Por Ricky Nobre
Como vocês já sabem, o ator Rutger Hauer, que também era
escritor e ambientalista, nos deixou ontem, dia 24 de julho, aos 75 anos. Em
notas e homenagens por toda a internet, o momento mais lembrado de sua carreira
foi o derradeiro discurso de seu personagem androide em Blade Runner. Hauer não
gostou do texto original, sentindo-o dissociado do restante do filme, e o
reescreveu, eliminado algumas partes e adicionando o hoje icônico final. No
momento da filmagem, Hauer apresentou sua versão da cena, sem que o diretor
Ridley Scott tivesse conhecimento do que aconteceria.
Após uma luta sangrenta, seu personagem Roy Batty decide
salvar Decker (Harrison Ford) da morte. Sendo um replicante, seu tempo de vida
programado está em seus últimos minutos. Ele se senta na chuva e diz a Decker:
Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Naves de ataque em
chamas nos ombros de Orion. Eu vi raios C brilharem no escuro perto do Portal
de Tannhäuser. Todos estes momentos se perderão no tempo. Como lágrimas na
chuva. Hora de morrer.
Numa interpretação histórica, Hauer declama o texto numa
lentidão exata, onde cada pausa e respiro soava como um discurso por si só,
fazendo um texto de três linhas parecer o mais eloquente discurso já proferido
no cinema. Também foi ideia de Hauer que uma pomba voasse de perto dele no
momento de sua morte. A revolta dos replicantes vinha de sua condição de
escravos. Sem partes mecânicas mas com os cérebros programados a partir de sua
criação, eles tinham um tempo de vida muito limitado, como objetos com
obsolescência programada, vítimas da ganância e mentalidade escravocrata das corporações.
No momento do inevitável fim, Batty escolhe salvar uma vida em vez de tirá-la,
compartilhando com Decker sua visão do valor inestimável e, ao mesmo tempo, da
brevidade da vida, e também da História e da memória.
Nosso amigo lupino Antero Leivas lembrou que, no filme,
Batty morre justamente em 2019. Hauer deve ter pensado que também era a hora
dele. “Time to die”. Apesar de ter se projetado no cinema com diversos personagens
violentos, Hauer era um pacifista engajado. E se não estamos hoje exatamente no
mesmo mundo cyberpunk de 2019 imaginado em Blade Runner, estamos, com certeza,
em outro. E cabe a nós, enquanto público e habitantes deste mundo encontrarmos
as similaridades e qual o valor que damos hoje à vida, à História e à memória.
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