quinta-feira, 21 de setembro de 2023

RETRATOS FANTASMAS


Por Ricky Nobre

Dizer que Retratos Fantasmas é o filme mais pessoal de Kleber Mendonça é até um eufemismo. O filme é concebido e estruturado como uma coleção de memórias resgatadas e definidas a partir dos lugares, sendo a primeira parte na casa onde ele viveu a maior parte de sua vida e rodou seus primeiros filmes experimentais e seu primeiro longa-metragem (O Som ao Redor), das ruas e prédios de sua vizinhança e do centro de Recife e de seus cinemas. 

 

A narração feita pelo próprio Kleber pode ao mesmo tempo passar uma sensação de frieza, principalmente por ser claramente lida, mas também uma intimidade única, onde uma certa insegurança do diretor no papel de narrador dá uma impressão de timidez e de alguém que está, num tom baixo de voz, contando coisas muito íntimas. E esse tom de quase confissão torna a jornada que Kleber nos apresenta uma experiência para o espectador, às vezes doce, às vezes angustiante, às vezes amarga.

 

A conexão entre a mãe historiadora e a reconstrução do passado feita pelo diretor dão o tom do filme desde o início, principalmente a partir do trecho de entrevista onde ela fala da História a partir da tradição oral. Sua impressionante coleção de imagens, boa parte feita pelo próprio Kleber quando jovem, é um amálgama de uma História documentada e uma História narrada a partir de uma perspectiva muito pessoal. Toda essa tapeçaria muito bem montada cria uma ressonância clara, lúcida, mas também poética, onde a constante mudança de sua casa e seus entornos ecoam nas mudanças no centro de Recife e nos cinemas que foram desaparecendo. É muito curiosa a forma como Kleber costura cenas de diversas épocas de Recife, seus prédios e seus cinemas com trilhas sonoras bem antigas, que dão um tom que vai do épico ao sinistro, como algo grandioso que vai se deteriorando, em sua decadência nas sombras.

 

Essas duas partes muito ricas são seguidas de uma terceira bem mais curta e menos interessante, onde se fala especificamente (e superficialmente) de quantos cinemas viraram igrejas e sobre o grande sobrevivente de Recife, o cinema São Luiz. A conclusão no único segmento ficcional do filme meio que tenta criar uma simbologia de tudo que estava já absolutamente claro durante todo o filme, e termina num tom de estranheza, não no bom sentido. A recriação ficcional do "homem do povo" chega a ser constrangedora diante, por exemplo, da doce e emocionante realidade das imagens do projecionista do cinema Art Palácio, Seu Alexandre. 

 

Indo agora para uma abordagem muito mais pessoal, acredito que o documentário ressoe de forma diferente entre cinéfilos de diversas idades. Pelo fato de eu regular de idade com Kleber, muita coisa ressoou muito forte em mim. Essa identificação de quem cresceu nos cinemas de rua intensifica muito a experiência de Retratos Fantasmas e sua relação com o tempo, a memória, os lugares e a arte. 

 

Apesar de ser do Rio de Janeiro, muitas das experiências narradas e das percepções compartilhadas me pareceram as mesmas, não só os filmes vistos, mas as experiências, as descobertas, como quando ele diz que começou a prestar atenção ao som dos filmes no cinema Veneza, ou que o longo muro de cartazes e fotos era como uma exposição de arte a céu aberto e também o primeiro contato com a existência de novos filmes, e também a amargura em ver essas salas fechando uma a uma. Quando ele cita que muitos falam de seus cinemas favoritos como "templos", lembro que eu chamava o Metro Boavista na Cinelândia de "catedral", sendo o cinema com a melhor e mais majestosa projeção do Rio de Janeiro. Lembro que fui me despedir dele em seus últimos dias, com o filme O Inferno de Dante, já largado, imagem escura e som fraco. Foi desolador. Ao final, lembro de beijar a cadeira à frente de mim e sair. Como Seu Alexandre, era como se eu também tivesse fechado aquele cinema com uma "chave de lágrimas".

 COTAÇÃO:


 


RETRATOS FANTASMAS (Brasil, 2023)

Direção, roteiro e narração: Kleber Mendonça Filho

Montagem: Matheus Farias

Música original: Tomaz Alves Souza

 

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