Por Ricky Nobre
Numa época de cinema feio que estamos vivendo, principalmente no âmbito das grandes produções, o novo filme de Gareth Edwards sucede de forma digna o recente fenômeno Barbieheimer, onde duas obras de apurado esmero visual tomaram as bilheterias de assalto. Resistência mostra um mundo onde as inteligências artificiais começaram a ser desenvolvidas ainda nos anos 1950, chegando a um desenvolvimento tal de tornarem-se indivíduos. Porém, uma bomba nuclear destrói Los Angeles a as IA são apontadas como responsáveis. Tendo a Ásia como refúgio, elas tentam se proteger da campanha militar internacional dos EUA para erradicar as inteligências artificiais do planeta. Isso é apresentado em um prólogo rápido e engenhoso que em uns dois minutos já estabelece tudo o que o público precisa saber.
A partir daí conhecemos a história de Joshua, um militar americano infiltrado na resistência das IAs com o objetivo de localizar e eliminar seu criador, que é referenciado como um deus por elas. Uma falha na operação custa seu disfarce e a vida de sua esposa grávida, e ele volta para os EUA e desiste do exército. Anos depois, os militares o procuram afirmando que sua esposa está viva e pedindo que volte para concluir a missão. A partir daí o filme segue com excelentes sequências de ação que levam o protagonista a proteger uma IA em forma de criança, cuja origem é um mistério. Na jornada, o público vai tomando conhecimento de como a comunidade de IAs se integra à população asiática, tanto rural quanto urbana, onde Edwards estabelece claros paralelos entre a presença militar norte americana ali e sua forma brutal de lidar com a população humana local que protege os androides, com o padrão já conhecido das campanhas do país pelo mundo através da História, e o diretor não poupa ecos visuais com a guerra do Vietnam.
Com boas interpretações e personagens bem delineados e ótimos diálogos, é fácil o espectador se deixar levar pela história e pela jornada torturada do protagonista, que vive o dilema do agente infiltrado, sempre entre o dever e a ética. O que vai incomodando crescentemente e vai se acumulando ao longo da projeção é que o filme sugere um grande número de ideias e sugestões de abordagens e discussões de forte teor político, que enriqueceriam imensamente a obra. De forma quase inacreditável, Edwards consegue a proeza de não desenvolver rigorosamente nenhuma dessas ideias que, muitas vezes, são citadas por poucos segundos e abandonadas. Só a título de exemplo, a região onde as IAs buscam refúgio é chamada de Nova Ásia. Por que é nova e qual a relevância dessa configuração geopolítica aparentemente não interessa, parece ser apenas uma sacadinha com a situação atual onde a China se contrapõe fortemente aos EUA na esfera econômica. Uma revelação sobre o que realmente teria acontecido no bombardeio de Los Angeles se resume a uma única frase de um personagem para ser imediatamente abandonada. A ideologia “oficial” que sustenta o ódio dos humanos às IAs é resumida a dois ou três momentos muito rápidos, como a frase recorrente “eles não são vivos” e um comentário como “vi um vídeo que diz que eles querem nossos empregos”.
É quase como se Edwards achasse que a premissa essencialmente política do filme fosse um estorvo ao seu espetáculo de ação e à jornada individual do protagonista. Mas simplesmente não dá para criar um mundo dividido por uma guerra de cunho xenófobo e evitar se aprofundar na questão em todas as oportunidades que tem. Essa superficialidade acaba dando espaço para um maniqueísmo simplista que, embora se sustente no princípio razoável dos EUA como vilões e as IAs como vítimas, mantém tudo num desenvolvimento muito raso.
Infelizmente, mesmo
no âmbito estrito da aventura de ação, o terceiro ato deixa a desejar, sendo a
missão final um pouco confusa e com um grande momento final que acaba não sendo
tão emocionante quanto Edwards parece ter pretendido, com algumas situações um
pouco forçadas para chegar até determinado ponto. Resistência tem claras pretensões
de se tornar uma franquia e caso consiga seria uma ótima oportunidade de
explorar tudo o que aqui foi evitado. O filme não deixa de empolgar por sua
história, ritmo e bela concepção visual, até bastante impressionantes pelo orçamento de 80 milhões, bem abaixo das grandes produções recentes (incrível como a câmera usada foi a baratíssima FX3 da Sony), e vários de seus problemas podem passar
despercebidos num primeiro momento. Mas é um desperdício ver justamente na
ficção científica, um gênero com longa reputação em discutir questões
humanitárias, políticas e sociais, um filme com tanto potencial entregar algo
tão raso. Mesmo assim, é uma experiência válida, nem que seja para refletir
sobre tudo o que o filme evita e admirar uma produção refinada feita com um orçamento realista para o cinema de hoje.
COTAÇÃO:
RESISTÊNCIA (The Creator, EUA – 2023)
Com: John David Washington, Madeleine Yuna Voyles, Gemma Chan, Allison Janney e Ken Watanabe
Direção: Gareth Edwards
Roteiro: Gareth Edwards e Chris Weitz
Direção de fotografia: Greig Fraser e Oren Soffer
Montagem: Hank Corwin, Scott Morris e Joe Walker
Música: Hans Zimmer
Design de produção: James Clyne
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