segunda-feira, 3 de julho de 2023

INDIANA JONES E A RELÍQUIA DO DESTINO

Por Ricky Nobre

George Lucas criou suas obras mais inesquecíveis olhando para o passado. Seu primeiro grande sucesso foi a comédia adolescente Loucuras de Verão, que nada mais era que reminiscências de sua juventude nos anos 60. O fenômeno de Star Wars veio do desejo de reviver os antigos seriados de ficção científica, como Flash Gordon, além de elementos dos antigos westerns e filmes do Kurosawa. Indiana Jones não é diferente. Quando seu amigo Spielberg lamentou não terem deixado ele dirigir um filme de James Bond, Lucas teria dito "esquece, tenho algo muito melhor". A inspiração era os antigos seriados de aventura onde o herói enfrenta os inimigos em cenários exóticos. Mas, como nos exemplos anteriores, Lucas não apenas copiava o passado, mas o reinventava. Indiana Jones veio como uma evolução do herói infalível e invencível, como o próprio James Bond. Indiana Jones erra, apanha, é traído, apanha, se estabaca, apanha... Nas palavras do próprio Lucas, "ele parece estar sempre um passo atrás do que é exigido dele". Mesmo assim, ele nunca desiste, e vai no limite do que seu corpo surrado aguenta. Em seu primeiro filme, Os Caçadores da Arca Perdida (1981), Marion tenta cuidar dos seus ferimentos e diz que os anos foram duros com ele, ao que ele responde: "Não são os anos, meu bem, é a quilometragem". 

 

Em Indiana Jones e A Relíquia do Destino, Harrison Ford, aos 80 anos, interpreta seu célebre personagem aos 70, com muitos anos e quilômetros rodados. Após um prólogo passado em 1945, onde o rejuvenescimento digital dá a impressão que a luz que ilumina o rosto de Ford é completamente diferente da que ilumina todo o resto, pulamos para 1969, onde o septuagenário professor sem camisa pega um taco de basebol para reclamar dos vizinhos jovens que tocam Beatles muito alto. Eles, assim como seus alunos na universidade, estão completamente desinteressados pelo professor Jones. O que importa é que o homem chegou à Lua. 

 

Enquanto Jones está em vias de se aposentar do magistério, a filha de um antigo amigo (e também sua afilhada) vem à sua procura para reaver um artefato criado por Arquimedes capaz de detectar fendas no tempo, objeto que também está sendo procurado por um antigo inimigo nazista, que pretende usá-lo para reviver o terceiro reich. O grande herói dos anos 80, revivido em 2008 num filme medíocre com raríssimos momentos de brilho, chega à sua quinta e derradeira aventura exausto. Não apenas pela idade, mas pela vida. Após perder o filho no Vietnam (e assim a produção descarta um problema chamado Shia Lebouf), seu casamento chega ao fim, deixando um amargor no público, uma vez que Marion foi a melhor coisa do quarto filme. A figura de Jones é muito distante daquela vigorosa que temos na memória, por mais que a série sempre tenha estabelecido uma clara distinção entre o aventureiro Indiana Jones e o Dr. Jones da sala de aula. E, para além da exaustão, ele parece não se sentir parte do mundo à sua volta. 

 

Essa sensação de se sentir uma relíquia em um mundo em rápida transformação é muito bem simbolizada na cena em que Indy foge dos inimigos montado a cavalo dentro do metrô de Nova Iorque. Porém, essa sensação de deslocamento somada ao peso da idade vai deixando de assumir um sentido mais profundo na narrativa em favor da ação e da trama propriamente ditas, assumindo uma função mais direta na história apenas para ilustrar as dificuldades físicas do personagem em lutar e correr como antigamente. O que, por si só, já é uma situação típica do personagem, que é estar sempre aquém do que lhe é pedido.

 

O diretor James Mangold, um “operário padrão” de Hollywood, capaz de obras tão díspares como Copland (1997) e Garota, Interrompida (1999), já havia tratado do crepúsculo de um herói envelhecido no excelente Logan (2017). Aqui, Mangold pode ter sentido o peso da responsabilidade e do legado de Indiana Jones que, querendo ou não, é muito mais longevo e influente no mundo do cinema do que o mutante interpretado por Hugh Jackman. O diretor faz tudo muito correto, mas sem uma maior criatividade estilística ou narrativa, limitando-se a imitar (de forma parcimoniosa, felizmente, para evitar o ridículo) o estilo que Spielberg imprimiu aos quatro filmes anteriores. A fotografia segue os tons terrosos usados por Douglas Slocombe na trilogia original, mas cai no grande mal contemporâneo que é a escuridão tenebrosa nas cenas noturnas, que chega a dificultar o entendimento, principalmente no prólogo. O CGI não passa nem perto de alguns momentos lamentáveis do quarto filme, tendo um bom resultado no geral, apesar da já citada estranheza do rejuvenescimento de Ford em alguns momentos dos flashbacks. Por outro lado, as cenas de ação, apesar de boas, passam longe daquele charme e inventividade que só Spielberg sabe dar. É também lamentável que uma das principais características da franquia, que é sua proximidade com o cinema de horror, tenha desaparecido completamente aqui, seguindo a tendência do próprio Spielberg de atenuá-la a partir do terceiro filme.

