terça-feira, 19 de dezembro de 2023

FESTIVAL DO RIO 2023: DIA 18/10

Por Ricky Nobre


MAL VIVER e VIVER MAL             

Os dípticos (obras irmãs que se complementam) são raros no cinema, sendo o mais lembrado talvez o Smoking/No Smoking do Resnais, sendo que o Brasil teve recentemente o lançamento simultâneo de dois filmes sobre o caso Richthofen. O cineasta português João Canijo trouxe este ano seu díptico Mal Viver/Viver Mal, que se passa em um hotel que já viu dias melhores. Enquanto o primeiro retrata as mulheres de uma mesma família que administram e cuidam do lugar, o segundo acompanha três grupos de hóspedes, todos acontecendo em um mesmo espaço de tempo.

 

MAL VIVER

Existe algo de opressivo, de claustrofóbico em Mal Viver. Canijo se utiliza do ambiente de um negócio familiar, onde relações de trabalho e familiares se misturam de forma geralmente inadequada, para destacar os conflitos e a toxidade destas relações. É curioso como não é um filme de excessos dramáticos e, mesmo assim, mostra-se um pouco difícil de assistir depois de um tempo, dada a sensação de acúmulo da rispidez, da incompreensão, da impressão do quanto que aquelas mulheres parecem fartas do trabalho e umas das outras. Meio que no centro de tudo, a depressiva Piedade (a ótima Anabela Moreira) torna-se o foco de uma discussão proposta pelo diretor sobre saúde mental, especialmente no ambiente onde ela está imersa, e não deixa de ter um certo humor sombrio, ainda que angustiante, quando ela procura por sua cadela perdida, chamada Alma, gritando por seu nome por minutos seguidos. 

 

A fotografia parece diminuir todos os espaços internos do hotel, quase sempre sombrios, enquanto a área externa de lazer, onde se encontra a piscina, quase não é vista sob a luz do sol, mas na luz mais sutil do alvorecer e do crepúsculo. É curioso como o som é tratado, principalmente em relação aos diálogos que, em família, possuem uma dinâmica de conversa “atropelada”, onde diálogos se sobrepõem, onde uma personagem fala enquanto outra ainda não terminou. E, em outra camada abaixo, ficam diálogos soltos dos hóspedes, mais audíveis do que seria esperado em certas cenas, e são justamente diálogos que ouviremos por inteiro no outro filme, Viver Mal. 

 

Apesar de todo o excelente trabalho de todo o elenco e do cuidado da direção, parece um certo desperdício que outras personagens pareçam subaproveitadas, ficando meio que soterradas por baixo da intensidade e do foco dado à Piedade. 


COTAÇÃO:


 

VIVER MAL

Existe um grande contraste entre Viver Mal e seu filme-irmão. Aqui, o tom é leve, cômico, até ligeiramente farsesco. Acompanhamos cada um dos três grupos de hóspedes que, em comum, tratam em maior ou menor grau de toxidade materna, o que, tematicamente, liga o filme diretamente a Mal Viver e à relação de Piedade com a mãe. Junto ao humor, por vezes ácido, dos diálogos e das situações, o tom também é definido pela fotografia, muito mais colorida e luminosa, aproveitando-se das cenas externas à beira da piscina e sob o sol e, mesmo em espaços mais confinados, evita a sensação de opressão. 

 

Assim como em Mal Viver, situações e diálogos do outro filme tornam-se pano de fundo neste e, quando sobrepostos, os dois filmes parecem questionar o quanto não sabemos da realidade que se passa ao nosso redor. Talvez um melhor símbolo disso seja Piedade gritando em busca da cadelinha Alma, que passa uma sensação angustiante em Mal Viver, mas que assume tons cômicos pela constante repetição, como algo que insiste em acontecer ao fundo, em Viver Mal. Assim como Mal Viver carece de uma maior exploração de várias personagens, em Viver Mal saímos com uma sensação mais agradável dado seu humor e leveza, mas com uma certa falta de substância. Mas é justamente onde reside a força do díptico, pois nos contrastes dos dois filmes sobrepostos e na forma como se complementam e ecoam um no outro é que sentimos mais a relevância de seus temas e sua força dramática. Ou seja, juntos os filmes deixam uma experiência melhor do que separados.

 

COTAÇÃO:

 

 

COTAÇÃO CONJUNTA:

 

MAL VIVER/VIVER MAL (Portugal – 2023)

Elenco Mal Viver: Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida e Vera Barreto

Elenco Viver Mal: Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral e Leonor Vasconcelos

Direção e roteiro: João Canijo

Fotografia: Leonor Teles

Montagem: João Braz

 

 

Nenhum comentário: