quinta-feira, 7 de novembro de 2019

DOUTOR SONO: enfrentado o monstro sagrado


Por Ricky Nobre

Quando aparece a velha logo estática da Warner ao som do Dies Irae, com o mesmo sintetizador usado por Wendy Carlos em 1980, o diretor dá um recado direto e claro ao público: sim, você está diante do impensável, do impossível, do infilmável: uma continuação direta de O Iluminado, de Stanley Kubrick, filme obrigatório em qualquer lista de maiores filmes de terror de todos os tempos, muitas vezes as encabeçando. Essa irresponsabilidade vem do diretor, roteirista e montador Mike Flanagan, que vem se destacando no horror em produções da Netflix, especialmente A Maldição da Residência Hill. Recentemente, outro clássico do início dos anos 80, Blade Runner, foi continuado por Denis Villeneuve, com recepção mista da crítica e público. A reação foi semelhante: como se atrevem a criar uma continuação de um clássico icônico como esse? A tarefa auto concedida de Flanagan tem o mesmo perfil mas há uma diferença básica: Blade Runner 2049 foi uma continuação criada do zero por Villeneuve. Doutor Sono é um livro de 2013 que o próprio autor do romance de terror O Iluminado, Stephen King, escreveu após décadas ruminando sobre as possibilidades de como a história poderia continuar. Então, desta vez, a sequência do clássico vem do próprio autor.

 

Mas, não. Não é simples assim. Kubrick modificou radicalmente o conteúdo do livro de King, a  ponto do autor odiá-lo, classificando a obra como “um lindo cadilac sem motor”. O culto ao clássico de Kubrick não é, de fato, unânime. Muitas críticas são semelhantes às de King, como a escolha de Jack Nicholson, que esvaziou a progressão da loucura do personagens e uma frieza geral. De fato, O Iluminado pode parecer uma impressionante sequência de belíssimas fotografias de pessoas aterrorizadas, sem que o público sinta, de fato, o terror. Talvez a mais dura e precisa crítica tenha vindo de Brian de Palma: “Kubrick não sabe fazer terror porque ele não entende nem gosta de pessoas”. Desta forma, o desafio proposto por Flanagan era complexo: ser fiel ao material original de King, ao mesmo tempo que considerava o filme de Kubrick como cânone. 

 

Doutor Sono começa onde O Iluminado terminou, em 1980. Após um prólogo onde vemos o pequeno Danny aprendendo a lidar melhor com seu poder e com os fantasmas do Hotel Overlook que o perseguem, conhecemos o personagem adulto (Ewan McGregor) numa vida sem rumo, alcoólatra como o pai, todas as noites puxando briga em bares e dormindo com desconhecidas. Chegando uma pequena cidade, ele consegue trabalho como enfermeiro cuidando de doentes terminais, onde utiliza seus poderes de iluminação para tornar a passagem dos doentes mas serena. Ele passa a se comunicar esporadicamente à distância com a menina Abra, que possui os poderes de iluminação como ele. Mas o grande perigo é um grupo de itinerantes que se denominam “The True Knot” e que consegue vida longa e juventude absorvendo o poder de iluminação (que eles chama de “vapor”) de crianças, que precisam ser mortas com dor e medo para liberar e “purificar” o vapor. Dan então precisa proteger a jovem Abra, que se torna o próximo alvo do grupo. 

 

Assim que terminam as cenas iniciais passadas em 1980 (brilhantemente recriadas na luz, cores e figurino do filme original, até mesmo na escolha do elenco), somos apresentados ao Dan adulto e a um filme completamente diferente, tanto no ritmo, na atmosfera, nas cores e no estilo. O que se apresenta é um thriller contemporâneo, rigorosamente destituído de qualquer afetação desconcertante decorrida de tentativas frustradas do diretor em ser ou parecer Kubrick. As referências e recriações do filme original têm, a princípio, a função apenas de situar e informar a história atual, principalmente ao dar forte suporte à construção do personagem de Dan. Se essa (ausência de) construção de personagens foi o que mais irritou o autor King no filme de Kubrick, aqui Flanagan não apenas mergulha neles como assume um grande risco dentro do cinema comercial atual: ele dispõe do tempo como quer. Todo o primeiro ato se propõe a apresentar e construir com solidez seus personagens, com especial atenção aos vilões. 

 

Com um visual vagabond-cool, o grupo de andarilhos têm um sutil e asqueroso charme típico dos vampiros modernos e, de fato, é o que eles são, sendo que seu alimento é mais raro. Rebecca Ferguson verdadeiramente brilha como a líder Rose The Hat e parece fazê-lo sem nenhum esforço. Indo na contramão do surrado clichê de vilã, sua sensualidade é intensa mas não é, em momento algum a principal característica da personagem, nem sequer é a secundária. A sensualidade apenas está lá, enquanto ela é inteligente, ambiciosa, extremamente confiante, mas também raivosa e até apavorada quando os eventos não saem como imagina. Rose é uma força da natureza que impulsiona o filme e equilibra verdadeiramente as forças entre o True Knot e a dupla Dan e Ash. Aguardem incontáveis cosplays da personagem nos próximos eventos.

 

Doutor Sono é, majoritariamente, muito bem escrito, dirigido e interpretado. Ele não mergulha num horror visceral, nem mesmo apela para violência mais gráfica. Seu clima é mais de thriller sobrenatural com algumas notas de mistério e filme de ação. Talvez o seu grande potencial problema seja a sombra gigante de Kubrick que Flanagan corajosa ou imprudentemente carrega consigo, como um guarda-chuva para ser aberto quando precisar. As citações ao original, seja com diálogos ou imagens, podem ter efeitos diferentes no público, dependendo do nível e tipo de reverência que este tenha com O Iluminado em particular ou com a obra de Kubrick como um todo. A nostalgia na cultura de massa vem ganhando força com continuações e remakes tardios, artistas e bandas afastadas que voltam a turnês, franquias cinematográficas ressuscitadas, o que, salvo alguns casos, tem trazido muito dinheiro aos estúdios. O risco na recriação da poderosa iconografia de Kubrick num filme de pretensões mais comerciais poderia expor o diretor ao ridículo. E é no terceiro ato onde ele realmente se arrisca.

 

Isso pode ser considerado um LEVE SPOILER, mas já podemos ver algumas destas cenas no trailer. Para a grande conclusão do filme, Dan verdadeiramente volta ao Hotel Overlook, abandonado por 40 anos. A equipe de produção reconstrói com precisão absurda os cenários de O Iluminado, adicionando apenas o desgaste do tempo e do abandono. A partir daí, não são apenas referências. Os personagens e o próprio filme submergem no mundo do filme clássico, onde o arco do personagem Dan será finalmente concluído, em meio a recriações das cenas e tomadas mais clássicas. Certamente, fãs mais radicais irão se irar com alguns trechos de Doutor Sono mas, em sua maior parte, o público recebe muito bem as referências e recriações de cenas, que dão a agradável sensação de volta ao passado, um passado que consideramos seguro e agradável. É contagiante a sensação de euforia quando Dan se aproxima de Overlook ao som de uma versão sinfônica do clássico tema de O Iluminado. A nostalgia se apresenta aqui como o mais viciante dos vapores. 

 COTAÇÃO:




DOUTOR SONO (Doctor Sleep, 2019)

Com: Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran, Cliff Curtis e Carl Lumbly

Roteiro, direção e montagem: Mike Flanagan

Baseado no livro de: Stephen King

Fotografia: Michael Fimognari

Música: The Newton Brothers

Direção de arte: Richie Bearden

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