 

Mas o instrumento estilístico mais precioso, que é essencial no esforço em manter a identidade do filme íntegra, é a música de John Williams. Aos 91 anos, o compositor que fez história em Hollywood apresenta o que, possivelmente, é seu último trabalho (até que Spielberg consiga convencê-lo a trabalhar em seu próximo projeto). Por um lado, a produção de quase duas horas de música sinfônica parece já ser uma tarefa demasiado pesada para o compositor, que apresenta não apenas a citação e a reciclagem de ideias musicais de todos os filmes anteriores da série, mas também de vários outros trabalhos seus não relacionados. Mesmo não sendo um trabalho particularmente inspirado, o som de Williams é ele próprio uma relíquia desaparecida do cinema, e a atmosfera que ele imprime já é suficiente para trazer um pouco da magia da franquia de volta. 

 

No geral, a dinâmica entre personagens é boa mas aquém dos anteriores. Entre as novas personagens, a que traz algum frescor maior é sem dúvida Helena. Sendo o próprio Indy uma espécie de anti-herói, assim como os mais célebres personagens de Harrison Ford, sua afilhada não é diferente, e há uma constante rivalidade entre os dois e uma dúvida sobre aonde recairá sua lealdade, sendo uma personagem que, da forma como foi escrita, cai muito bem para Phoebe Waller-Bridge. O Dr. Voller de Mads Mikkelsen não traz grandes novidades mas funciona muito bem, principalmente pelo ator que, como sabemos, é incapaz de errar. Seus capangas, infelizmente, são 100% genéricos, até mesmo o de Boyd Holbrook, que teria feito melhor se tivesse o que fazer. Antônio Banderas passa voando pelo filme, o que é um desperdício de seu talento, e o jovem Teddy (Ethann Isidore) funciona como o sidekick de Helena, apesar do carisma quase zerado do rapaz. A agente da CIA interpretada por Shaunette Renée Wilson, que captura o olhar sempre que aparece, merecia ser melhor trabalhada, mas ela tem ali uma função clara, que é representar o que acontece quando o governo se deita com fanáticos, nazistas e afins.

 

A esta altura, a Lucasfilm/Disney impôs um desafio imenso para si mesma. Se o personagem Indiana Jones se percebe deslocado, sem lugar neste mundo que não o enxerga mais, a franquia também está a duas gerações do público atual, deixando dúvidas se o público jovem se interessará em encher os cinemas. Com um orçamento astronômico de 300 milhões de dólares, mais estimados 100 milhões de marketing, o filme precisa bater bilhão para dar algum lucro, acentuando a crise atual onde filmes cada vez mais caros disputam um público que segue se desinteressando pela experiência das salas em favor do streaming que, por obra dos próprios estúdios, exibem os filmes do cinema cada vez mais cedo.

Esse é um filme que corre riscos para além de seu orçamento exorbitante. A passagem de tempo que, num estalar de dedos, passa do jovem Indiana Jones heroico no final da Segunda Guerra para um professor envelhecido se irritando com música alta traz um certo choque, que se agrava ao percebermos sobre o quanto a perda da família também levou sua vontade de viver. É um balde gelado e denso de realidade sobre o mundo de fantasia de Indiana Jones, que o filme trata muitas vezes com humor, mas também, em momentos chave, com acentuada amargura. Embora sejam temas que o roteiro poderia ter refinado bem mais, enriquecendo o teor dramático, o filme sabe para onde quer ir e guarda um tesouro escondido. Fruto de uma onda de nostalgia que reviveu várias antigas franquias, Indiana Jones e A Relíquia do Destino sugere, paradoxalmente, que se viva o presente em vez de se refugiar no passado, por mais que o mundo lhe pareça hostil, principalmente se percebermos que é também do passado que voltam os maiores horrores. Já aos 70 anos de idade, o Dr. Jones jamais imaginaria que teria, àquela altura da vida, que lutar contra nazistas de novo. Nós também não, Dr. Jones. Nós também não.

 COTAÇÃO:


 


 

INDIANA JONES E A RELÍQUIA DO DESTINO (Indiana Jones and The Dial of Destiny, EUA – 2023)

Com: Harrison Ford, Phoebe Waller-Bridge, Mads Mikkelsen, Toby Jones, Boyd Holbrook, Shaunette Renée Wilson, Antonio Banderas, John Rhys-Davies, Ethann Isidore e Karen Allen

Direção: James Mangold

Roteiro: Jez Butterworth & John-Henry Butterworth e David Koepp & James Mangold

Produção executiva: George Lucas e Steven Spielberg

Direção de fotografia: Phedon Papamichael

Montagem: Andrew Buckland, Michael McCusker e Dirk Westervelt

Música: John Williams

Design de produção: Adam Stockhausen

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