sábado, 2 de março de 2024

Os filmes do Oscar: BARBIE – 8 indicações

  Por Ricky Nobre

O quão autoral um filme da Barbie consegue ser? E o quão autoral ele deveria ser? Sem entrar nos meandros da complexidade do fenômeno Barbenheimer, o fato é que Barbie foi um filme-evento como não se vê há muito tempo. Aquela urgência em ver um filme do qual todos comentam, todos irem no cinema de rosa, irem ver em grupos e, uma característica dos tempos atuais, os comentários e memes nas redes sociais. As altas expectativas trabalharam tanto a favor quanto contra o filme. Muitos sabiam do subtexto feminista e se decepcionaram com seu lado mais infantil, enquanto outros que foram esperando um filme infantil tomaram um susto com a boneca se preocupando com a morte, celulite e patriarcado. A esta altura, Barbie já é a maior bilheteria da História da Warner, com quase Us$1,5 bilhão arrecadados. E, a partir dessa proeza, é ainda mais interessante analisarmos que tipo de filme Barbie realmente é. 

 

A trajetória de Greta Gerwig é algo surpreendente: até agora, são três longa-metragens e três indicações a melhor filme. Ao todo, seus filmes somam 19 indicações ao Oscar. Seu prestígio somado ao de Margot Robbie como atriz e produtora tornou possível esse grande risco que foi brincar com uma marca bilionária. E tudo tem mesmo esse tom de brincadeira. Há, inclusive, uma grande reverência ao ato de brincar, como é muito bem estabelecido no primeiro segmento, com o chuveiro sem água, as xícaras vazias e a personagem que flutua da janela de casa até seu carro. Na Barbielandia é tudo muito cuidadosamente recriado, cada vestido, casa, veículo são reproduções de brinquedos que realmente fizeram parte do catálogo da Mattel. Ainda que o filme ficasse só ali, já seria especialmente bonito o quanto Greta é apaixonada pela Barbie e tudo o que diz respeito a ela. E essa paixão da diretora se estende por toda a obra, particularmente no quanto sua paixão pelo cinema em si guia muito do que se vê na tela. A cena de abertura é muito mais do que uma piadinha com 2001 de Kubrick, mas uma perfeita síntese do que a boneca Barbie representa e de toda a proposta artística de seu filme, além também de declaradas inspirações em Demy, Tati, Almodóvar e musicais clássicos (e um pouco de Meliés, para os mais atentos). 

 

Em um momento mais inicial, temos a impressão de que será trabalhado um contraste mais chocante entre o mundo de fantasia de Barbie com o mundo real. Porém, a mudança de tom é ligeira. Greta escolheu manter muito do humor mais bobo e a dinâmica de filme infantil durante toda a duração do filme, e isso ocorre, de forma bem marcada e indisfarçável, em todas as cenas em que aparecem os executivos da Mattel. E aí entra a principal fraqueza do filme, ao mesmo tempo em que atesta sua maior proeza. O grande desafio da diretora era, acima de tudo, conseguir que um filme como esse fosse feito, o que só seria possível com a total concordância da Mattel. Isso torna, obviamente, qualquer possibilidade de críticas à empresa algo muito limitado. Escalando Will Farrel como CEO e, o que claramente transparece, deixando o ator solto ao improvisar seu tipo de humor característico, Greta cria um tom geral aparentemente inofensivo, bastante tolo até, e consegue meter, como que não quer nada, umas duas ou três críticas (genéricas, é verdade) sobre todos os executivos serem homens e o quanto o lucro é a base de todas as decisões. É de fato incômodo o quanto que esses engravatados da Mattel são os “vilões” só até a página 3, e é tudo muito diluído na bobeira. Porém, qualquer coisa a mais do que isso com certeza impossibilitaria o filme. Foi a saída possível, especialmente porque o foco principal era outro.

 

Os contrastes e choques de Barbie com o mundo real, além da estética concreta, vem todos da percepção da protagonista entre ser esse sonho de liberdade feminina, esse exemplo de que tudo é possível, com a realidade das mulheres no mundo. Ela sente que falhou em inspirar a menina que brincou com ela, não se sente mais bonita e feliz, e dá de cara com uma nova ordem patriarcal dominada por Kens ao voltar à Barbielandia. A “Barbie Depressiva” (que tem até comercial) marca um fundo do poço para a personagem, que, na verdade, é um processo de crescimento, algo inevitavelmente doloroso e que do qual não há volta. Por isso que a escolha final da personagem não pode ser outra. Tudo simboliza a saída do mundo infantil para os primeiros contatos do mundo real, daí a última cena representar um momento que é tão emblemático na vida de uma menina. 

 

Essa jornada da Barbie de Margot Robbie, portanto, é muito bem representada por todas as escolhas estéticas e narrativas de Greta Gerwig, a partir do momento em que existe toda uma linguagem de cinema infantil, ao mesmo tempo em que se somam algumas camadas mais complexas sobre o mundo e a realidade femininas, ainda que nada seja muito aprofundado, pois não parece mesmo ser essa a intenção. Desta forma, Barbie tem essa imensa e preciosa potencialidade de se tornar o tipo de filme que as meninas irão redescobrir de tempos em tempos, pois “o filme da Barbie” que uma menina viu aos 8 anos não será o mesmo ao ver novamente aos 13, e depois aos 20, e depois aos 30, pois a vida e o tempo trarão novos sentidos. E o sangue que corre nas veias de todo o filme é essa paixão contagiante que a diretora tem por todo o mundo de Barbie e que ressoa nas crianças que brincam e brincaram com ela e que podem conhecer ou relembrar os primeiros processos de amadurecimento ao ver a própria Barbie passar por isso na tela. Dentro dos limites de uma realidade onde a Mattel, sem dúvida alguma, viu neste filme a oportunidade de um imenso comercial, Greta Gerwig fez um pequeno milagre.

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INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Ator coadjuvante: Ryan Goslin

Atriz coadjuvante: America Ferrera

Roteiro adaptado: Greta Gerwig e Noah Baumbach, baseado em personagens criados por Ruth Handler

Canção original: "I'm Just Ken" música e letra de Mark Ronson e Andrew Wyatt

Canção original: "What Was I Made For?" música e letra de Billie Eilish e Finneas O'Connell

Design de produção: Sarah Greenwood e Katie Spencer

Figurinos: Jacqueline Durran

 

BARBIE (EUA – 2023)

Com: Margot Robbie, Kate McKinnon, Ryan Gosling, Simu Liu, Rhea Perlman, Michael Cera, America Ferrera, Ariana Greenblatt, Will Ferrell e Helen Mirren

Direção: Greta Gerwig

Roteiro: Greta Gerwig e Noah Baumbach, baseado em personagens criados por Ruth Handler

Fotografia: Rodrigo Prieto

Montagem: Nick Houy

Música: Mark Ronson e Andrew Wyatt

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