sábado, 7 de outubro de 2023

ALCATEIA NO FESTIVAL DO RIO 2023: DIA 6/10


Por Ricky Nobre

FILME 1: COBWEB

Uma comédia sobre o desespero que é fazer cinema, da estirpe de Vivendo no Abandono (só que não tão bom). Ambientado na década de 70, Cobweb acompanha o suplício de um cineasta que tenta refilmar o final de seu novo filme, sob o fantasma de não conseguir superar seu sucesso de estreia, acusações de plágio, a mão de ferro da censura da Coreia da época e um elenco que não entende seu roteiro.

 

Existe muita auto sátira quanto ao "tormento do artista", mas também ao sistema de produção industrial e de censura e ao caos gerado pelo choque dessas forças. O ator Song Kang-ho (de Parasita) encarna muito bem o cineasta absorto em seus delírios egoicos de realizar uma "obra prima". O diretor Kim Jee-woon intercala as cenas de filmagens com trechos em preto e branco do filme pronto, e por mais que ele brinque com o caos da produção e os conflitos entre os personagens, que muitas vezes querem coisas completamente diferentes, deixa também transparecer um fascínio pelo "fazer cinema", principalmente no trecho do "plano sequência" onde tanto a filmagem em si quanto a cena finalizada são mostradas. O contraste entre o planejamento minucioso, o caos da realização e o efeito final encerram a obra com uma certa celebração do esforço artístico, de que, no fim, vale tudo pelo filme. Mas isso não isenta o artista de sua própria consciência, de que ele, e todos a sua volta, estão presos a uma teia de ganância (seja por dinheiro ou reconhecimento) e de segredos. 

COTAÇÃO:


COBWEB (Coréia do Sul, 2023)

Com: Song Kang-ho, Park Jeong-su, Krystal Jung, Oh Jung-se, Jeon Yeo-been e Lim Soo-jung.

Direção: Jee-woon Kim

Roteiro: Jee-woon Kim e Jee-woon Kim

Fotografia: Kim Ji-yong

Montagem: Yang Jin-mo

Música: Mowg

Design de produção: Jeong Yi-jin

 

FILME 2: PERFECT DAYS

As vezes temos a impressão de que Wim Wenders desapareceu após Buena Vista Social Club, enquanto, na verdade, ele dirigiu uma grande quantidade de filmes nos últimos 20 anos, tanto ficção quanto documentários, curtas e longas. Mas eles pareciam sempre aquém de seu legado, como se seus dias de glória tivessem ficado para trás. Por isso Perfect Days é um filme tão emblemático na carreira de Wenders quanto é sublime em sua forma e poderoso em seu conteúdo.

Wenders acompanha a rotina de Hirayama, homem de meia idade que trabalha como faxineiro dos banheiros públicos de Tóquio. O primeiro segmento segue o personagem em cada detalhe de seu dia, sua rotina desde acordar, cuidar das plantas, cada detalhe de seu trabalho ao qual ele dedica um perfeccionismo quase ritualístico, como ele relaxa após o trabalho da mesma forma, nos mesmos lugares. Hirayama é também um homem analógico: ouve música em fitas cassete no carro, tira fotos da mesma árvore com sua velha câmera de filme e tem, no máximo, um celular de flip. Ao fim do dia, sonha sonhos de kanjis, mãos, sombras, folhas e estradas. 


Os raros diálogos são interações momentâneas entre personagens passageiros. Hirayama mergulha em um silêncio voluntário que lhe traz tanta paz quanto sua rotina. Mas seu jovem e impaciente companheiro de trabalho, assim como a inesperada visita de uma sobrinha, quebram não só o silêncio, mas a rotina, e é em sua resposta a essas disrupções que a doçura e generosidade de Harayama se manifestam, ao mesmo tempo em que ele traça limites.


Perfect Days é como uma joia muito preciosa dentro da obra de Wenders. Ela remete, na aparente simplicidade de seu roteiro e momentos de silêncio que acompanham personagens em seus cotidianos, às origens do cineasta e suas obras que, com Herzog, Fassbinder, entre outros, foi um dos fundadores do novo cinema alemão, na virada dos anos 60 para os 70. Ao mesmo tempo, existe uma imensa maturidade de Wenders no domínio da linguagem, em como aquela rotina que, para muitas pessoas seria enlouquecedora, se torna algo da qual simplesmente não conseguimos desgrudar os olhos. Não é à toa que o cineasta alemão foi contar sua história no Japão, lar do cineasta Ozu, ao qual ele simplesmente venerava e que criou um estilo de narrativa com a qual, sintomaticamente, Perfect Days dialoga muito. O humor advindo das interações entre personagens também lembra um pouco Jim Jarmusch e, nesse silêncio voluntário do protagonista, um fragmento de Jacques Tati vem à mente, ainda que o humor esteja mais ao entorno de Hirayama do que nele mesmo. As lindas cores que aparecem em lugares inesperados, como na casa de Hirayama e nos banheiros das praças, remetem a suas obras dos anos 80, assim como a japonesa loira de casaco rosa parece ter saltado de filmes como Até o Fim do Mundo. 

Wenders não gasta tempo explicando seu protagonista. O que seus sonhos e sua interação com a irmã tem a dizer sobre seu passado? Por que as fotos arquivadas em incontáveis caixas de metal? Com quem ele joga o jogo da velha? Seu estilo de vida analógico é uma forma de se manter desconectado ou um fuga de um passado traumático? Isso tudo parece desinteressante a Wenders, que parece achar suficiente estabelecer que sua situação é uma escolha, sem nem entrar no mérito de se é ou não a melhor que ele poderia fazer. A generosidade e doçura do personagem, afinal, estão acima de seu apreço pela rotina, e ele sai dela sempre que há uma gentileza a ser feita. Se existe ou não um passado traumático na vida de Hirayama, ele não importa mais. Importa apenas o sorriso final de um homem que aprendeu que depois é depois. Agora é agora.

COTAÇÃO:


PERFECT DAYS (Alemanha/Japão – 2023)

Com: Kôji Yakusho, Tokio Emoto, Yumi Asô, Sayuri Ishikawa e Arisa Nakano

Direção: Wim Wenders

Roteiro: Wim Wenders e Takuma Takasaki

Fotografia: Franz Lustig

Montagem: Toni Froschhammer              

Design de produção: Towako Kuwajima

Nenhum comentário: