quarta-feira, 6 de março de 2024

Os filmes do Oscar: POBRES CRIATURAS - 11 indicações

Por Ricky Nobre

O desconforto é uma constante na filmografia de Yorgos Lanthimos. O que muda é a intensidade, que pode fazer você só se ajeitar na cadeira ou sair correndo do cinema. Dito isso, Pobres Criaturas é provavelmente seu filme mais "confortável", ou melhor, aquele cujo desconforto é mais sutil, principalmente para os que embarcarem com facilidade na proposta do filme. Lanthimos leva a sério a expressão "conto de fadas para adultos". Em um magnífico mundo de fantasia meio gótico, meio steampunk, acompanhamos o crescimento de Bella, criada pelo frankensteiniano Dr Baxter ao reviver o corpo de uma jovem suicida implantando nela o cérebro de sua bebê morta no ventre. O cérebro desenvolve rápido no corpo da adulta e vemos Bella passar por todas as fases do amadurecimento, descobrir o mundo, o sexo, o amor, o mal e seu lugar como mulher no mundo. 

 

É fascinante como vemos Bella partir de uma condição onde mal consegue pronunciar palavras básicas e ir seguindo num crescente de aprendizado de pensamento lógico que, em muitas ocasiões, colide com as etiquetas e os moralismos sociais. Nesse quesito, sua descoberta do sexo é o principal motor desta jornada, e é também, durante todo o filme, a principal fonte de potência e liberdade para ela mas, também, o principal motivo pelo qual o mundo exterior tenta detê-la. E é justamente a colisão desse ímpeto de liberdade com essa força castradora da sociedade que inspiram e moldam o pensamento de Bella sobre o mundo. Pensamento este que vai bem além do sexo (apesar de ser, em grande parte de sua essência, sobre ele) como quando Bella descobre, horrorizada, a capacidade humana para o mal.

 

Em sua jornada feminina, uma de suas principais batalhas é pelo direito de ser dona de si mesma. Cercada de homens que acreditam terem direitos sobre ela pelos mais variados motivos, é particularmente intrigante, como também irônico, que Bella mais aprenda a desenvolver isso durante o período em que realiza trabalho sexual, muito a partir da relação que ela tem com outras mulheres e como ela lida com as contradições da variedade de experiências com os homens que a procuram.

 

O cinema de Yorgos Lanthimos sempre se diferenciou dos de outros cineastas que buscam o choque, o desconforto e o bizarro pela dimensão verdadeiramente humana de seus personagens e seus temas. O que há de mais fascinante e irresistível em Pobres Criaturas é o brilho no olhar de Bella, a vida nele e por ele. Um maravilhamento por tudo, pelo sexo, pela arte, pelas pessoas, pelas cidades, tão contagiante e intenso que sentimos profundamente sua queda quando ela se desilude com o mundo. Bella sente e pensa intensamente e constantemente transforma seus sentimentos em ideias. E Lanthimos cria belissimamente esse mundo para que nós possamos nos maravilhar com ela. O design de produção e os figurinos sublimes nos mantém constantemente imersos nesse mundo que o diretor faz questão de manter na esfera da fantasia, do absurdo e do belo. A lente grande angular, sempre uma favorita de Lanthimos, parece sempre dar absoluto protagonismo à suntuosidade e à estranheza dos entornos e como os personagens, Bella em específico, estão inseridos neles, ainda que o uso de lente 10mm (conhecida como “olho de peixe”) pareça buscar apenas incômodo sensorial.

A brilhante trilha musical de Jerskin Fendrix estabelece um perfeito paralelo com a protagonista, onde a música começa com poucas notas e instrumentos, e o uso de dissonância e atonalidade, e vai lentamente se tornando mais complexa e estruturada, até culminar no final, onde um tema completo de estilo clássico (com ecos de Jerry Goldsmith) marca a completa realização da personagem, ainda que permaneça com sua instrumentação muito particular, pois Bella é única.

 

Não é possível ignorar não apenas a magnífica interpretação de Emma Stone, mas também sua absoluta entrega à personagem e como ela se expressa na visão de Lanthimos. A evolução de Bella desde às primeiras cenas até a conclusão possui uma coesão e uma expressividade em seu simbolismo do “tornar-se mulher”, como descrito por Beauvoir, mas que, em certos momentos, pode dar a impressão de alguns “saltos”, porém são perfeitamente consistentes na forma como Bella articula seus sentimentos com sua percepção de mundo. Nisso, a entrega de Stone às numerosas cenas de sexo e nudez cristaliza a relação de Bella com esse senso de intensidade máxima com a qual ela percebe e experimenta tudo. Inclusive, Lanthimos faz questão que essas cenas tenham um mínimo de lençóis ou roupas cobrindo os atos, porque é com esse despudoramento, ao mesmo tempo inocente e vulcânico, que Bella exerce sua sexualidade e toda a sua experimentação da vida.

 

Por fim, Pobres Criaturas não é tanto sobre o desconforto que o filme causa ao espectador (levando em conta o conjunto da obra de Lanthimos), mas sobre o desconforto que Bella causa ao seu entorno em sua jornada de descoberta da vida e de si. O desconforto gerado por sua determinação em ser livre. Lanthimos realiza um filme que, mesmo em sua complexidade e peso de seus temas, possui uma leveza que, no fundo, é a leveza contagiante de Bella que, em um deslumbrante mundo de fantasia, nos presenteia com sua ousadia, beleza, humor e, sobretudo, coragem.

COTAÇÃO:


 


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Yorgos Lanthimos

Atriz: Emma Stone

Ator coadjuvante: Mark Ruffalo

Roteiro adaptado: Tony McNamara, baseado no livro de Alasdair Gray

Música original: Jerskin Fendrix

Design de produção: Shona Heath, James Price e Zsuzsa Mihalek

Fotografia: Robbie Ryan

Montagem: Yorgos Mavropsaridis   

Maquiagem: Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston

Figurinos: Holly Waddington


POBRES CRIATURAS (Poor Things, EUA – 2023)

Com: Emma Stone, Willem Dafoe, Vicki Pepperdine, Ramy Youssef, Mark Ruffalo, Hanna Schygulla, Kathryn Hunter, Suzy Bemba, Margaret Qualley e Christopher Abbott


 

 

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