terça-feira, 11 de junho de 2013

O Herói fala

Como o assunto está em alta, o Renato é fã incondicional e eu estou correndo para actualizar os blogs, deixo para vocês um texto de 2008, dando a palavra ao homem de aço, lorde Kal-El.


Por Nanael Soubaim.

Antes de mais nada, quero que não entendam este desabafo como ameaça (não sou dado às bravatas) nem choramingo (prantos são para quem os merece) de minha parte. Falo pelas mãos do blogueiro que me emprestou sua consciência na dimensão de vocês.

Meus pais adoptivos são verdadeiros deuses. Eles, bem mais do que eu, merecem ser chamados de heróis. Sou um extraterrestre, mesmo assim souberam me fazer sentir um humano normal, me valer das dificuldades humanas para resolver meus problemas e os dos próximos, pelo que minhas faculdades alienígenas só são usadas quando realmente necessário. Aprendi a ser humilde. Poderia ter dominado o planeta de vocês sem dificuldade, o que uma educação equivocada ou negligente teria causado. Mas esses dois terráqueos conseguem ser mais fortes do que eu, basta que digam "sente-se e ouça" para me neutralizarem completamente, ao passo que nem os buracos negros resistem à minha força física. Eles sim, mereceriam uma série e uma revista só para eles, para que ensinassem as pessoas a educar seus rebentos. E é por esta educação exemplar, que beira a perfeição, que desabafarei agora, pois a mim ninguém atinge. Eles tornaram meu carácter mais invulnerável do que meu corpo, mas atingiram as duas pessoas que mais amo no universo, isso sim feriu meu coração. Sim, eu tenho e ele está ferido.

Eu nunca fui contra o progresso, as evoluções sociais e a passagem do tempo. Já tenho sete décadas de criação e minha maturidade me permitiria aceitar até o fim das minhas publicações. Pequenas alterações nos meus trajes, Louis ficou com um gênio ainda pior do que nas primeiras estórias e eu só me apaixonei ainda mais por ela. Um conselho aos mais moços, prefiram as bravas, como a Esther da publicação lá em baixo, são as melhores esposas e mães. Moscas mortas e submissas são um passaporte para o adultério.

Agora me digam, como com uma educação assim, eu poderia me corromper? Tendo me atirado uma série de vezes à morte certa, encarando a kriptonita e estrelas vermelhas, eu teria medo da dor? Aprendi a me virar como se fosse um humano comum, teria então medo de perder minhas faculdades especiais? Meus pais genéticos me salvaram sem pensar duas vezes e sem poderem se salvar, meus pais adoptivos me ensinaram a amar o trabalho honesto e tudo o que ele representa, eu jamais desonraria a doação que esses quatros santos me fizeram. Por isso não posso aceitar que um burocratazinho sem talento venha manchar a reputação que eu levei décadas para construir. Essa reputação deixou de ser minha quando o primeiro garoto, ainda nos anos 1930, começou a brincar de um herói que é uma pessoa normal durante a maior parte do tempo. Meu nome é Clark, o herói é um alter ego que protege minha vida privada, é isso que mais procuro ensinar: A pessoa é que faz o título. O resto é ilusão.

Se antes era honesto porque gostava, desde então sou também por obrigação, tenho satisfações a dar para quem se espelha em mim. E eu gosto disso, pois deixo de ser um simples entretenimento e passo a ter utilidade na dimensão de vocês. Isso vale mais do que todas as riquezas do universo.

Sim, na época da minha criação as crianças eram mais inocentes. Mas não se iludam, não eram estúpidas, percebiam o mundo ao seu redor, eram bastante espertas, em certos pontos até mais que as de hoje. É compreensível que linguagens e hábitos dos quadrinhos acompanhem a, perdoem o neologismo, espertificação precoce das crianças. Natural que tabus sejam abordados e que fique claro que ninguém é perfeito, não havendo motivos para que eu seja. Mas há um abismo entre ser imperfeito e ser medíocre. Estão mediocrificando a minha imagem.

Inventaram um marginal espacial que fizeram dar uma surra em "mim". Pela força ninguém me alcança. Pode parecer uma declaração arrogante, mas falsa modéstia não é o meu forte. Se o mal tivesse metade da força do bem, todos os filmes de terror que vocês já viram seriam brincadeiras de crianças. Se o mal triunfa em algum lugar, é porque os cidadãos de bem se omitem, quando agem a fraqueza dos maus se revela e os derrota. Todas as vezes em que a voz do cidadão honesto se levantou em massa, todas as hordas da corrupção se calaram, tremendo nas bases, pois elas sabem que serão massacradas se um dia enfrentarem vocês abertamente. O que esses idiotas estão fazendo é fomentar o louvor ao banditismo, a desesperança e a banalização das pessoas como coisas. Isso é hediondo! Estão destruindo sonhos, que são o que separa as pessoas da insanidade e a sociedade da barbárie. Uma pessoa sem esperanças não tem motivos nem ânimo para trabalhar por si mesma, é presa fácil para a influência dos vilões e seus mentores. Torna-se um bandido na primeira oportunidade, ainda que não tenha tendências sociopatas.

