domingo, 30 de julho de 2023

MISSÃO IMPOSSÍVEL: ACERTO DE CONTAS PARTE 1

Por Ricky Nobre

É difícil acreditar que já se passaram 27 anos desde o lançamento do primeiro filme, que surgiu num boom hollywoodiano de adaptar séries de TV antigas para filmes, que teve sucessos como Família Addams e As Panteras, mas também fracassos como O Santo, Mod Squad e James West. Missão Impossível estava entre os projetos bem-sucedidos, porém ninguém esperava que se tornasse uma franquia tão longeva e com qualidade tão acima da média. Uma de suas mais curiosas e positivas características era a variedade de pontos de vista criativos que, de uma forma ou de outra, foram sendo incorporados na franquia. 

 

Do mestre Brian de Palma ficou uma excelência na construção do suspense, um mise en scène muito elegante e um maneirismo que privilegiava o estilo acima de detalhes mais realistas. Do grande nome do cinema de ação de Hong Kong John Woo ficou a centralidade do herói acrobata, quase super-herói, com ênfase ainda maior na estilização. Do, na época, estreante e jovem fenômeno do sucesso televisivo Lost J.J. Abrahams ficou o resgate do trabalho em equipe e uma virada para um realismo de ficção científica, que dava uma cara mais crível aos elementos impossíveis. Do diretor de animações em sua estreia em live action Brad Bird ficou um sólido amálgama dos elementos anteriores onde, ao mesmo tempo que era, até então, o ápice da celebração do Tom Cruise super dublê, também se aprofunda um pouco mais nos demais personagens da equipe, formando uma identidade mais sólida daquele grupo. Parece impossível melhorar, não? Mas a missão é, de fato, impossível, e aí entra Christopher McQuarrie.

 

Após uma parceria muito bem-sucedida com McQuarrie quando este o dirigiu em Jack Ritcher, Cruise trouxe o cineasta para revisar o roteiro do quarto filme que, segundo ele, não estava funcionando. O que de fato estava acontecendo é que, apesar de Cruise ser o produtor da franquia desde o primeiro filme, a Paramount estava tentando afastar o ator e substituí-lo nos filmes seguintes pelo personagem de Jeremy Renner. Cruise virou a mesa com a revisão do roteiro e se manteve como astro da franquia, e McQuarrie voltou no quinto filme, desta vez como diretor. A entrada de McQuarrie solidifica a identidade estilística da franquia como um majestoso espetáculo de ação, cujo desafio nos filmes seguintes seria testar os limites do quão gigante, intenso e emocionante ele poderia ser. A franquia que tinha um diretor diferente por filme agora tem seu terceiro sob o comando de McQuarrie, que possui um domínio da ação fora do comum, sendo um dos raríssimos cineastas de sua geração que não recorre a câmera chacoalhada e montagem histérica, realizando as sequências mais complexas e velozes de forma não apenas absolutamente excitante, mas compreensível.

 

Apesar das excelentes cenas de ação, é a construção magistral do suspense que é o diferencial deste sétimo filme. É muito interessante como o diretor, enquanto mantém o estilo que ele próprio solidificou na franquia nos últimos filmes, também promove uma espécie de “volta às origens”, que tem no retorno do personagem Kittridge (que esteve apenas no primeiro filme) um símbolo. O suspense de Acerto de Contas é descendente do exercício hitckcockiano que De Palma forjou em 1996, que deixa o público constantemente da ponta da cadeira e, falando especificamente, resgata a sensação de paranoia, onde não se pode confiar totalmente em nada nem em ninguém.

 

Nesse sentido, o McGuffin do roteiro tem um papel vital e bem mais amplo que o habitual. Para quem não está habituado com o termo, McGuffin é um conceito hitchcockiano para designar o elemento prático que leva a trama e os personagens adiante, algo que eles precisam fazer, adquirir, destruir. Hitchcock não dava a menor importância a qual seria esse elemento, poderia ser qualquer coisa pois ele não era o foco, mas sim como os personagens se moviam a partir disso. Aqui, a chave em duas metades é o McGuffin prático, o objeto que move todos os personagens. Porém, o que ele representa transcende sua utilidade instrumental na construção do roteiro. A ideia de uma inteligência artificial consciente, já espalhada por todo o mundo e, mais que isso, a certeza de quase todas as partes interessadas de que ela pode ser controlada torna-se tanto um dilema ético e uma urgência vital para todos os personagens, como também, por sua natureza e práticas, fonte constante de paranoia, medo e, para o espectador, suspense. 

 

Se a “Entidade” é a própria trama e o dilema moral e ético do filme, ela é também a vilã, ainda que etérea, um fantasma que assombra, mas também um prêmio, um tesouro proibido a ser conquistado. Gabriel é o vilão “presencial”, ainda que também seja, de certa forma, um fantasma do passado de Ethan, personagem que não costuma ter sua história muito esmiuçada. Daí talvez venha a maior fragilidade do filme, pois o personagem é essa ameaça que desestabiliza Ethan mental e emocionalmente, porém carece tanto de uma escrita mais refinada como também de um ator mais carismático que preenchesse o vácuo deixado pelo roteiro. Porém, essa atmosfera de ameaça intangível e onipresente, quase espiritual, é tão bem estabelecida, que aqueles que, na prática, são os vilões “secundários”, ou seja, todos que pretendem adquirir a chave para uso próprio, são também meio vítimas desta “força maior” da qual, mais cedo ou mais tarde, não escapam.

 

Os personagens são sempre muito bem cuidados por McQuarrie, de forma que o destino deles é sempre uma preocupação para o público. É bem esperta a forma como se cria uma dinâmica muito divertida entre Ethan e Grace partindo da enorme habilidade dela em seu ofício de ladra, mas total inabilidade para as acrobacias de um agente da IMF. É impressionante a capacidade do diretor em dominar e se utilizar dos espaços para a construção da ação e do suspense, seja a dinâmica da dupla algemada no minúsculo Fiat 500, seja na longuíssima sequencia no trem, com múltiplas fases e que acomoda praticamente todo o terceiro ato.

Sendo uma “parte 1”, a trama de Acerto de Contas não se conclui, deixando isso para a segunda parte com estreia para junho de 2024. Se será a conclusão da franquia para Cruise ou não, ainda não está definido. O filme, que já havia sofrido inúmeros adiamentos por ter iniciado a produção logo antes da pandemia, acabou se prejudicando muito por ter sido lançado uma semana antes dos fenômenos de Barbie e Oppenheimer, que a Paramount subestimou enormemente ao escolher a data de lançamento. É lamentável que um espetáculo como esse tenha sido esquecido nas salas de cinema, porém estamos em tempos que o elevado preço dos ingressos obriga o espectador a algumas “escolhas de Sofia”. Resta torcer para que a parte 2 não encontre no caminho outro trem desgovernado como Barbenheimer.


COTAÇÃO:


 

 

MISSÃO IMPOSSÍVEL: ACERTO DE CONTAS PARTE 1 (Mission: Impossible, Dead Reckoning Part 1, EUA – 2023)

Com: Tom Cruise, Hayley Atwell, Ving Rhames, Simon Pegg, Rebecca Ferguson, Vanessa Kirby, Esai Morales, Pom Klementieff e Henry Czerny

Direção: Christopher McQuarrie

Roteiro: Erik Jendresen e Christopher McQuarrie

Montagem: Eddie Hamilton

Direção de fotografia: Fraser Taggart

Música: Lorne Balfe

Design de produção: Gary Freeman

 

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