Por Ricky Nobre
FILME 8: TUDO OU NADA
Em sua estreia em longa-metragem de ficção, Delphine Deloget fala sobre o drama das mães solo, das quais é exigida uma perfeição sobre-humana. Quando o filho de Sylvie sofre um acidente doméstico enquanto ela trabalhava à noite, o conselho tutelar é acionado para apurar negligência materna. O que inicialmente parece um procedimento razoável de proteção à criança torna-se um pesadelo kafkaniano impossível de ser vencido por uma pessoa comum.
Talvez o maior acerto de Tudo ou Nada sejam os personagens, que passam longe de qualquer concepção de família modelo. A primeira meia hora do filme é claramente dedicada a estabelecer o quanto Sylvie é cuidadosa e amorosa com os filhos, e toda a dinâmica familiar transborda esse amor entre eles. Mas Sylvie tem problemas de controle da raiva, o que acaba sendo extremamente problemático para ela, principalmente em situações de injustiça. O filho adolescente Jean Jacques é ansioso e tem compulsão alimentar. O pequeno Sofiane sofre de acessos de fúria, o que também agrava o processo. Um dos irmãos de Sylvie tem histórico de vício em jogo, e o outro tem uma passagem por roubo, além de não ter se estabelecido na vida. Todos esses problemas individuais não diminuem o amor e dedicação que eles têm uns com os outros. Ao contrário, é justamente a burocracia do sistema que exige uma perfeição impossível que acaba levando cada um a atos impensados.
A diretora mantém a emoção de forma intensa, sem temer o melodrama, tendo na atriz Virginie Efira, a grande estrela do atual cinema francês, como seu principal trunfo, numa interpretação poderosa tanto nas explosões quanto nas sutilezas e, especialmente, na erosão de sua saúde mental. É interessante perceber que, apesar do filme enfatizar toda a injustiça pela qual a família passa, a dificuldade em aceitar que algumas coisas mudam de forma incontornável pode dificultar ainda mais uma situação que já é ruim.
O desfecho pode parecer absurdo, mas é consistentemente emocional com o resto do filme. De sua forma distorcida, a protagonista entende de certa forma que o amor às vezes deve carregar junto, e às vezes deve deixar ir embora.
COTAÇÃO:
TUDO OU NADA (Rien à Perdre, França – 2023)
Com: Virginie Efira, Félix Lefebvre, Arieh Worthalter, Mathieu Demy e India Hair
Direção: Delphine Deloget
Roteiro: Delphine Deloget, Olivier Demangel e Camille Fontaine
Fotografia: Guillaume Schiffman
FILME 9: CIDADE RABAT
Documentarista estreando em ficção, Susana Nobre traz uma abordagem sobre o luto sob uma perspectiva particular. Após o falecimento da mãe, de quem ela cuidou por alguns anos, Helena aparenta continuar com normalidade sua rotina profissional numa produtora de cinema e familiar no convívio com a filha adolescente. Existe, porém, uma ligeira névoa, uma sutil letargia no seu dia a dia. Praticamente todo o trabalho em relação ao funeral e inventário da mãe é feito pela irmã de Helena. No trabalho, dificuldades corriqueiras parecem problemas sem solução. Em reuniões sociais, permanece só em seu canto.
Não existe uma trama que conduza o filme. Helena segue sendo levada pelos dias, como se não soubesse mais aonde pertence e a câmera segue essa “tranquilidade inquieta” com sutileza. No contato de Helena com o centro comunitário infantil, o lado documentarista de Nobre fala mais alto, mesclando o local e as pessoas de forma praticamente imperceptível com a ficção. Assim como também são quase imperceptíveis os momentos em que Helena se abre e se deixa transformar pela realidade.
COTAÇÃO:
CIDADE RABAT (Portugal – 2023)
Com: Raquel Castro, Laura Afonso, Sara de Castro e Paula Bárcia
Direção e roteiro: Susana Nobre
Fotografia: Paulo Menezes
Montagem: Martial Salomon
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