sexta-feira, 11 de agosto de 2023

ASTEROID CITY

 Por Ricky Nobre

Todo cineasta com um estilo muito marcante, seja ele maneirista ou não, mais cedo ou mais tarde corre o risco de parecer uma caricatura de si mesmo em algum momento. Wes Anderson não é exceção, especialmente por sua tendência de, a cada filme, intensificar mais e mais seu estilo que não se atém meramente à estética, mas à própria identidade de sua construção narrativa. Seu filme anterior, Crônica Francesa, meio que já apontava nessa direção, como se ele já estivesse apresentado apenas mais do mesmo. Asteroid City, porém, vem quebrar esse movimento. Radicalizando ao máximo seu estilo, Anderson revigora seu cinema realizando uma obra que não apenas possui uma identidade que nenhum outro conseguiria imprimir, mas principalmente promove, ao mesmo tempo, uma reflexão e uma apoteose de seu maneirismo extremamente particular.

 

Para Anderson, a realidade é em preto e branco numa janela 4 por 3, enquanto a fantasia existe numa tela scope, com cores pasteis altamente saturadas. Mas o diretor, por vezes, pega essas duas concepções estéticas, de aparências diametralmente opostas, e borra seus limites. Anderson poderia perfeitamente se ater à história principal, muito identificada com seu cinema, onde brilhantes jovens e suas famílias visitam uma pequena cidade no meio do deserto (onde existe uma cratera formada pela colisão de um asteroide, que é ponto turístico), onde receberão prêmios por seus projetos de ciência. Ali, dentre as diversas interações entre os moradores da cidade e os visitantes, destaca-se aquela entre o recém viúvo Augie e a famosa atriz Midge Campbell. Um acontecimento extraordinário, porém, força a todos permanecerem na cidade sob quarentena onde, em meio a uma sátira à paranoia americana, jovens começam a conhecer a vida e adultos aprendem a recomeçar. 

 

Mas nada disso é “real”. É uma peça de teatro do autor Conrad Earp, e conhecemos seu processo criativo e sua relação com os atores, numa estrutura semelhante a um documentário de TV. Inicialmente, dá a impressão de que a história principal se bastava, e toda essa parte sobre o autor da peça apenas puxa o filme pra baixo. Mas logo fica claro como as narrativas são entrelaçadas tematicamente, conforme conhecemos as relações entre autor, diretor e atores e entre os personagens da obra. É fascinante como Anderson escolhe que essa obra de ficção dentro da ficção seja uma peça teatral e não um filme, sendo o cinema a sua mídia e, mais ainda, como ele sinaliza essa teatralidade com o exagero de seu próprio estilo artificial, evitando completamente o “teatro filmado” e entregando 100% de cinema. 

 

Desta forma, a história que se passa em Asteroid City tem toda a artificialidade do ambiente de estúdio, mesmo que tenha sido filmada em locações externas, indo mais além ao não esconder que as montanhas rochosas ao fundo não passam de cenário esculpido (e é tão parecido com um cenário do Papa-Léguas que, em determinado momento, um papa-léguas realmente aparece...), numa perspectiva forçada que não é completamente eficiente, propositalmente denunciando sua “falsidade”, tudo isso enfiando ainda mais o pé nessa jaca que é a paixão de Anderson por esse estilo de artes gráficas dos anos 1950. Esse grafismo está presente tanto nas cores, tão fortes que o contraste entre elas define mais a imagem do que o contraste da luz, quanto na já famosa simetria de Anderson que, diferente do rigor e da austeridade com que essa simetria era usada, por exemplo, por Kubrick, aqui ela se traduz em harmonia e leveza, características essas que estão em toda parte, seja no texto, nas interpretações ou na decupagem. 

 

Porém, o mundo “real” dos autores e atores não escapa da estilização de Anderson. Apresentado como um programa de TV dos anos 50, mas com uma abordagem bem mais teatral que televisiva, ele já começa com a função de declarar com todas as letras de que a história a ser apresentada é ficção, que nada é real, enquanto a própria estética desse segmento é também inegavelmente fantasiosa. Para Anderson, negar o realismo em absolutamente todos os aspectos formais de Asteroid City não é o suficiente: é preciso transformar isso em declaração. Esses dois “mundos” correm em paralelo de um jeito mais formal, principalmente quando vemos questões criativas discutidas pelos artistas se materializarem na peça posteriormente. Nesse sentido, as personagens de Scarlett Johansson formam um interessante “espelho infinito”, onde ela interpreta uma atriz de teatro que interpreta uma atriz de cinema que está ensaiando um papel de uma suicida que, por sua vez, reflete algumas questões não ditas da atriz.

 

Próximo ao final, é que as questões internas dos criadores e dos personagens vão reverberando umas nas outras, como é próprio do processo artístico. Talvez o momento mais interessante dessa esfera do filme seja a pequena cena com Margot Robbie, onde ficamos sabendo de uma cena cortada da peça por motivos de duração, mas que acaba se tornando essencial para o ator (e, consequentemente, para o público) compreender seu personagem. Um certo desespero do ator em plena apresentação por não estar entendendo a peça que interpreta, reflete diretamente seu personagem, que se sente perdido na vida sem a esposa. E o mais precioso é que Anderson elabora isso e várias outras pequenas conexões sem tentar parecer super inteligente ou espertinho. É simples, orgânico e adorável. 

 

Em Asteroid City, Wes Anderson realiza um filme que é seu até o último fiapo, numa época em que autoralidade vai se tornando “mosca branca” em um contexto hollywoodiano, onde os estúdios querem que inteligência artificial penetre cada vez em mais etapas das produções. Ao radicalizar seu estilo já muito pessoal a um nível inédito, o diretor surpreendentemente evita a caricatura e compõe uma obra reflexiva e alegre. E ao fim de tudo, Anderson ainda deixa um curioso comentário final. Quando o filme parece se encerrar no ambiente dos criadores, ele apresenta um epílogo, que conclui a história (e o filme) no ambiente da peça, em Asteroid City. Pois, como se sabe, a obra é sempre muito mais interessante que o artista.

 

 COTAÇÃO:



ASTEROID CITY (EUA – 2023)

Com: Jason Schwartzman, Scarlett Johansson, Tilda Swinton, Edward Norton, Jake Ryan, Grace Edwards, Jeffrey Wright, Maya Hawke, Liev Schreiber, Tom Hanks, Matt Dillon, Adrien Brody, Willem Dafoe, Margot Robbie, Bryan Cranston e Seu Jorge.

Roteiro e direção: Wes Anderson

Direção de fotografia: Robert D. Yeoman            

Montagem: Barney Pilling

Música: Alexandre Desplat

Design de produção: Adam Stockhausen     

        

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