Por Ricky Nobre
O embate entre arte e realidade é tão antigo quanto a
própria expressão artística. Mais especificamente nas artes plásticas e
dramáticas, o ato criativo se reveza entre reproduzir a realidade, recria-la ou
reinterpreta-la. Seja imitando a vida, seja inventando-a, o artista procura, de
alguma forma, capturar ou reproduzir um pequeno pedaço do mundo, uma fatia da
vida (ou de bolo, como preferia Hitchcock). As artes audiovisuais que floresceram
no século XX elevaram esse embate a uma altíssima potência. Existe uma crença
generalizada de que o cinema e a TV de ficção reproduzem a realidade, em sua
forma mais comercial, necessariamente de uma forma reconhecível e
compreensível. Não raro, porém, obras excessivamente cruas, ou construídas para
assim aparentarem, são muitas vezes rejeitadas por aparentarem ser “excessivamente
reais”, ou reais de uma forma incômoda. A realidade, portanto, necessita do
filtro do conforto.
Na mesma medida, o cinema documental construiu-se dentro da
própria noção de transcrição de realidade, um documento áudio visual que traz a
realidade “como ela é”, mostrando “cenas reais” e depoimentos “autênticos” das
pessoas que retratam. Muitos não se dão conta, entretanto, que qualquer obra
possui um ponto de vista, e o documentário não é exceção. Independente das “boas
intenções” ou não de seu realizador, há quem creia que a própria existência de
uma câmera numa cena é capaz de alterá-la e que a escolha de sua posição
oferece um ponto de vista específico, que constrói uma realidade, em vez de
simplesmente registrá-la. O fenômeno do “reality TV”, surgido há cerca de 20
anos, sem o menor sinal de estar se esgotando, elevou toda a discussão ao um
nível totalmente novo.
O cineasta carioca Charly Braun, em seu segundo longa-metragem,
consegue, com uma bela costura cinematográfica, sintetizar toda essa discussão
num filme deliciosamente despretensioso que levou melhor roteiro no Festival do
Rio de 2016. Nesta coprodução Brasil, Portugal e Rússia, duas amigas e atrizes vão a Moscou para estudar o método de
Stanislavski, que revolucionou o teatro russo e a preparação dos atores no
início do século XX. Durante as aulas, onde elas têm entre os colegas um
cineasta argentino e uma atriz portuguesa, nos ensaios de cenas de Tio Vânia,
de Tchekhov, o professor procura ensinar os atores a se tornarem seus
personagens, mas sem perderem a si mesmos. Foi justamente Stanislavski que deu
impulso a um estilo de interpretação que levasse uma sensação de realidade ao
público, na contramão do estilo corrente, que ele considerava “teatrada e pathos
afetado, declamação e representação exageradas”.
O ato de representar e suas leituras é justamente a
principal chave para decodificar Vermelho Russo. Conforme o filme se
desdobra, o público começa a captar e desvendar pequenos sinais, e percebemos
que estamos diante de uma obra deliciosamente híbrida. Ao mostrar os alunos do
curso hospedados no “retiro dos artistas” de Moscou, percebemos que a interação
dos atores com os residentes do retiro é real, sendo muitos deles verdadeiras
lendas do cinema e teatro russos. Quando o aluno argentino, com sua câmera
onipresente, entrevista seus colegas, percebe-se a fina película que separa as
falas previamente escritas, as improvisadas e as que podem ser depoimentos
reais dos atores, falando de suas próprias experiências (muito mais explícito
no caso da atriz portuguesa Soraia Chaves). Num espelho infinito, vemos atrizes
interpretando atrizes interpretando personagens de Tchekhov; e o que define
essas interpretações durante as aulas como boas ou não contrasta e dialoga com
a interpretação das cenas do dia a dia que, como já comentado, podem, por
vezes, nem serem sequer interpretações.
Da mesma forma, o filme também brinca com a interpretação
que fazemos de nós mesmos cotidianamente, reproduzindo com humor sutil o
constrangimento comum em situações sociais, os famosos “nossa, mesmo, que
legal...” seguidos de silêncios desconfortáveis em frustradas tentativas de
simpatia. No mesmo sentido, a protagonista fala com o namorado no Brasil via
Skype, que finge se interessar pelo curso dela que, por sua vez, finge não se
importar com o desinteresse dele.
Assim como interpretações, representações e discursos
espontâneos se confundem, entrelaçam e completam, o mise-en-scène e o registro
documental se relacionam da mesmo forma, tornando o cinema e o trabalho do ator
uma discussão perfeitamente integrada, e Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, vem
à mente com certa frequência. Não surpreende que os primeiros nomes dos
personagens são os mesmos de seus atores. Martha Nowill e Maria Manoella são as
protagonistas Marta e Manuela, da mesma forma que se apresenta como Michel o
badalado Michel Malamed, que deve ter se divertido muito interpretando uma
versão ligeiramente canalha de si mesmo. Assim como eles, todos os atores se
apresentam com seus primeiros nomes reais, o que nos deixa imaginando o quanto
isso pode tê-los deixado à vontade para, a qualquer momento do trabalho,
alterar entre seus personagens e suas expressões pessoais.
Não deixe que tudo isso o deixe intimidados diante de
Vermelho Russo, uma vez que sua principal qualidade é conter tanto conteúdo e
tanta reflexão num filme simples, muitas vezes dramático, constantemente
engraçado e ternamente emocionante, seja pela história das amigas, seja pelas fascinantes
aulas de teatro russo. Toda a análise, porém, toma proporções ainda mais
fascinantes quando sabemos que em 2009, as atrizes Martha Nowill e Maria
Manoella, melhores amigas, foram realmente a Moscou para um curso sobre
Stanislavski, realmente tiveram uma séria briga (cuja reinterpretação no filme
gerou ferimentos físicos) e que, sob a proposta e a direção de Braun, recontam,
reinterpretam e revivem a experiência em Vermelho Russo. Se a relação entre as
personagens de Tio Vânia que ensaiaram no curso já dialogava com a relação de
Marta e Manuela no filme, o espelho se torna mais complexo com a história de
Martha e Manoella.
VERMELHO
RUSSO
Com: Maria
Manoella, Martha Nowill, Esteban Feune de Colombi, Soraia Chaves, Michel
Melamed, Mikhail Troynik e Elena Babenko.
Direção: Charly Braun
Roteiro: Martha Nowill e Charly Braun
Fotografia:
Alexandre Samori
Montagem:
Caroline Leone e Charly Braun
Música: Candelaria
Saenz Valiente
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