Por Ricky Nobre
A carreira de Darren Aronofsky é um milagre. Nos últimos 20
anos ele tem sido consistentemente fiel a si mesmo e à sua forma de fazer
cinema, com foco constante e preciso nas profundezas da escuridão humana. Até
mesmo sua mais otimista e iluminada obra (o subestimado A Fonte da Vida) traz
um certo sabor agridoce. Seu cinema é sempre sofisticado e intenso. As emoções
são à flor da pele e a violência nunca é espetáculo, mas desconcertante e
perturbadora. Com essa receita tão anti-hollywoodiana, a popularidade de filmes
como Réquiem Para um Sonho, O Lutador e Cisne Negro (este seu maior sucesso)
impressiona e é um atestado não apenas da qualidade e da força de seu cinema, mas também
do quanto a fidelidade de um artista a si mesmo não é necessariamente uma
condenação a limitados círculos cult. Bom, até ele resolver fazer Mãe!
Mãe! é o primeiro filme de Aronofsky produzido
exclusivamente por sua produtora Protozoa Pictures, ao contrário de seus filmes
anteriores produzidos em associação com outras produtoras independentes ou com
algum major studio. Isso talvez
simbolize o que Mãe! representa em sua filmografia: um grande risco e nenhuma
concessão. Jennifer Lawrence e Javier Badem são um casal que vive numa grande
casa isolada que, pouco a pouco, foi sendo reconstruída por ela após um
incêndio que pôs tudo abaixo. Ele, um escritor de sucesso que atravessa um
período de bloqueio criativo, vive fechado em si mesmo, enquanto ela vive e
respira por ele e, em sua devoção, parece não sentir seu amor devidamente
retribuído. Uma noite, um estranho (Ed Harris) bate à sua porta e ele o convida
a ficar, à revelia dela. No dia seguinte, aparece a esposa do homem (Michele
Pfeiffer), que também é convidada a ficar e, com o tempo, outras pessoas
chegam. Ele se sente revigorado com novas pessoas por perto, enquanto ela se
sente cada vez mais invadida em sua privacidade. Ao mesmo tempo, ela sente
surtos de mal-estar cada vez mais constantes e a própria casa parece começar a
reagir às constantes invasões.
A princípio, a sinopse parece tola, pois o filme se constrói
peça a peça, sem pressa, sem artifícios ordinários. A câmera de Aronofsky se
ancora firmemente na personagem de Lawrence. Tudo é visto através de seu olhar.
Todos os super closes do filme são dela e somos chamados para bem perto da
personagem que é o coração pulsante do filme. Todas as emoções do público
chegam através dela. Em um grupo de atores formidável, Lawrence brilha
magnificamente, oferecendo mínimas sutilezas e espetaculares arroubos, guiada
por uma direção onde nada é gratuito e tudo é pensado em seus mínimos detalhes.
Mãe! é filmado com absoluta maestria, com belíssima fotografia em película 16mm
e com enquadramentos e movimentos belos e precisos. A primeira cena do filme,
onde Lawrence percorre a casa numa camisola transparente, quase flutuando como
um espírito silencioso, já dá o tom de uma obra que é, em sua mais profunda
essência, simbólica.
Em seu último terço, Mãe! adentra no bizarro e perturbador
terreno da lógica de sonho. Mais precisamente, de pesadelo. A esta altura, o
público pode começar a procurar em seu repertório mental de filmes fantásticos
e de terror alguma reviravolta “inesperada” com explicação realista para tudo
que vê, embora nenhuma delas pareça digna da obra do cineasta. E, de fato, não
são. O elemento chave no qual Aronofsky ancora sua obra é a emoção! A
personagem de Lawrence SENTE profunda e intensamente, mesmo que, muitas vezes,
reprimida, e esse fluxo constante e progressivo de emoção atinge o público na
mesma medida em que a obra vai se revelando uma experiência bizarra, desesperadora
e claustrofóbica. A total ausência de música contribui enormemente para a
sensação de asfixia constante.
O resultado pode parecer para muitos como uma desastrosa
bagunça sem sentido. Outros podem chegar a suas próprias conclusões, que podem
ou não coincidir com a “explicação oficial” que o próprio Aronofsky deixou
clara em uma declaração dada uma semana antes da estreia. De qualquer forma, a
decriptação da simbologia de Mãe! não será possível sem que o espectador se
permita sentir. É imperativo sentir intensamente Mãe! para que seu grito de
desespero e alerta seja compreendido. E não é uma tarefa simples. Em sua pré
estreia no Festival de Veneza, o filme foi vaiado e aplaudido de pé ao mesmo
tempo ao fim da exibição. As notas no IMDB se polarizam fortemente entre o 1 e
o 10, enquanto o público mais jovem aprecia o filme muitíssimo mais do que o
mais velho. Em seu lançamento nos EUA, foi a pior bilheteria de estreia da
carreira de Jennifer Lawrence. Em uma semana de exibição mundial arrecadou
pouco mais da metade de seu baixo orçamento de apenas 30 milhões de dólares.
A Paramount, principal distribuidora do filme, arriscou
promovendo o filme como terror, um rótulo que pode até se aplicar a ele, mas não
de uma forma tradicional e previsível. Não é fácil vender um filme que não cabe
na caixinha. Mãe! vai muito além de ser um filme com o clássico perfil de “não
ser para todos os gostos”. É uma obra de extraordinário brilhantismo e de uma
complexidade intelectual que só é possível através de sua genuína e pulsante
emoção. Um dos poucos filmes brutal e verdadeiramente viscerais desta década,
ao lado do novo Mad Max de Miller. Sua temática pode ser interpretada em níveis
que extrapolam o desvendado por seu criador para a imprensa. E, como estamos
falando de Aronofsky, o próprio alerta já carrega em si pesadas notas de
fatalismo, dada sua característica cíclica. Não é possível dizer o que pode ser
mais frustrante e desesperador sobre ele: não entendê-lo, como Michele Pfeiffer,
que não entendeu nada do roteiro mas adorou sua personagem, ou efetivamente entendê-lo,
como Jennifer Lawrence, que tacou o roteiro na parede depois que leu. Mãe! é um
risco extremamente necessário de se correr.
MÃE! (Mother!, 2017)
Com: Jennifer Lawrence, Javier Badem, Ed Harris e Michele
Pfeiffer.
Roteiro e direção: Darren Aronofsky
Fotografia: Matthew Libatique
Montagem: Andrew Weisblum
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