quinta-feira, 25 de julho de 2019

RUTGER HAUER E A RESISTÊNCIA DA MEMÓRIA


 Por Ricky Nobre


Como vocês já sabem, o ator Rutger Hauer, que também era escritor e ambientalista, nos deixou ontem, dia 24 de julho, aos 75 anos. Em notas e homenagens por toda a internet, o momento mais lembrado de sua carreira foi o derradeiro discurso de seu personagem androide em Blade Runner. Hauer não gostou do texto original, sentindo-o dissociado do restante do filme, e o reescreveu, eliminado algumas partes e adicionando o hoje icônico final. No momento da filmagem, Hauer apresentou sua versão da cena, sem que o diretor Ridley Scott tivesse conhecimento do que aconteceria. 

Após uma luta sangrenta, seu personagem Roy Batty decide salvar Decker (Harrison Ford) da morte. Sendo um replicante, seu tempo de vida programado está em seus últimos minutos. Ele se senta na chuva e diz a Decker:

Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Naves de ataque em chamas nos ombros de Orion. Eu vi raios C brilharem no escuro perto do Portal de Tannhäuser. Todos estes momentos se perderão no tempo. Como lágrimas na chuva. Hora de morrer.

Numa interpretação histórica, Hauer declama o texto numa lentidão exata, onde cada pausa e respiro soava como um discurso por si só, fazendo um texto de três linhas parecer o mais eloquente discurso já proferido no cinema. Também foi ideia de Hauer que uma pomba voasse de perto dele no momento de sua morte. A revolta dos replicantes vinha de sua condição de escravos. Sem partes mecânicas mas com os cérebros programados a partir de sua criação, eles tinham um tempo de vida muito limitado, como objetos com obsolescência programada, vítimas da ganância e mentalidade escravocrata das corporações. No momento do inevitável fim, Batty escolhe salvar uma vida em vez de tirá-la, compartilhando com Decker sua visão do valor inestimável e, ao mesmo tempo, da brevidade da vida, e também da História e da memória.

Nosso amigo lupino Antero Leivas lembrou que, no filme, Batty morre justamente em 2019. Hauer deve ter pensado que também era a hora dele. “Time to die”. Apesar de ter se projetado no cinema com diversos personagens violentos, Hauer era um pacifista engajado. E se não estamos hoje exatamente no mesmo mundo cyberpunk de 2019 imaginado em Blade Runner, estamos, com certeza, em outro. E cabe a nós, enquanto público e habitantes deste mundo encontrarmos as similaridades e qual o valor que damos hoje à vida, à História e à memória.

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