Por Ricky Nobre
Quando aparece a velha logo estática da Warner ao som do
Dies Irae, com o mesmo sintetizador usado por Wendy Carlos em 1980, o diretor
dá um recado direto e claro ao público: sim, você está diante do impensável, do
impossível, do infilmável: uma continuação direta de O Iluminado, de Stanley
Kubrick, filme obrigatório em qualquer lista de maiores filmes de terror de
todos os tempos, muitas vezes as encabeçando. Essa irresponsabilidade vem do
diretor, roteirista e montador Mike Flanagan, que vem se destacando no horror
em produções da Netflix, especialmente A Maldição da Residência Hill. Recentemente,
outro clássico do início dos anos 80, Blade Runner, foi continuado por Denis Villeneuve,
com recepção mista da crítica e público. A reação foi semelhante: como se
atrevem a criar uma continuação de um clássico icônico como esse? A tarefa auto
concedida de Flanagan tem o mesmo perfil mas há uma diferença básica: Blade
Runner 2049 foi uma continuação criada do zero por Villeneuve. Doutor Sono é um
livro de 2013 que o próprio autor do romance de terror O Iluminado, Stephen
King, escreveu após décadas ruminando sobre as possibilidades de como a
história poderia continuar. Então, desta vez, a sequência do clássico vem do
próprio autor.
Mas, não. Não é simples assim. Kubrick modificou
radicalmente o conteúdo do livro de King, a
ponto do autor odiá-lo, classificando a obra como “um lindo cadilac sem
motor”. O culto ao clássico de Kubrick não é, de fato, unânime. Muitas críticas
são semelhantes às de King, como a escolha de Jack Nicholson, que esvaziou a
progressão da loucura do personagens e uma frieza geral. De fato, O Iluminado
pode parecer uma impressionante sequência de belíssimas fotografias de pessoas
aterrorizadas, sem que o público sinta, de fato, o terror. Talvez a mais dura e
precisa crítica tenha vindo de Brian de Palma: “Kubrick não sabe fazer terror
porque ele não entende nem gosta de pessoas”. Desta forma, o desafio proposto
por Flanagan era complexo: ser fiel ao material original de King, ao mesmo
tempo que considerava o filme de Kubrick como cânone.
Doutor Sono começa onde O Iluminado terminou, em 1980. Após
um prólogo onde vemos o pequeno Danny aprendendo a lidar melhor com seu poder e
com os fantasmas do Hotel Overlook que o perseguem, conhecemos o personagem adulto
(Ewan McGregor) numa vida sem rumo, alcoólatra como o pai, todas as noites
puxando briga em bares e dormindo com desconhecidas. Chegando uma pequena
cidade, ele consegue trabalho como enfermeiro cuidando de doentes terminais,
onde utiliza seus poderes de iluminação para tornar a passagem dos doentes mas
serena. Ele passa a se comunicar esporadicamente à distância com a menina Abra,
que possui os poderes de iluminação como ele. Mas o grande perigo é um grupo de
itinerantes que se denominam “The True Knot” e que consegue vida longa e
juventude absorvendo o poder de iluminação (que eles chama de “vapor”) de
crianças, que precisam ser mortas com dor e medo para liberar e “purificar” o
vapor. Dan então precisa proteger a jovem Abra, que se torna o próximo alvo do
grupo.
Assim que terminam as cenas iniciais passadas em 1980 (brilhantemente
recriadas na luz, cores e figurino do filme original, até mesmo na escolha do
elenco), somos apresentados ao Dan adulto e a um filme completamente diferente,
tanto no ritmo, na atmosfera, nas cores e no estilo. O que se apresenta é um
thriller contemporâneo, rigorosamente destituído de qualquer afetação
desconcertante decorrida de tentativas frustradas do diretor em ser ou parecer
Kubrick. As referências e recriações do filme original têm, a princípio, a
função apenas de situar e informar a história atual, principalmente ao dar
forte suporte à construção do personagem de Dan. Se essa (ausência de)
construção de personagens foi o que mais irritou o autor King no filme de
Kubrick, aqui Flanagan não apenas mergulha neles como assume um grande risco
dentro do cinema comercial atual: ele dispõe do tempo como quer. Todo o
primeiro ato se propõe a apresentar e construir com solidez seus personagens,
com especial atenção aos vilões.
Com um visual vagabond-cool, o grupo de andarilhos têm um
sutil e asqueroso charme típico dos vampiros modernos e, de fato, é o que eles
são, sendo que seu alimento é mais raro. Rebecca Ferguson verdadeiramente brilha
como a líder Rose The Hat e parece fazê-lo sem nenhum esforço. Indo na
contramão do surrado clichê de vilã, sua sensualidade é intensa mas não é, em
momento algum a principal característica da personagem, nem sequer é a
secundária. A sensualidade apenas está lá, enquanto ela é inteligente,
ambiciosa, extremamente confiante, mas também raivosa e até apavorada quando os
eventos não saem como imagina. Rose é uma força da natureza que impulsiona o
filme e equilibra verdadeiramente as forças entre o True Knot e a dupla Dan e
Ash. Aguardem incontáveis cosplays da personagem nos próximos eventos.
Doutor Sono é, majoritariamente, muito bem escrito, dirigido
e interpretado. Ele não mergulha num horror visceral, nem mesmo apela para
violência mais gráfica. Seu clima é mais de thriller sobrenatural com algumas
notas de mistério e filme de ação. Talvez o seu grande potencial problema seja
a sombra gigante de Kubrick que Flanagan corajosa ou imprudentemente carrega
consigo, como um guarda-chuva para ser aberto quando precisar. As citações ao
original, seja com diálogos ou imagens, podem ter efeitos diferentes no
público, dependendo do nível e tipo de reverência que este tenha com O
Iluminado em particular ou com a obra de Kubrick como um todo. A nostalgia na cultura de massa vem ganhando força com continuações e remakes
tardios, artistas e bandas afastadas que voltam a turnês, franquias cinematográficas
ressuscitadas, o que, salvo alguns casos, tem trazido muito dinheiro aos
estúdios. O risco na recriação da poderosa iconografia de Kubrick num filme de pretensões
mais comerciais poderia expor o diretor ao ridículo. E é no terceiro ato onde
ele realmente se arrisca.
Isso pode ser considerado um LEVE SPOILER, mas já podemos
ver algumas destas cenas no trailer. Para a grande conclusão do filme, Dan
verdadeiramente volta ao Hotel Overlook, abandonado por 40 anos. A equipe de
produção reconstrói com precisão absurda os cenários de O Iluminado,
adicionando apenas o desgaste do tempo e do abandono. A partir daí, não são
apenas referências. Os personagens e o próprio filme submergem no mundo do
filme clássico, onde o arco do personagem Dan será finalmente concluído, em
meio a recriações das cenas e tomadas mais clássicas. Certamente, fãs mais
radicais irão se irar com alguns trechos de Doutor Sono mas, em sua maior
parte, o público recebe muito bem as referências e recriações de cenas, que dão
a agradável sensação de volta ao passado, um passado que consideramos seguro e
agradável. É contagiante a sensação de euforia quando Dan se aproxima de
Overlook ao som de uma versão sinfônica do clássico tema de O Iluminado. A
nostalgia se apresenta aqui como o mais viciante dos vapores.
COTAÇÃO:
DOUTOR SONO (Doctor Sleep, 2019)
Com: Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran, Cliff
Curtis e Carl Lumbly
Roteiro, direção e montagem: Mike Flanagan
Baseado no livro de: Stephen King
Fotografia: Michael Fimognari
Música: The Newton Brothers
Direção de arte: Richie Bearden
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