quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Os filmes do Oscar: HISTÓRIA DE UM CASAMENTO (6 indicações)

Por Ricky Nobre


O novo filme do diretor e roteirista Noah Baumbach abre brilhantemente com duas sequências onde cada um dos protagonistas, Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson), declamam porque amam o outro, enquanto a câmera acompanha pequenos e doces fragmentos de cotidiano que ilustram o que é dito. Ao fim, descobrimos que é um exercício de terapia para o casal que se divorciava. Em poucos minutos, somos totalmente imersos no melhor dessas pessoas para, ao longo das duas horas seguintes, irmos lentamente descobrindo, junto com os personagens, qual pode ser o pior delas. 

 

Essa descoberta não é instantânea. Pouco a pouco, cada um vai dando um passo além do que haviam decidido nunca fazer durante uma processo de divórcio. Quando advogados de altos custos e práticas vis entram em cena, cada um vai enfiando mais o pé na lama de uma disputa onde os melhores sentimentos que eles tinham (ou têm) um pelo outro são cada vez mais irrelevantes. Para resumir aqui parcamente personalidades e relacionamentos que o filme apresenta de formas impressionantemente complexas, Charlie é movido por egoísmo. Nicole, por mágoa. E no ápice do conflito entre o casal, a desde já eternamente clássica cena da briga na sala, ambos se desnudam de qualquer formalidade, qualquer influência de seus advogados e, num crescendo de acusações, até mesmo de qualquer civilidade. Tudo é posto na mesa e coisas que jamais deveriam ser ditas, são, ainda que tragam, imediatamente, o mais profundo e desesperado arrependimento. 

 

Driver e Johansson estão monstruosos em cena! Cada cena é um show, seja de sutilezas, seja de arroubos. O filme foi exaustiva e meticulosamente ensaiado e filmado, com cada grande cena sendo repetida de 30 a 50 vezes, gastando uma quantidade impressionante de película Kodak 35 mm na qual Baumbach decidiu rodar o filme, ainda que seja produzido por uma empresa de streaming. A própria janela escolhida de 1,66:1 foi raramente utilizada em Hollywood (cuja proporção plana usual é 1,85:1), mas foi padrão na Europa dos anos 60 a 90, deixando ligeiras barras laterais nas telas de TV atuais (que são  1,78:1). Essa escolha de um quadro europeu, a música onde Randy Newman disse ter se inspirado em Georges Delerue (compositor de Truffaut), os closes nos quais Baumbach diz ter se inspirado em Persona de Bergman, a recusa em santificar ou vilanizar um outro protagonista, pode ser uma forma de Baumbach tentar nos apresentar algo diferente da mesmice com que Hollywood enxerga relacionamentos, seja no conteúdo ou na forma.

 

Baumbach baseou seu roteiro em sua experiência de seu divórcio da atriz Jeniffer Jason Leigh. Por mais que ele se empenhe e acompanhar de perto os sentimentos e os pontos de vista de cada um dos dois igualmente, fica evidente um ligeiro olhar mais para o lado de Charlie, ainda que ele tenha reservado a ele os momentos e falas mais raivosas e sombrias. A diferença entre os dois “números musicais”, próximos ao fim do filme, meio que revelam esse olhar. Aquele que embarcar na experiência torturantemente emocional de História de Um Casamento deve abandonar toda a esperança. Não é um filme otimista. Porém, não é tampouco sombrio e inexoravelmente amargo. Pontuando diversos momentos ao longo da história, Baumbach permite que seus personagens transpareçam momentos de ternura, afeto e cuidado. Não como indicativo de “recaída” mas de forma fluida, mostrando que carinho é um hábito, uma doçura que reservamos a quem, no fundo, queremos bem. 

 

Histórias de amor no cinema são, geralmente, a história de um. Um(a) protagonista onde o olhar do filme se concentra e, por mais que a outra metade da laranja tenha destaque, sempre tem a ver com aquela personagem que precisa se abrir ou se curar, superar, se entregar ou seja lá o que for. A história de dois, invariavelmente, tem o olhar de um. Por mais que Noah Baumbach tenha tentado ou que muitos tenham essa impressão, História de um Casamento NÃO é um exemplo do mais perfeito equilíbrio dos pontos de vista das duas partes de um casal. Porém, é, enfim, um raro exemplar em que ambos são de fato protagonistas de sua própria história.

