quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

SEM FÔLEGO


Por Ricky Nobre


Tanto o cinema de Todd Haynes como a literatura de Brian Selznick estão fortemente enraizadas no passado. Não é fácil catar na filmografia de Haynes algum trabalho que não seja de época e que seja ambientado em tempos contemporâneos. Já Selznick teve enorme sucesso com seu livro A Invenção de Hugo Cabret, belissimamente adaptado mais tarde por Scorcese. Esses dois autores com os olhos voltados para o passado estão agora em Sem Fôlego. A Edições SM e a H2O Films nos presentearam graciosamente na sessão para a imprensa com uma bela edição do livro de Selznick, dando a possibilidade de uma visão mais próxima entre a obra original e a adaptação. E, apesar das diferenças incontornáveis livro X filme, os dois estão bem próximos em conteúdo e na sensação que deixa no público. 

 

Em 1977, Ben é um menino de 12 anos, fascinado por lobos e por colecionar coisas aleatórias, que perdeu a mãe recentemente e vive com os tios. Numa noite, descobre indícios sobre a identidade de seu pai, sobre o qual a mãe nunca falou e, após um acidente que o deixa surdo, resolve partir sozinho em busca de seu passado. Já em 1927, Rose é uma menina surda de 13 anos que, vivendo com o pai autoritário, foge de casa em busca da grande estrela do cinema Lilian Mayhew. As duas histórias são contadas em paralelo, e suas semelhanças vão ficando mais claras e entrelaçadas conforme vão se desenrolando. No filme de Haynes, a história de Ben é contada com narrativa cinematográfica contemporânea e a de Rose é um filme mudo em preto e branco (uma ideia que, apesar de óbvia, é perfeita demais para não levar adiante). Já no livro de Selznick, a história de Ben é narrada em prosa, enquanto a de Rose é através das belíssimas ilustrações do próprio autor.

 

Haynes nunca fez um cinema “leve”, como Velvet Goldmine, Longe do Paraíso e Carol nos mostram. Sem Fôlego vem dar um tom diferente em sua trajetória. Com ares de fábula infanto-juvenil, o filme chega até mesmo a ser mais leve do que o próprio livro. O início da história de Rose tem uma carga bem mais dramática e triste no livro, e talvez tenha sido suavizada por Haynes na tentativa de deixar o filme menos denso para um público mais jovem, algo com o que Selznick, com longa carreira escrevendo livros infantis, não se importou. Quando, por exemplo, o cinema que Rose frequenta é fechado para a instalação de um sistema de som para os novíssimos filmes falados, isso pesa como uma grande tragédia para a jovem menina surda. É como se até o cinema a estivesse rejeitando. No filme, isso não passa de um breve comentário. Da mesma forma, a experiência de Ben quando chega em Nova Iorque, vindo de uma pequena cidade próxima ao Canadá, é descrita no livro com assustadora, com seu calor e caos urbano, enquanto Haynes a filma como um mundo novo, fascinante e cool.

 

Fora esses detalhes (assim como papel das ilustrações de Selznick no último quarto do livro e outros pequenas coisas), o filme pode ser considerado muito mais fiel ao livro do que a maioria das adaptações, e o fato do roteiro ter sido escrito pelo próprio Selznick pode ter muito a ver com isso. A maior diferença talvez seja num certo tom de “feel-good-movie” com toques de auto ajuda que não casa muito bem nem com o livro original nem com o cinema de Haynes (Selznick, no livro, lida bem melhor com a frase breguinha do filme: “Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão observando as estrelas”). A ótima trilha musical de Carter Burwell poderia ter um tom diferente para as cenas de Rose, para casar melhor com a estética do cinema mudo. Burwell efetivamente o fez na cena do almoço, com resultados cômicos muito bons. Poderia ser algo nessa linha, suavizada, menos literal. Seria melhor do que exatamente a mesma assinatura musical que a história de Ben. A forma como a montagem alterna as narrativas de Ben e Rose pode por vezes parecer excessivamente entrecortadas, o que, de certa forma, é herdada do livro (que chega ao ponto de interromper uma frase no meio para uma sequência de ilustrações). Nos dois casos, às vezes funciona, às vezes não.

 

O grande trunfo é o elenco, especialmente as crianças, com Oakes Fegley, já com uma carreira longa mesmo tão jovem, Jaden Michael que faz o amigo nova-iorquino de Ben, e Millicent Simmonds, interprete de Rose, uma jovem estreante que é de fato surda e que ganhou o papel mandando um vídeo para a produção. Eles são a alma do filme, ainda que as aparições, mesmo que breves, de Julianne Moore e Michelle Williams sejam sempre bem vindas. 

 

O que Sem Fôlego nos traz é uma história de duas crianças, separadas por 50 anos, onde elas procuram seu passado, sua identidade e seu lugar no mundo. O filme de Haynes acaba sendo excessivamente polido, até mesmo higienizados de emoções mais cruas. Os envolvidos na produção talvez estejam surpresos com a forma com que foram totalmente ignorados no Oscar este ano. Sem Fôlego é um filme bonito, por vezes encantador. Mas não é Carol. Nem Hugo Cabret. Quem sabe da próxima vez.

 

SEM FÔLEGO (WONDERSTRUCK, 2017)
Com: Oakes Fegley, Jaden Michael, Millicent Simmonds, Julianne Moore e Michelle Williams.
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Brian Selznick, baseado em seu livro
Fotografia: Edward Lachman
Montagem: Affonso Gonçalves
Música: Carter Burwell

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