Em nome de uma falsa modernidade embruteceram o meu personagem, sendo que meus pais sempre me ensinaram (com sucesso) a ser polido com as pessoas, o que não significa que eu deva ser um bestalhão que coloca a cara como alvo de tortas. Pelo contrário, Dark Side conheceu meu aborrecimento e se arrependeu de tê-lo provocado. Não gostei do que fiz, mas farei de novo sempre que for necessário. Isso não é ser ultrapassado. Ser ultrapassado é usar um MP4 e se comportar como um huno em sociedade, dirigir um carro com piloto automático via satélite e jogar no bueiro as leis de trânsito como um medieval errante, chamar a atenção para os desmandos alheios e pilhar na especulação como se estivesse negociando escravos. Meus amigos, esse mundo que tentam vender a vocês só é moderno na aparência, é uma tinta brilhante, mas que se descasca ao menor toque. "Com licença", "Por gentileza", "Me desculpe" e "Disponha" não são cousas que devam ser esquecidas.
Há muitos hábitos bons da minha época de novato, que seriam de grande utilidade para o mundo da internet com vídeos. Eu já baixei um sem-número de músicas e episódios, sempre depositando os direitos de quem trabalhou por eles. Mas não querem que vocês façam isso. Aliás, querem, mas só com os gibis (gostei desse nome, melhor do que "comics") e cacarias que eles produzem. Com os outros eles mais querem que vocês tirem o escalpo, para poderem depois alegar "Todo mundo faz, então eu também posso". Não têm talento senão para arrancar seus suados dólares (ou reais, ou pesos, ou euros...) sem dar a mínima para a origem do dinheiro. Predação é um nome feio para os eufemismos politicamente correctos que inventam para seus actos, mas é o que fazem mesmo sabendo que o predado acaba. Acreditem, não me importo com a tanguinha roxa do último filme com o meu alter ego, embora prefira o velho calção vermelho. O que não quero é que, algum dia, um rapaz escreva uma carta dizendo que é meu fã e por isso decidiu ficar covarde e palermão "igual a mim". Se isso acontecer eu ficarei realmente furioso.

Eu sou um homem honesto, procuro ser gentil e prestativo, relevo as pequenas ofensas do dia a dia, cedo com prazer o táxi para a mulher com sacolas de compras. Não fumo, pois o cigarro dá prazer às custas do vício, e eu sou invulnerável. Nenhuma substância impressiona meu cérebro, apenas percebo o (no caso, mau) odor da fumaça por sinais eléctricos dos neurônios. Bebo porque uma bebida bem destilada tem um sabor refinado, mas não me causa prazer além do paladar. Gosto da vida tranqüila que levo. A maior parte do tempo eu nem lembro que existem ameaças, passam-se meses sem que eu precise sequer voar. Vivo como vocês. Portanto não é a um herói que estão ofendendo, é ao cidadão comum, que resiste à tentação do ganho ilícito e quer que o próximo também tenha uma subsistência digna. Ao contrário do meu amigo Batman, um herói de primeira linha que se disfarça de Bruce Wayne, eu sou Clark Kent e me disfarço de Super Homem para a maior parte dos salvamentos, pois às vezes posso fazê-los sem sem precisar sair das minhas roupas comuns. As aventuras que eu avalizava eram uma amostra pequena do meu cotidiano. Se estivéssemos na mesma dimensão, vocês passariam por mim sem se darem conta, a não ser pelo meu tamanho. O porte atlético é comum aos Kent e me pareço muito com eles. Tenho um bom carro, não é luxuoso nem vai a trezentos por hora, mas satisfaz às necessidades de minha família.

Estão vendo? Não sou um ser de outro mundo, só de outra dimensão. Pois adoptei a Terra como meu lar e aqui quero criar meus filhos, ensinando-os o que meus pais me ensinaram, mostrando que a vida como humano é muito mais divertida do que o pedestal dos heróis. Nisto os roteiristas de talento se baseavam para escrever minhas aventuras, nisto eu assentei toda a minha reputação. E são pessoas que fazem e deixam de fazer. Não existe mercado, nem moda, nem tendência, nem outra explicação canhestra para colocar a culpa do que acontece com o mundo. Só existem as pessoas, e as pessoas têm coração, são melhores e mais sensíveis do que fazem parecer, mas estão com medo de se revelarem.
Topo encerrar minha carreira nos gibis, se isso significar o fim do louvou ao que não presta. Se isso significar que vocês passarão a olhar para o seu semelhante como semelhante, não como "o outro", que é o que eu sempre procurei ensinar nas entrelinhas de minhas aventuras. Se vocês não compram, eles terão que mudar para não fecharem as portas. Podem brincar à vontade: Supermongo, Supersucker, Supermané, Super-ado; eu não me importo. É sabido que a sátira neste nível inverte a realidade, apenas para fazer rir. Eu rio.
Tirar qualidades dos heróis não ajuda senão aos que ganham com o ilícito, com o tráfico de armas, de drogas e com o escravagismo. Gostaria muito que isso voltasse a ser motivo para as páginas policiais e não as colunas sociais e revistas de artistas.
Gostaria muito de voltar a ouvir, sem o disfarce azul e vermelho, uma criança dizer "Para o alto e avante".

Nenhum comentário: