sábado, 23 de setembro de 2017

MÃE! - A obra prima visceral de Aronofsky


Por Ricky Nobre


A carreira de Darren Aronofsky é um milagre. Nos últimos 20 anos ele tem sido consistentemente fiel a si mesmo e à sua forma de fazer cinema, com foco constante e preciso nas profundezas da escuridão humana. Até mesmo sua mais otimista e iluminada obra (o subestimado A Fonte da Vida) traz um certo sabor agridoce. Seu cinema é sempre sofisticado e intenso. As emoções são à flor da pele e a violência nunca é espetáculo, mas desconcertante e perturbadora. Com essa receita tão anti-hollywoodiana, a popularidade de filmes como Réquiem Para um Sonho, O Lutador e Cisne Negro (este seu maior sucesso) impressiona e é um atestado não apenas da qualidade e da força de seu cinema, mas também do quanto a fidelidade de um artista a si mesmo não é necessariamente uma condenação a limitados círculos cult. Bom, até ele resolver fazer Mãe!

 

Mãe! é o primeiro filme de Aronofsky produzido exclusivamente por sua produtora Protozoa Pictures, ao contrário de seus filmes anteriores produzidos em associação com outras produtoras independentes ou com algum major studio.  Isso talvez simbolize o que Mãe! representa em sua filmografia: um grande risco e nenhuma concessão. Jennifer Lawrence e Javier Badem são um casal que vive numa grande casa isolada que, pouco a pouco, foi sendo reconstruída por ela após um incêndio que pôs tudo abaixo. Ele, um escritor de sucesso que atravessa um período de bloqueio criativo, vive fechado em si mesmo, enquanto ela vive e respira por ele e, em sua devoção, parece não sentir seu amor devidamente retribuído. Uma noite, um estranho (Ed Harris) bate à sua porta e ele o convida a ficar, à revelia dela. No dia seguinte, aparece a esposa do homem (Michele Pfeiffer), que também é convidada a ficar e, com o tempo, outras pessoas chegam. Ele se sente revigorado com novas pessoas por perto, enquanto ela se sente cada vez mais invadida em sua privacidade. Ao mesmo tempo, ela sente surtos de mal-estar cada vez mais constantes e a própria casa parece começar a reagir às constantes invasões.

 

A princípio, a sinopse parece tola, pois o filme se constrói peça a peça, sem pressa, sem artifícios ordinários. A câmera de Aronofsky se ancora firmemente na personagem de Lawrence. Tudo é visto através de seu olhar. Todos os super closes do filme são dela e somos chamados para bem perto da personagem que é o coração pulsante do filme. Todas as emoções do público chegam através dela. Em um grupo de atores formidável, Lawrence brilha magnificamente, oferecendo mínimas sutilezas e espetaculares arroubos, guiada por uma direção onde nada é gratuito e tudo é pensado em seus mínimos detalhes. Mãe! é filmado com absoluta maestria, com belíssima fotografia em película 16mm e com enquadramentos e movimentos belos e precisos. A primeira cena do filme, onde Lawrence percorre a casa numa camisola transparente, quase flutuando como um espírito silencioso, já dá o tom de uma obra que é, em sua mais profunda essência, simbólica. 


Em seu último terço, Mãe! adentra no bizarro e perturbador terreno da lógica de sonho. Mais precisamente, de pesadelo. A esta altura, o público pode começar a procurar em seu repertório mental de filmes fantásticos e de terror alguma reviravolta “inesperada” com explicação realista para tudo que vê, embora nenhuma delas pareça digna da obra do cineasta. E, de fato, não são. O elemento chave no qual Aronofsky ancora sua obra é a emoção! A personagem de Lawrence SENTE profunda e intensamente, mesmo que, muitas vezes, reprimida, e esse fluxo constante e progressivo de emoção atinge o público na mesma medida em que a obra vai se revelando uma experiência bizarra, desesperadora e claustrofóbica. A total ausência de música contribui enormemente para a sensação de asfixia constante. 

 

O resultado pode parecer para muitos como uma desastrosa bagunça sem sentido. Outros podem chegar a suas próprias conclusões, que podem ou não coincidir com a “explicação oficial” que o próprio Aronofsky deixou clara em uma declaração dada uma semana antes da estreia. De qualquer forma, a decriptação da simbologia de Mãe! não será possível sem que o espectador se permita sentir. É imperativo sentir intensamente Mãe! para que seu grito de desespero e alerta seja compreendido. E não é uma tarefa simples. Em sua pré estreia no Festival de Veneza, o filme foi vaiado e aplaudido de pé ao mesmo tempo ao fim da exibição. As notas no IMDB se polarizam fortemente entre o 1 e o 10, enquanto o público mais jovem aprecia o filme muitíssimo mais do que o mais velho. Em seu lançamento nos EUA, foi a pior bilheteria de estreia da carreira de Jennifer Lawrence. Em uma semana de exibição mundial arrecadou pouco mais da metade de seu baixo orçamento de apenas 30 milhões de dólares. 


A Paramount, principal distribuidora do filme, arriscou promovendo o filme como terror, um rótulo que pode até se aplicar a ele, mas não de uma forma tradicional e previsível. Não é fácil vender um filme que não cabe na caixinha. Mãe! vai muito além de ser um filme com o clássico perfil de “não ser para todos os gostos”. É uma obra de extraordinário brilhantismo e de uma complexidade intelectual que só é possível através de sua genuína e pulsante emoção. Um dos poucos filmes brutal e verdadeiramente viscerais desta década, ao lado do novo Mad Max de Miller. Sua temática pode ser interpretada em níveis que extrapolam o desvendado por seu criador para a imprensa. E, como estamos falando de Aronofsky, o próprio alerta já carrega em si pesadas notas de fatalismo, dada sua característica cíclica. Não é possível dizer o que pode ser mais frustrante e desesperador sobre ele: não entendê-lo, como Michele Pfeiffer, que não entendeu nada do roteiro mas adorou sua personagem, ou efetivamente entendê-lo, como Jennifer Lawrence, que tacou o roteiro na parede depois que leu. Mãe! é um risco extremamente necessário de se correr. 

 

MÃE! (Mother!, 2017)
Com: Jennifer Lawrence, Javier Badem, Ed Harris e Michele Pfeiffer.
Roteiro e direção: Darren Aronofsky
Fotografia: Matthew Libatique
Montagem: Andrew Weisblum

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