 

COTAÇÃO:


INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Ator: Adam Driver
Atriz: Scarlett Johansson
Atriz coadjuvante: Laura Dern
Roteiro original: Noah Baumbach
Música original: Randy Newman

HISTÓRIA DE UM CASAMENTO (Marriage Story, 2019)
Com: Adam Driver, Scarlett Johansson, Laura Dern, Ray Liotta, Alan Alda e Julie Hagerty
Direção e roteiro: Noah Baumbach
Fotografia: Robbie Ryan
Montagem: Jennifer Lame
Música: Randy Newman



domingo, 26 de janeiro de 2020

Os filmes do Oscar: FORD VS FERRARI (4 indicações)


Por Ricky Nobre


Filmes de esportes costumam ter uma fórmula bem simples e com muito poucas variáveis. O competidor e/ou time talentoso que enfrenta várias dificuldades até a vitória. O novo filme de James Mangold (Logan) não foge à regra ao narrar a história real de quando a Ford decidiu entrar para o automobilismo com a intenção específica de desbancar a Ferrari após ter sido preterida numa negociação de aquisição. O foco é o projetista Carroll Shelby (Matt Damon) e o piloto Ken Miles (Christian Bale), ambos lendas da história do automobilismo mundial, enfrentando as imensas dificuldades em criar um carro competitivo num prazo verdadeiramente irreal. 

 

Sendo um filme que não tem intenção alguma de desviar dos clichês da pista, Ford vs Ferrari mantém seu foco nos dois protagonistas como heróis contra os quais operam todas as demais forças: não só a Ferrari, seus donos, engenheiros e pilotos são retratados como vilões, e de forma bastante caricata durante a corrida de Le Mans de 1966, mas a própria empresa Ford e seus executivos são um obstáculo, pois estão muito mais interessados no impacto publicitário pragmático da empreitada do que no resultado concreto no qual a dupla se empenha: construir o melhor carro e vencer. 

 

Se a construção vilanesca caricata dos homens da Ford parece vazia e a dos homens da Ferrari até um tanto xenófoba, a da dupla Shelby e Miles, mesmo não sendo tão profunda, se apresenta para o público não apenas de forma muito simpática mas também com um pouco mais de substância. O Miles de Bale consegue aquela simpatia de anti-herói, do cara cabeça quente mas de bom coração e imenso talento e inteligência, e mesmo que tenha sido bem escrito mas não de forma tão brilhante, a interpretação de Bale faz o personagem subir alguns níveis além do que está no roteiro. A dinâmica entre os Bale e Damon é muito boa e dá aquele tom agradável de uma grande e velha amizade, apesar de, por vezes, ser entre socos e abraços. E se o filme oferece algum momento em que o chefão da Ford sai do raso da caricatura é quando ele é posto dentro do carro e tem a experiência da pista e, finalmente, entende o que está em jogo e o que é necessário ser feito, o que acontece através de um grande impacto emocional.

 

O que Mangold faz de verdadeiramente perfeito é o dificílimo trabalho de direção que exige um filme de corridas que pretende de fato transmitir ao espectador as sensações de perigo, velocidade, risco, competitividade, euforia, exaustão e triunfo de uma corrida do porte das 24 horas de Le Mans. As filmagens em locações, as capotagens e acidentes reais, o cuidado e o trabalho de captar o máximo possível de material ao vivo e deixar toda a pós produção de efeitos digitais o mais invisível possível, tudo isso dá ao filme um imenso realismo e sensação de empolgação, junto ao extraordinário trabalho de som. 

 

Ao fim, temos um filme de 2:30h que passa voando a 350km/h, graças a uma excelente montagem e uma direção segura. Não deixa de ser bem esperto fazer não só a Ferrari mas também a própria Ford como vilões do filme contra os quais lutam os verdadeiros mocinhos, que são os pilotos e engenheiros que dão tudo de si para fazer o melhor carro. Só assim é possível fazer o público embarcar numa aventura absurda e insana que é torcer contra a Ferrari em favor de um punhado de americanos.  

