O novo filme do diretor e roteirista Noah Baumbach abre
brilhantemente com duas sequências onde cada um dos protagonistas, Charlie (Adam
Driver) e Nicole (Scarlett Johansson), declamam porque amam o outro, enquanto a
câmera acompanha pequenos e doces fragmentos de cotidiano que ilustram o que é
dito. Ao fim, descobrimos que é um exercício de terapia para o casal que se
divorciava. Em poucos minutos, somos totalmente imersos no melhor dessas
pessoas para, ao longo das duas horas seguintes, irmos lentamente descobrindo,
junto com os personagens, qual pode ser o pior delas.
Essa descoberta não é instantânea. Pouco a pouco, cada um
vai dando um passo além do que haviam decidido nunca fazer durante uma processo
de divórcio. Quando advogados de altos custos e práticas vis entram em cena,
cada um vai enfiando mais o pé na lama de uma disputa onde os melhores
sentimentos que eles tinham (ou têm) um pelo outro são cada vez mais
irrelevantes. Para resumir aqui parcamente personalidades e relacionamentos que
o filme apresenta de formas impressionantemente complexas, Charlie é movido por
egoísmo. Nicole, por mágoa. E no ápice do conflito entre o casal, a desde já
eternamente clássica cena da briga na sala, ambos se desnudam de qualquer formalidade,
qualquer influência de seus advogados e, num crescendo de acusações, até mesmo
de qualquer civilidade. Tudo é posto na mesa e coisas que jamais deveriam ser
ditas, são, ainda que tragam, imediatamente, o mais profundo e desesperado
arrependimento.
Driver e Johansson estão monstruosos em cena! Cada cena é um
show, seja de sutilezas, seja de arroubos. O filme foi exaustiva e
meticulosamente ensaiado e filmado, com cada grande cena sendo repetida de 30 a
50 vezes, gastando uma quantidade impressionante de película Kodak 35 mm na qual
Baumbach decidiu rodar o filme, ainda que seja produzido por uma empresa de streaming.
A própria janela escolhida de 1,66:1 foi raramente utilizada em Hollywood (cuja
proporção plana usual é 1,85:1), mas foi padrão na Europa dos anos 60 a 90,
deixando ligeiras barras laterais nas telas de TV atuais (que são 1,78:1). Essa escolha de um quadro europeu, a
música onde Randy Newman disse ter se inspirado em Georges Delerue (compositor
de Truffaut), os closes nos quais Baumbach diz ter se inspirado em Persona de
Bergman, a recusa em santificar ou vilanizar um outro protagonista, pode ser
uma forma de Baumbach tentar nos apresentar algo diferente da mesmice com que
Hollywood enxerga relacionamentos, seja no conteúdo ou na forma.
Baumbach baseou seu roteiro em sua experiência de seu
divórcio da atriz Jeniffer Jason Leigh. Por mais que ele se empenhe e
acompanhar de perto os sentimentos e os pontos de vista de cada um dos dois
igualmente, fica evidente um ligeiro olhar mais para o lado de Charlie, ainda
que ele tenha reservado a ele os momentos e falas mais raivosas e sombrias. A
diferença entre os dois “números musicais”, próximos ao fim do filme, meio que
revelam esse olhar. Aquele que embarcar na experiência torturantemente
emocional de História de Um Casamento deve abandonar toda a esperança. Não é um
filme otimista. Porém, não é tampouco sombrio e inexoravelmente amargo.
Pontuando diversos momentos ao longo da história, Baumbach permite que seus
personagens transpareçam momentos de ternura, afeto e cuidado. Não como
indicativo de “recaída” mas de forma fluida, mostrando que carinho é um hábito,
uma doçura que reservamos a quem, no fundo, queremos bem.
Histórias de amor no cinema são, geralmente, a história de
um. Um(a) protagonista onde o olhar do filme se concentra e, por mais que a
outra metade da laranja tenha destaque, sempre tem a ver com aquela personagem
que precisa se abrir ou se curar, superar, se entregar ou seja lá o que for. A história
de dois, invariavelmente, tem o olhar de um. Por mais que Noah Baumbach tenha
tentado ou que muitos tenham essa impressão, História de um Casamento NÃO é um
exemplo do mais perfeito equilíbrio dos pontos de vista das duas partes de um
casal. Porém, é, enfim, um raro exemplar em que ambos são de fato protagonistas
de sua própria história.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Ator: Adam Driver
Atriz: Scarlett Johansson
Atriz coadjuvante: Laura Dern
Roteiro original: Noah Baumbach
Música original: Randy Newman
HISTÓRIA DE UM CASAMENTO (Marriage Story, 2019)
Com: Adam Driver, Scarlett Johansson, Laura Dern, Ray
Liotta, Alan Alda e Julie Hagerty
Direção e roteiro: Noah Baumbach
Fotografia: Robbie Ryan
Montagem: Jennifer Lame
Música: Randy Newman