é tão parecido com um cenário do Papa-Léguas que, em determinado momento, um papa-léguas realmente aparece...), numa perspectiva forçada que não é completamente eficiente, propositalmente denunciando sua “falsidade”, tudo isso enfiando ainda mais o pé nessa jaca que é a paixão de Anderson por esse estilo de artes gráficas dos anos 1950. Esse grafismo está presente tanto nas cores, tão fortes que o contraste entre elas define mais a imagem do que o contraste da luz, quanto na já famosa simetria de Anderson que, diferente do rigor e da austeridade com que essa simetria era usada, por exemplo, por Kubrick, aqui ela se traduz em harmonia e leveza, características essas que estão em toda parte, seja no texto, nas interpretações ou na decupagem. 

 

Porém, o mundo “real” dos autores e atores não escapa da estilização de Anderson. Apresentado como um programa de TV dos anos 50, mas com uma abordagem bem mais teatral que televisiva, ele já começa com a função de declarar com todas as letras de que a história a ser apresentada é ficção, que nada é real, enquanto a própria estética desse segmento é também inegavelmente fantasiosa. Para Anderson, negar o realismo em absolutamente todos os aspectos formais de Asteroid City não é o suficiente: é preciso transformar isso em declaração. Esses dois “mundos” correm em paralelo de um jeito mais formal, principalmente quando vemos questões criativas discutidas pelos artistas se materializarem na peça posteriormente. Nesse sentido, as personagens de Scarlett Johansson formam um interessante “espelho infinito”, onde ela interpreta uma atriz de teatro que interpreta uma atriz de cinema que está ensaiando um papel de uma suicida que, por sua vez, reflete algumas questões não ditas da atriz.

 

Próximo ao final, é que as questões internas dos criadores e dos personagens vão reverberando umas nas outras, como é próprio do processo artístico. Talvez o momento mais interessante dessa esfera do filme seja a pequena cena com Margot Robbie, onde ficamos sabendo de uma cena cortada da peça por motivos de duração, mas que acaba se tornando essencial para o ator (e, consequentemente, para o público) compreender seu personagem. Um certo desespero do ator em plena apresentação por não estar entendendo a peça que interpreta, reflete diretamente seu personagem, que se sente perdido na vida sem a esposa. E o mais precioso é que Anderson elabora isso e várias outras pequenas conexões sem tentar parecer super inteligente ou espertinho. É simples, orgânico e adorável. 

 

Em Asteroid City, Wes Anderson realiza um filme que é seu até o último fiapo, numa época em que autoralidade vai se tornando “mosca branca” em um contexto hollywoodiano, onde os estúdios querem que inteligência artificial penetre cada vez em mais etapas das produções. Ao radicalizar seu estilo já muito pessoal a um nível inédito, o diretor surpreendentemente evita a caricatura e compõe uma obra reflexiva e alegre. E ao fim de tudo, Anderson ainda deixa um curioso comentário final. Quando o filme parece se encerrar no ambiente dos criadores, ele apresenta um epílogo, que conclui a história (e o filme) no ambiente da peça, em Asteroid City. Pois, como se sabe, a obra é sempre muito mais interessante que o artista.

 

 COTAÇÃO:



ASTEROID CITY (EUA – 2023)

Com: Jason Schwartzman, Scarlett Johansson, Tilda Swinton, Edward Norton, Jake Ryan, Grace Edwards, Jeffrey Wright, Maya Hawke, Liev Schreiber, Tom Hanks, Matt Dillon, Adrien Brody, Willem Dafoe, Margot Robbie, Bryan Cranston e Seu Jorge.

Roteiro e direção: Wes Anderson

Direção de fotografia: Robert D. Yeoman            

Montagem: Barney Pilling

Música: Alexandre Desplat

Design de produção: Adam Stockhausen