COTAÇÃO:


INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Montagem: Andrew Buckland, Michael McCusker e Dirk Westervelt
Edição de som: Donald Sylvester
Mixagem de som: Paul Massey, David Giammarco e Steven A. Morrow

FORD VS FERRARI (Ford v Ferrari, 2019)
Com: Matt Damon, Christian Bale, Jon Bernthal, Caitriona Balfe, Josh Lucas e Tracy Letts.
Direção: James Mangold
Roteiro: Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Jason Keller
Fotografia: Phedon Papamichael             
Montagem: Andrew Buckland, Michael McCusker e Dirk Westervelt
Música: Marco Beltrami e Buck Sanders

sábado, 25 de janeiro de 2020

Os filmes do Oscar: UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA (1 indicação)


Por Ricky Nobre


Para o público brasileiro, que não faz ideia de quem foi o apresentador infantil Fred Rogers, o novo filme da diretora Marielle Heller pode não ter tanto impacto ou interesse. O programa MisteRogers' Neighborhood foi ao ar entre 1968 e 2001, um dos mais longos da história da TV. Nele, com seu estilo suave e simpático, Mr. Rogers falava de todo o tipo de assuntos com crianças em idade pré escolar, ensinando-as a lidar com os mais variados sentimentos e foi um fenômeno que encantou diversas gerações de crianças americanas com simpatia, fantoches e músicas fofinhas. 

 

O novo filme da diretora de Poderia Me Perdoar? é muito livremente baseado no artigo da revista Esquire publicado em 1998, onde o jornalista Tom Junod narrava como o trabalho de entrevistar Rogers teve uma influência profundamente marcante em sua vida. Apesar da essência se manter, a história diverge tanto da experiência de Junod que até o nome do personagem foi mudado. No filme, Lloyd Vogel é um jovem pai que tem sérios problemas de relacionamento com seu próprio pai, que chega às raias da violência física. Com uma reputação de sempre falar mal de seus entrevistados em seus textos, ele já não consegue quem aceite ser entrevistado por ele. Mr. Rogers aceita recebê-lo e acaba, com seu trato social extremamente peculiar, fazendo Lloyd confrontar-se com seus medos e sua raiva do pai.

 

Sabendo das grandes diferenças do roteiro com o jornalista real, é curioso perceber que Mr. Rogers e sua forma de lidar com as pessoas é muito mais fiel à realidade. Ele sempre foi considerado uma pessoa difícil de e­ntrevistar pois ele passava a maior parte do tempo conversando e procurando ser amigo da pessoa em vez de responder às perguntas. Tom Hanks dá seu show habitual na difícil tarefa de retratar essa personalidade incomum, que mescla uma aparência de extrema ingenuidade com pensamentos de profunda sabedoria e uma genuína vontade de ajudar. 

 

O fascínio que Mr. Rogers gera em Lloyd, um homem de sentimentos conturbados e personalidade reservada, leva o jornalista a querer se aprofundar mais e mais na pessoa e no trabalho daquele que deveria ser, a princípio, apenas um texto de alguns parágrafos, levando-o a um processo de autoconhecimento. Uma abordagem interessante do filme é começar a apresenta-lo como um episódio normal de Mr. Rogers, sendo Lloyd e seus problemas de raiva e rancor o assunto do dia. Até as transições entre as cenas, quando muda o local da ação, são feitas com cenas de maquetes como no programa original. O contraste entre o turbilhão de Lloyd e seu realismo cru e a serenidade de Rogers com seu tom irreal de “terra do faz-de-conta” é bem trabalhado, com espaço para sutilezas que mostram o próprio Rogers lidando com sentimentos negativos em alguns momentos, detalhes que só são possíveis graças ao excelente trabalho de Hanks.

 

Um Lindo Dia na Vizinhança consegue com sucesso algo que poderia facilmente cair no ridículo ou na condescendência, que é traçar um paralelo entre as inabilidades de adultos de lidarem com suas emoções com as de crianças que ainda não aprenderam a fazer isso. O filme, ao mesmo tempo em que celebra o legado de Mr. Rogers, que ensinou diversas gerações de crianças a conhecerem as próprias emoções e lidarem com diversos problemas da vida, retrata as dificuldades vividas por adultos que não amadureceram essas habilidades na época correta, mas mostra, também, que nunca é tarde para aprender, e que tristeza, raiva, vergonha, são coisas que sempre farão parte de nossas vidas, porém cabe a nós não permitirmos que esses sentimentos nos dominem.

COTAÇÃO:



INDICAÇÃO AO OSCAR:
Melhor ator coadjuvante: Tom Hanks

UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA (A Beautiful Day in the Neighborhood, 2019)
Com: Matthew Rhys, Tom Hanks, Chris Cooper, Susan Kelechi Watson e Maryann Plunkett.
Direção: Marielle Heller
Roteiro: Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue
Fotografia: Jody Lee Lipes
Montagem: Anne McCabe
Música: Nate Heller